França

Amnistia Internacional critica dissolução da Urgence Palestine

13 de maio 2025 - 10:25

A ONG junta-se a uma onda críticas que já contou com manifestações e com uma petição assinada por mais de 200 mil pessoas. “A decisão do governo de dissolver um coletivo de defesa dos direitos dos palestinianos, em pleno genocídio na Faixa de Gaza, seria um ato muito grave” diz a AI.

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Urgence Palestine em manifestação
Urgence Palestine em manifestação. Foto de MOHAMMED BADRA/EPA/Lusa.

Depois de o ministro do Interior francês, Bruno Retailleau, ter anunciado, no passado dia 30 de abril, que iria iniciar um processo de dissolução do coletivo Urgence Palestine, muitos foram os protestos da sociedade civil. O último deles, esta segunda-feira, chegou da Amnistia Internacional que o julga um “sinal alarmante” e um entrave à liberdade de expressão.

Em comunicado, a Organização Não Governamental escreve que “a decisão do governo de dissolver um coletivo de defesa dos direitos dos palestinianos, em pleno genocídio na Faixa de Gaza, seria um ato muito grave”.

A situação em França é descrita como de “degradação contínua das liberdades de expressão, de associação e de reunião pacífica”, com uma lei de dissolução de organizações que “não é conforme ao direito internacional sobre direitos humanos já que permite a dissolução sobre a base de motivos vagos, como por exemplo, a “provocação do ódio”, a “provocação em manifestações armadas”, ou a “apologia do terrorismo” e sem controlo judiciário prévio”.

Mas não é só em França que “restrições desproporcionadas” às liberdades de expressão e de reunião pacífica dos defensores dos direitos dos palestinianos têm sido implementadas. Anne Savinel-Barras, presidente da secção francesa do grupo, denuncia ainda que isto também tem acontecido em vários outros países europeus e também nos Estados Unidos.

A Urgence Palestine afirma-se como um coletivo de “cidadãos, organizações e movimentos associativos, sindicais e políticos mobilizados pela auto-determinação do povo palestinianos”. A sua ação consiste sobretudo na organização de manifestações contra o genocídio. Algumas delas têm sido proibidas, o que a Amnistia Internacional também criticou no seu comunicado.

Acusações vagas, sem provas, decisão sem julgamento

O Le Monde teve acesso à carta na qual o governante justifica o processo de encerramento do grupo e sublinha o carácter “vago” de muitas das razões apontadas.

O grupo é acusado de “exceder os limites da liberdade de expressão” e de provocar “atos violentos contra pessoas ou bens, incitar ao ódio, à discriminação e à violência contra as pessoas por causa da sua origem judaica, tolerar as ações de organizações reconhecidas como terroristas e incitá-las”.

Na versão de Retailleau, a UP “incita à luta armada, valorizando a figura do combatente”, citando-se aqui o exemplo de um discurso numa manifestação em que um membro da organização disse que “o fascismo é combatido, por vezes até com armas na mão, por todos os meios necessários, até à vitória, em Gaza e em Paris” ou apelos a uma “intifada mundial”.

No que diz respeito à suposta violência contra judeus, o dossier “magro”, escreve aquele jornal francês, limita-se a indicar que apoiou o influencer Elias d’Imzalène, condenado por ter apelado a uma “intifada em Paris”, e por alguém não identificado ter alegadamente insultado um polícia infiltrado numa manifestação. As acusações do governante vão ainda no sentido do grupo apoiar o Hamas, o Hezbollah ou a Frente Popular de Libertação da Palestina.

A “parcialidade estrutural” do governo francês

A resposta chegou a 8 de maio por via dos advogados do Urgence Palestine, Elsa Marcel, William Bourdon e Vincent Brengarth, que acusam o governo francês de “parcialidade estrutural” por tomar o lado do governo israelita, pelo que qualquer decisão não será imparcial.

Do ponto de vista da defesa, a Urgence Palestine “não encorajou nunca evidentemente a menor violência no território nacional mas, por outro lado, apoiou a resistência considerada como sendo legítima do ponto de vista internacional”, recordando-se que a ONU reconhece o direito de resistência em caso de invasão estrangeira; recusa-se ligação entre os seus discursos e quaisquer atos de violência; e nega-se a ideia de discurso de ódio contra os judeus, explicando-se que “desde a sua fundação, a Urgence Palestine afirmou a sua vontade de lutar contra todas as formas de racismo e de se opor firmemente a todas as afirmações ou atos anti-semitas”. O que se passa é que “a crítica radical do regime colonial israelita ou apelo ao boicote de produtos importados deste Estado enquadram-se na liberdade de expressão e não podem ser assimilados a anti-semitismo”.

Sobre as acusações de apologia ao terrorismo, a resposta da organização critica o ministro por citar pessoas que não fazem parte da UP e por assimilar também a crítica do sionismo ao anti-semitismo.

Organiza-se a oposição à dissolução

Antes desta resposta e da tomada de posição da Amnistia Internacional, tinham reagido de imediato partidos e figuras de esquerda, para além de diversos movimentos sociais.

Um conjunto de primeiras manifestações foi organizado na terça-feira passada contra a criminalização do protesto. Na de Paris, Jean-Luc Mélenchon, dirigente da França Insubmissa, discursou assinalando os métodos ilegítimos do governo.

Para ele, quem merece ser “dissolvido” é o executivo, sublinhando que “num país livre, as opiniões livres não são crime” e denunciando que “eles querem fazer calar pessoas às quais não se pode criticar nada a não ser as suas opiniões”.

A deputada comunista Elsa Faucillon também esteve presente, declarando: “a extrema-direita pede, o governo executa, vergonha”. Acredita estarmos perante uma “ascensão do autoritarismo, uma deriva fascizante de um capitalismo ultra-securitário e liberal, pronto a esmagar qualquer oposição”.

Entre os representantes políticos também Olivier Besancenot, dirigente do Novo Partido Anticapitalista, tomou a palavra para assegurar que “lutaremos até ao fim” contra a dissolução e contra as perseguições feitas a vários ativistas sob o pretexto da “apologia do terrorismo”, concluindo com um apelo a uma frente unida: “se tocarem em um de nós, apesar dos nossos desacordos, responderemos de maneira solidária”.

Ao mesmo tempo, um abaixo-assinado contra a dissolução da UP tinha reunido até à noite deste domingo mais de 200 mil assinaturas. O texto, intitulado “Contra o genocídio, por uma Palestina livre: não à dissolução da Urgence Palestine”, tem como primeiros subscritores figuras como os rappers Fianso, Médine, L'Algerino, Joey Starr e Youssoupha, a prémio Nobel da Literatura Annie Ernaux, a eurodeputada de origem palestiniana Rima Hassan, o realizador Ladj Ly, o filósofo Étienne Balibar, os humoristas Guillaume Meurice e Blanche Gardin e o jornalista e escritor Denis Robert.

Nele se defende que “denunciar o genocídio nunca será crime. Resistir à injustiça não é crime. Exigir liberdade para o povo palestiniano não é uma exigência extremista violenta. Pelo contrário: é uma exigência humana”, criticando-se que o governo siga a exigência do deputado de extrema-direita Julien Odoul, “recentemente condenado pelos tribunais” e que “ao adotá-la, o Ministro do Interior Bruno Retailleau está a endossar uma política de repressão alinhada com os slogans da extrema-direita em França e do governo israelita”.

Fim de semana com uma manifestação neofascista e uma manifestação contra a islamofobia

As críticas da esquerda e dos movimentos sociais também se dirigem ao facto de as perseguições mais recentes do governo francês acontecerem num clima crescente de islamofobia e de permissividade face ao neofascismo.

Este sábado, o governo francês autorizou uma marcha neofascista organizada pelo “Comité do 9 de Maio”. Perto de um milhar de manifestantes de extrema-direita, alguns de cara tapada e ostentando símbolos abertamente neonazis, outros com bandeiras com a cruz céltica, saíram às ruas em Paris para assinalar o dia em que um militante de extrema-direita da organização proibida de extrema-direita GUD caiu de um prédio quando fugia da polícia depois de uma manifestação.

Bem mais expressiva foi a manifestação deste domingo contra a islamofobia, convocada por mais de trinta organizações na sequência do assassinato de Aboubakar Cissé numa mesquita em Gard mas também de outros casos como os ataques racistas contra o humorista Merwane Benlazar ou a tentativa de corte do financiamento do liceu Averróis em Lille.

O clima relatado por alguns dos largos milhares presentes é sombrio: “já não se escondem. Os insultos, as cuspidelas, acontecem pelo menos duas vezes por semana”, diz ao Mediapart Cathy, uma mulher de trinta e poucos anos que usa o véu.

O ministro Bruno Retailleau é precisamente um dos mais criticados como sendo instigador da violência, ele que num comício há semanas gritava “abaixo o véu”. Os números do seu ministério não mentem: no primeiro trimestre deste ano, a violência contra muçulmanos aumentou 72%, face a igual período do ano anterior, com 79 casos documentados.

A Jeune Garde, organização antifascista, também vítima de processo de dissolução

A organização de defesa da causa palestiniana não é a única visada pelo ministro do Interior francês. No dia anterior à visá-la, este tinha feito o mesmo com a organização antifascista Jeune Garde, acusando-a de agredir fascistas.

Cem Yoldas, porta-voz do grupo que envolve mais de uma centena de pessoas, em entrevista ao Rue89 Strasbourg, lembra que, tal como no caso da causa palestiniana, a abertura do processo foi um pedido expresso da extrema-direita e que contrasta com o abandono do processo contra os hooligans de extrema-direita Strasbourg Offender que “se reivindicam do nazismo e da violência”, que têm várias condenações e alguns estão a ser investigados por venda de armas.

Deste contraste, conclui que o objetivo do governante é dissolver movimentos de esquerda. Em causa está o próprio antifascismo que, nas palavras do governo, usaria um “vocabulário que incita à violência contra um grupo adversário”. A acusação, explica, critica um dos fundadores do grupo, o deputado da França Insubmissa Raphaël Arnault por se ter gravado com a cara ensanguentada, depois de ter sido agredido por neonazis e coloca em causa os treinos de autodefesa, necessários, justifica, por casos como o incêndio da casa de um presidente de Câmara em Saint-Brevin-les-Pins.

Os membros do grupo são ainda acusados de rixas contra a extrema-direita mas Yoldas lembra que “não há nenhuma condenação na justiça”, apesar de haver dois casos em julgamento. De resto, vários exemplos da acusação são retirados do canal de Telegram Antifasquad, que a Jeune Garde diz não ter nada que ver consigo. “As nossas ações são públicas e reivindicadas”, contrapõe o dirigente antifascista.

Este acrescenta que “podem dissolver uma organização antifascistas mas não dissolverão o antifascismo”, pugnando por uma “mobilização unitária” porque “quando se ataca uma organização antifascista, ataca-se todo o movimento social”.