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Ana de Castro Osório e a educação no combate à subalternidade das mulheres

“Ser feminista é apenas ser justo e lógico.”1
A 18 de junho de 2022 passam 150 anos sobre o nascimento de Ana de Castro Osório (1872-1935), figura incontornável do feminismo português. Esta feminista republicana teve uma atuação multifacetada como ativista, escritora, jornalista, editora e conferencista no final do século XIX e início do século XX. Aqui procuraremos destacar o seu papel como pioneira da literatura infantil portuguesa, articulando com a sua ação para “levantar a mulher da situação deprimente em que está na sociedade portuguesa.”2
Uma das vertentes fundamentais da primeira vaga do movimento feminista português foi a luta pelo acesso à educação, assente no pensamento de que a igualdade no direito ao trabalho, à independência económica e autonomia das mulheres portuguesas só seria possível atingir a partir de uma educação substancialmente diferente da (in)existente então. Já que “educar a mulher, dando-lhe meios de poder auferir com o seu trabalho o suficiente para a sua sustentação, (…) [é] a maneira mais prática de a tornar um ser livre, apta para escolher por motu-proprio o caminho a seguir diretamente na vida.”3
O Censo de 1900 revelou que 21,4% da população portuguesa sabia “ler e escrever a sua língua, [e destes] apenas um terço são mulheres!”4 Foi neste quadro de analfabetismo quase generalizado que Ana de Castro Osório iniciou a sua atividade de escrita dedicada ao público infantil e simultânea recolha e compilação de contos e histórias da tradição oral portuguesa dirigidos às crianças. Para publicar os resultados do seu trabalho na coleção de livros “Para Crianças”, funda em Setúbal, em 1897, a editora “Livraria Editora Para Crianças”. Esta iniciativa, que integra uma profícua produção de originais e primeiras traduções de obras de autores como os Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen em 18 volumes publicados até ao ano da sua morte, é precursora no campo da literatura infantil em Portugal. Ação inovadora porque associou a recolha de contos tradicionais, integrada numa conceção de recuperação do passado e de enaltecimento da cultura popular tão em voga na época, com uma atenção dada à produção literária específica para o público infantil. Progressista também, porque enquadrada numa dimensão política e de militância que conduziu Ana de Castro Osório à divulgação da coleção através do financiamento da edição, publicação e sua distribuição gratuita em escolas, bibliotecas, associações e outras instituições. O seu papel como intelectual, que assume a instrução e a educação enquanto missão civilizadora, foi secundado pela publicação de livros infantis de caráter mais marcadamente doutrinário - como “A minha Pátria” (1904) ou “De como Portugal foi chamado à guerra: História para Crianças” (1918). A defesa da alfabetização e da generalização do ensino primário leva-a à produção de manuais escolares - “Lendo e aprendendo” (com primeira edição em 1913) e “Os nossos amigos: Livro de Leitura” (aprovado oficialmente para a 3ª classe em 1922). Uns e outros são integrados na coleção “Para Crianças”.
A educação como "o problema máximo a desenvolver e pôr em prática”
Esta faceta da obra de Ana de Castro Osório não pode ser dissociada da sua perspetiva político-ideológica ou da sua atuação como militante feminista. A ligação entre pedagogia, princípios feministas e ideais republicanos marca decididamente o seu papel como influenciadora do que se poderia chamar uma opinião pública urbana. Escreve em jornais, faz palestras, discursa em comícios republicanos durante o período da Monarquia Constitucional, funda e milita em inúmeras agremiações, como o Grupo Português de Estudos Feministas, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas ou a Associação de Propaganda Feminista e participa na elaboração das leis do divórcio e da família (1910) logo após a implantação da República. O tema da educação foi tão premente no pensamento de Ana de Castro Osório que quando escreve “Às mulheres portuguesas” (1905), o primeiro manifesto feminista português, dedica muitas páginas a esta questão e assume-a como “o problema máximo a desenvolver e pôr em prática”5.
O movimento feminista do início do século XX, essencialmente elitista e burguês no que toca às suas protagonistas, integra diferentes visões e estratégias. Ana de Castro Osório, apesar de assumir que uma “campanha frondista das ruas e dos comícios (…) é necessária também, e [que] (…) sem nos hostilizarmos mutuamente, porque todas as propagandas femininas são úteis”6, foca-se em “orientar, educar e instruir, nos princípios democráticos, a mulher portuguesa (…), fazer propaganda cívica (…), promover a revisão das leis na parte que interessa especialmente a mulheres e crianças.”7 Esta definição de prioridades deve-se à autora situar na infância a construção da inferioridade do estatuto social da mulher e da sua desigualdade face aos seus pares masculinos, bem patente na comparação que faz em “A educação cívica da mulher” (1908), primeira publicação do Grupo Português de Estudos Feministas: “A menina cria-se à roda das saias da mamã, com a menor despesa possível, porque é um valor inútil (…). O rapaz é livre, pode correr, saltar, rir à vontade, ir para toda a parte sem guardas; à rapariga (…) acabam por a manietar com o eterno parece mal, que torna realmente odiosas as pobres vítimas dos preconceitos sociais.”8
A sua obra dirigida ao público infantil faz parte de uma atuação pedagógica feminista que tinha a mulher e a criança como preocupação e alvos prioritários e encarava a leitura na sua vertente didática. Na senda do Movimento da Educação Nova, que se começa a afirmar internacionalmente neste período, Ana de Castro Osório pretende apoiar com as suas obras uma educação laica, tornando-a prática e próxima da realidade experimentada, promotora de uma autonomia ativa através da observação e curiosidade das crianças, uma instrução focada nas questões sociais e políticas e no contacto com o ambiente exterior de forma a potenciar a entrada de “ar nos pulmões atrofiados, [e] alargar-lhe o espartilho.”9
A abordagem múltipla de Ana de Castro Osório, como uma das mais profícuas teóricas e uma das militantes mais ativas da primeira vaga do feminismo português, teve como fio condutor a educação como espaço de combate à subalternidade das mulheres portuguesas. Foi assim uma “feminista (…) que conquist[ou] o direito a viver pelo seu trabalho, pela sua inteligência e pela sua consciência.”10
Ana Alcântara é Historiadora, docente da ESE/IPS e investigadora do IHC/NOVA FCSH
Notas:
1 Ana de Castro Osório, “A Madrugada”, nº 15, outubro 1912
2 Ana de Castro Osório, “A Mulher e a Criança”, nº 15, agosto de 1910
3 Ana de Castro Osório, Às mulheres portuguesas, 1905, 46
4 Ana de Castro Osório, Às mulheres portuguesas, 1905, 152
5 Ana de Castro Osório, Às mulheres portuguesas, 1905, 54
6 Ana de Castro Osório, “A mulher portuguesa”, nº 3, agosto 1912
7 Ana de Castro Osório, “A Mulher e a Criança”, nº 15, agosto de 1910
8 Ana de Castro Osório, A educação cívica da mulher, 1908, 14-15
9 Ana de Castro Osório, Às mulheres portuguesas, 1905, 88
10 Ana de Castro Osório, “A mulher portuguesa”, nº 3, agosto 1912
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