Com ondas de calor e recordes de temperatura a suceder a cada mês na Europa, a crise climática atingiu um ponto em que medidas emblemáticas como o abandono das energias fósseis já não bastam, sendo necessário começar a pensar em alterações na agricultura, na pecuária, e nos hábitos alimentares a nível global, afirma o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas.
O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC na sigla inglesa), organismo intergovernamental da ONU, é a fonte de referência sobre o tema. Publica relatórios de avaliação global a cada seis anos, bem como relatórios sobre temas específicos de forma pontual, que levantam exaustivamente o estado da arte científico e têm grande peso e influência nas políticas dos governos.
O relatório Alterações Climáticas e Solo, divulgado esta quinta-feira em versão resumida, debruça-se sobre o papel do sistema alimentar no clima, desde a agricultura e criação animal até aos hábitos alimentares da população. Deverá servir de base de trabalho para as negociações na cimeira da ONU sobre o clima a realizar em setembro em Nova Iorque, num contexto em que movimentos como a greve climática estudantil ou o Extinction Rebellion revelam por todo o mundo uma opinião pública cada vez mais alerta e impaciente com a falta de ação contra as alterações climáticas.
A mensagem do IPCC é sonante: o sistema alimentar representa um quarto das emissões globais de gases de efeito de estufa, sem uma alteração drástica do sistema atual os esforços para reduzir as emissões serão insuficientes. Novas formas de produzir e consumir alimentos são imprescindíveis para combater as alterações climáticas, embora não suficientes — evidentemente, têm de complementar outras frentes de ação como a transição de energias fósseis para renováveis, mudanças nos sistemas de transportes etc.
Um dos eixos de análise é o papel das florestas como sorvedouro global dos gases de efeito de estufa, que diminuem as temperaturas do planeta. O relatório considera por isso preocupante o crescimento da desflorestação, em particular nas florestas tropicais como a Amazónia. Como exemplo, se a desflorestação na Amazónia não for detida, pode nos próximos 30 a 50 anos torná-la numa paisagem de tipo desértico e libertar mais de 50 mil milhões de toneladas de carbono para a atmosfera. Infelizmente, os sinais atuais não são animadores na Amazónia, com Jair Bolsonaro a desautorizar dados oficiais de desflorestação e a afirmar que sem restrições ambientais as regiões amazónicas podiam ser um "Japão". Dados que poderão ter levado Hans-Otto Pörtner, membro de um dos grupos de trabalho do IPCC, a declarar na apresentação do relatório: "Infelizmente, há países que parecem não entender a necessidade desesperada de parar a desflorestação nos trópicos. Não podemos obrigar nenhum governo a agir. Mas esperamos que o nosso relatório tenha força suficiente para influenciar a opinião pública nesse sentido".
A mudança de hábitos alimentares é outro eixo explorado no relatório. A maior parte da floresta é abatida para uso agrícola e pecuário, e a pecuária intensiva em particular emite muito metano, gás com forte efeito de estufa. Por outro lado, o IPCC sublinha que é essencial manter uma alta produtividade agrícola para continuar a alimentar a população mundial sem desbastar mais floresta. Considera assim os hábitos alimentares uma via promissora: adotar dietas com mais vegetais e menos produtos animais, estes últimos produzidos de forma mais sustentável, é uma "grande oportunidade de adaptação e mitigação", para além de melhorar a saúde das populações. Num dos cenários explorados, esta via poderia libertar milhões de quilómetros quadrados de terra atualmente de cultivo ou pasto e cortar oito milhões de toneladas às emissões globais de CO2. Hans-Otto Pörtner, sublinhou que seria "efetivamente benéfico para o clima e para a saúde humana se se consumisse menos carne nos países ricos e criasse incentivos nesse sentido", mas ressalvou que "não queremos dizer às pessoas o que comer".