Está aqui
Albert Cossery: Um revolucionário sem espartilhos
“As Cores da Infâmia”, título do seu último livro reeditado em finais do ano passado pela editora Antígona - Editores Refractários, dá-nos um excelente motivo para nos debruçarmos novamente sobre a personalidade e a obra de Albert Cossery (1913-2008) e que só uma análise menos atenta ou mesmo superficial pode - como tem acontecido algumas vezes - desembocar numa certa vacuidade que é talvez o caminho mais fácil para o classificar encerrando desta forma o seu legado numa lógica que se ancora num universo puramente comercial e que a maioria das editoras tem vindo a adotar em relação aos seus autores para não submergirem de forma definitiva num modelo de sociedade onde o consumismo alarve ultrapassou todas as fronteiras do razoável para se situar no estafado lugar comum do “salve-se quem puder”.
É no entanto da mais elementar justiça louvar a resistência a este estado de coisas por parte de alguns editores, onde se incluem os responsáveis da Antígona e mais alguns.
O universo ficcional dos livros de Cossery comporta alguma complexidade justamente porque as suas fronteiras ideológicas não se estribam em nenhuma escola de pensamento clássico o que lhe deu uma enorme margem para utilizar a ironia, o sarcasmo e a critica ácida, mesmo que por vezes estas possam aparentar algum despropósito.
As desigualdades sociais e a subordinação da maioria das pessoas aos interesses de uma pequena elite - será mais correto chamar-lhe clique corrupta - que se passeia nos corredores do poder político e económico - esse casamento fatal que vai persistindo e corroendo as sociedades - levaram a que alguns (felizmente poucos) tenham “arrumado” Cossery na estante daqueles que apontando para a necessidade de promover novas formas de organização política e social, pretenderam unicamente explorar a deceção dos “deserdados” para ganhar prestígio e leitores.
A indigência como herança
No seu percurso de vida, o escritor egípcio demonstrou sempre um enorme desapego pelos bens materiais, algo que lhe foi transmitido pela família, nomeadamente o pai, e o seu caminho fica marcado pelo abandono do único emprego que teve e por algumas viagens que fez até se instalar em Paris com o intuito de prosseguir os estudos. No entanto, o interesse por outras áreas, sobretudo a literatura, ditaram em definitivo o seu percurso de vida.
Do centro da capital francesa onde se instalou num quarto de hotel, em 1945, tendo aí permanecido até à sua morte, olhou o mundo e o seu país, usando a escrita para descrever o quotidiano daqueles que vagueiam pelas ruas carregando uma indigência que se vai perpetuando em territórios onde a única herança partilhada é a putrefação de quem viu ser-lhes negado tudo.
De potencial suicida a “pequeno ladrão”
Com ironia, escreve que aos pobres resta a dignidade. Algo que como sabemos convida à apatia e tem uma matriz de natureza eminentemente conservadora. No entanto, e falamos agora especificamente do seu último livro, é bom atentar na forma como ele desafia as injustiças.
De um modo que só aparentemente pode ser considerada pueril, Cossery desconfia do poder e faz de Ossama, a figura central de “As Cores da Infâmia”, um ladrão, um “pequeno ladrão”, um carteirista que persegue apenas os crápulas endinheirados do Cairo que só “sabem criar barriga” e serpenteiam entre os clubes e restaurantes caros da cidade ostentando uma prosperidade que é tanto maior quanto mais próximos estiverem daqueles que mandam.
Ossama é filho de um revolucionário que ficou cego devido a uma brutal agressão de um polícia e que nunca se apercebeu que a revolução tinha fracassado. O ancião vive sozinho numa casa que ameaça ruir a qualquer momento. Sobra-lhe apenas o orgulho que tem pelo filho que julga ter uma boa posição na vida fruto das alterações trazidas pelos homens bons que tomaram nas mãos os destinos do país. Para ele, o barulho que lhe chega da rua é a expressão do bem-estar e da felicidade das pessoas e não a consequência audível dos miseráveis que se arrastam penosamente pelos becos imundos da cidade.
Ossama anda sempre bem vestido para desta forma evitar o olhar dos polícias. Afinal, só os andrajosos são alvo de desconfiança e merecedores de prisão.
O jovem larápio ainda tentou uma vida diferente. Aprendeu a ler e a escrever mas cercado por muros onde só há lugar para o sofrimento e para a fome decidiu que o melhor seria pôr termo à vida o que só não aconteceu porque no momento em que se preparava para consumar o ato suicida, surgiu Nimr, carteirista experiente mas que passa longos períodos encarcerado porque as suas vestes denunciam a sua condição social.
Um dia, Ossama rouba a carteira de um próspero e nada escrupuloso promotor imobiliário e descobre uma carta que é a prova de um escândalo na construção de habitações num bairro social e que acabou por levar ao colapso dos edifícios matando 50 pessoas.
A possibilidade de denunciar o conluio entre o empresário e um governante é para Ossama quase um imperativo de consciência mas as dúvidas surgem porque a imprensa está subjugada aos ditames do sistema que se apoderou do país. E assim, o “pequeno ladrão” hesita sobre o que fazer com o documento por temer pelo seu futuro.
O duro exercício de compreender o mundo
Cossery que fez amizade com Albert Camus, Boris Vian, Jean Genet, Henry Miller, Georges Moustaki, entre outros, foi sempre portador de uma repulsa contra a ordem estabelecida naquilo a que chama os “regimes da fome” revelando igualmente uma profunda desconfiança e desprezo pelos mecanismos do “pensamento oficial” e atuação dos guardiões da ordem estabelecida que existem para não nos deixar pensar e agir. Estão neste caso a comunicação social e o sistema judicial impelidos a fazer o jogo da subserviência para garantir a sua sobrevivência.
Será que o pensamento de Cossery ainda vai a tempo de combater a “ortodoxia do consenso” que marca a opinião que vai imperando nos tempos atuais?
É difícil emitir um juízo a este respeito mas importa relembrar o que o escritor disse no livro “Conversas com Albert Cossery” e que transcrevemos a partir do blogue O homem que sabia demasiado, de Víctor Afonso. Quando o jornalista lhe pergunta sobre se alguma vez pensou que as sociedades podem progredir, responde: “Um progresso espiritual, sim, mas não no sentido religioso. Espiritual, quer dizer no espírito. É muito difícil e é por esse facto que a humanidade não avançou nem um centímetro desde há milénios. Hoje vemo-lo um pouco por todo o mundo: as pessoas odeiam-se, entram em guerra, matam-se”.
Na referida entrevista, o escritor considera ainda que a arte de viver passa pelo “desprendimento de tudo o que nos ensinam, de todos os valores e dogmas” e critica ainda “a tendência para a sociedade de consumo” considerando que “não é a posse de bens materiais que pode satisfazer um homem inteligente, que compreendeu o mundo em que vive”.
Tendo sido um defensor do ócio porque este representava para ele “um caminho privilegiado para a reflexão sobre a vida e o mundo”, os valores que defendeu tiveram sempre um cunho universal tal como os problemas que identificou como causadores de um mundo em permanente desequilíbrio.
Avesso a heroísmos, arrogante quando afirmou que os seus livros “salvaram vidas” e lúcido quando disse que “não há nada de mais imoral do que roubar sem riscos” sendo isso que “nos diferencia dos banqueiros e dos seus émulos que praticam o roubo legalizado”, o escritor apelidado como o “mais preguiçoso do mundo”, não deixou nunca de questionar o mundo e, mais importante, criticar de forma mordaz e por vezes caricatural os poderosos que é porventura a melhor forma de defender os de baixo
Em suma, o homem que um dia confessou que não conseguia escrever uma frase que não contivesse uma dose de rebelião, foi sem margem para dúvidas um revolucionário mesmo que a designação possa desagradar a alguns puristas sejam eles da política ou da literatura.
Bibliografia de Albert Cossery: Os Homens Esquecidos de Deus; Mendigos e Altivos; Uma Ambição no Deserto; Uma Conjura de Saltimbancos; A Casa da Morte Certa ; A Violência e o Escárnio; Mandriões no Vale Fértil; As Cores da Infâmia.
Os livros do autor foram todos publicados em Portugal pela Antígona - Editores Refractários
Adicionar novo comentário