A agenda antifeminista das direitas

08 de março 2024 - 11:46

A normalização da extrema-direita não se faz pela metade, ela arrasta a normalização das suas ideias sobre as mulheres, os seus corpos, os seus direitos. Por Cecília Honório.

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Foto de Paulete Matos - Arquivo.

Foi assim que Trump impôs a agenda antiaborto, e os exemplos de recuo de Malta ou da Polónia estão aqui à porta, evidenciando que os ataques aos direitos sexuais e reprodutivos fazem parte de uma agenda internacional.

Sobre esta agenda global, foi denunciado1 o “pipeline” que a transporta da conspiração para o mainstream - através de conferências e organizações com ar pomposo - bem como os mecanismos internacionais de financiamento que conduzem muitos milhões para os movimentos antiaborto.

Os alvos vão do feminismo e das defensoras da IVG, aos movimentos LGBTI, movimentos de imigrantes, e a todas e todos que a extrema-direita possa colocar no grande chapéu da “cultura marxista” que se propõe destruir através da “guerra cultural”. Os imanes ideológicos dos ataques aos direitos das mulheres são a “ideologia de género” e o complot da “grande substituição” demográfica que entendem ameaçar o norte branco. O chapéu da “ideologia de género” serviu ao Vox, como por cá ao seu congénere, para a oposição a diversos direitos, desde o aborto à lei de identidade de género, até à educação sexual nas escolas.

Por mais boçais que sejam argumentos e retórica, o tempo é de exigência e resistência não apenas porque a mancha da extrema-direita alastra, mas porque as direitas tradicionais digerem e legitimam a sua agenda. Nesta campanha, a gestão da imigração e do direito à IVG pela AD foi exemplar.

É com esperança na memória de Abril e nas lutas que travamos que podemos olhar para a radical agenda pró-vida da deputada da extrema-direita parlamentar como bizarria, quando o seu partido anunciou ao que vinha em 2019, com toda a tralha da “ideologia de género” e defendendo: “Aborto e cirurgias de mudança de sexo são retirados do conceito de saúde pública”2.

Mas o problema maior é sempre quem ganha o mainstream. É por isso que as declarações do cinzentão (mas inolvidável) secretário de Estado dos assuntos fiscais de Passos Coelho importam. Núncio falou porque podia falar, fê-lo como voz da AD e como agente do movimento pró-vida, que não se desvalorize nem uma virgula.

Ao abrir a boca procurou antecipar-se à concorrência e, ao mesmo tempo, recuperar o papel perdido do CDS. De facto, durante décadas após o 25 de Abril, o PSD e o CDS absorveram e consolaram o leque de ressabiados que hoje faz vénia a outro, dos ressabiados da velha elite, aos neofascistas, entre outros enraivecidos com a vida. Deixaram de o conseguir fazer e foi das suas entranhas que nasceu o seu cérebro, ao qual hoje dizem que não, assumindo a sua agenda, e amanhã dirão que sim, se precisarem.

Que não sobrem dúvidas: se a direita ganhar as próximas eleições, os nossos direitos serão ameaçados. Virão, porventura, com pés mais ou menos de lã, talvez misturem a família e o direito à maternidade com a defesa das “crianças nos úteros”, a conciliação do trabalho/família com o papel procriador das mulheres e a vontade de as controlar, talvez sorriam, mas tenhamos por certo que encontrarão maneira de esburacar a lei, de escavar novas dificuldades, de procurar novas fórmulas para humilhar as mulheres, como fizeram em 2015.

Temos todas as razões para que a 8 de março a rua seja nossa, porque o feminismo que nos une é aquele que faz todas as lutas, que não se perde em bolhas, que não deixa nem uma para trás. No dia 8, seremos a esperança contra o ódio, a esperança contra o medo.


1 Cf. Siân Norris, Bodies under siege, How far-right attack on reproductive rights went global, Verso, 2023.

2 “Programa político Chega, 2019”.