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Abaixo @ capital!, por Eduarda Dionísio

O Esquerda.net republica um artigo de Eduarda Dionísio, escritora e dinamizadora cultural falecida esta semana, publicado em janeiro de 1999 no jornal Combate, a propósito da capital da cultura que então se anunciava para o Porto.
Eduarda Dionísio.
Eduarda Dionísio. Foto da Casa da Achada.
Este artigo pode também ser ouvido no Alta Voz, o podcast de leitura de artigos longos do Esquerda.net. Para isso basta carregar nesta ligação.

1. A propósito da palavra capital e outras da mesma família

Desde sempre mantive relações difíceis com a palavra CAPITAL, no masculino ou no feminino, e seus derivados. Tenho mesmo histórias de frustrações várias de que ela é, sem sombra de dúvida, culpada.

Por exemplo, nunca consegui ler O CAPITAL, apesar de fazer parte da bibliografia básica do meu eventual pensamento. Estreei-me no jornalismo no primeiro número de A CAPITAL que entretanto se transformou no jornal que se sabe. Pertenci mais tarde a um movimento chamado CONTRA A ESCOLA CAPITALISTA e hoje o mais que consigo ouvir reivindicar é uma escola de qualidade. Actualmente ganho a vida a dar aulas no ensino recorrente que é feito de UNIDADES CAPITALIZÁVEIS, que são a forma mais primitiva de acumulação do não-saber. E, ainda por cima e para começar, nasci na CAPITAL, que na altura era a CAPITAL DO IMPÉRIO – o que fez de mim uma privilegiada e, por conseguinte, aumentou os meus problemas de consciência em relação a todo esse resto que era paisagem: a província propriamente dita e as chamadas províncias ultramarinas.

Até quando a palavra CAPITAL é um simples adjectivo, ela me incomoda. São os pecados CAPITAIS, é a pena CAPITAL e por aí fora. Concedo que, nestes casos, talvez sejam os substantivos de que ela é aliada natural - pecado, pena... - que a tornam mais insuportável. Mas ninguém a mandou fazer tais alianças...

Esta aversão à palavra CAPITAL nos seus vários géneros, morfologias, sentidos e utilizações é tanto mais estranha quanto a sua etimologia –“cabeça" - me foi sempre bastante simpática. Contradições da vida...

O facto é que, nessa luta permanente entre CAPITAL e trabalho, titânica e que por vezes toma a aparência do combate entre David e Golias, torci sempre pelo trabalho, apesar de defender o direito à preguiça. Até ao momento, perdi mais do que ganhei, quer em relação ao trabalho, quer em relação à preguiça.

Talvez isto tenha como causa nunca ter conseguido imaginar um CAPITALISTA (o destino felizmente tem-me poupado o contacto directo, de carne e osso, com semelhante profissão) que não fosse um homem (nunca uma mulher, reparo agora), vestido de preto (mas sem o ar triste dos funcionários das agências funerárias), de chapéu alto (mas sem ar divertido dos artistas de music-hall nem dos prestidigitadores de circo), gordo, barrigudo, fumando sempre o mesmo charuto. Procurem os patrões nos desenhos de Grosz e lá os encontrarão. Figura sinistra e incómoda, temos de concordar, infelizmente bem mais presente e menos simpática do que o Diabo das lutas entre o Bem e o Mal...

Quando descobri que existia a palavra ANTICAPITALISTA (engraçado, o dicionário do meu computador não reconhece esta palavra...), foi um alívio e pude clarificar as minhas relações com a palavra CAPITAL, pelo menos no masculino. ANTICAPITALISTA tinha alguma coisa de mágico: assim que saía da boca de alguém, os miseráveis de Vítor Hugo, de Daumier ou de Dickens, os comedores de batatas e os mineiros de Van Gogh transformavam-se em saudáveis camponeses ocupando as terras, em enérgicos operários ocupando fábricas e até em rebeldes estudantes ocupando escolas.

Isto foi um tempo atrás. Porque hoje, se acontece semelhante palavra sair-me da boca por inadvertência, olham-me com desconfiança, um pouco como se fosse uma alma do outro mundo. A ignorância que mostro ao pronunciá-la, em tempo de globalização igualizadora, acrescenta-se a uma outra ignorância real que confesso aqui: sempre tive dificuldade em saber quais eram as CAPITAIS dos países, sobretudo depois de me terem explicado que isso não dependia da sua dimensão nem da vida que tinham, mas de nelas estar instalado, naquele momento, o governo do país, da província ou da região. Por exemplo, nunca consegui perceber que, enquanto me passeava nas ruas de Berlim, não estava numa CAPITAL, mas sim na província...

2. O que é uma capital da cultura

Vem isto a propósito de uma outra realidade, nascida há poucos anos, que também sempre tive dificuldade em entender: as CAPITAIS (europeias) da cultura. É verdade que tive o privilégio de conviver em 1994 com Lisboa CAPITAL da Cultura. Bem vi como se pintavam de branco e amarelo, e depressa, as paredes históricas das casas da minha rua e de outras cores mais variadas as de outras ruas também históricas.

Mas só recentemente, a propósito do acontecimento que será a CAPITAL do Norte também vir a ser CAPITAL da Cultura (com Roterdão, o que tornará durante um ano a cultura europeia bicéfala...) já depois de se ter dado essa excitante e difícil passagem de século (cujo êxito dependerá da informática), é que pude perceber mais concretamente em que consistia uma CAPITAL da Cultura.

Isto graças ao jornal Público que teve a amabilidade de o explicar a leigos como todos nós, na página que dedicou ao eventual convite a António Pinto Ribeiro, programador da Culturgest, em Lisboa, para programar uma das CAPITAIS da Cultura 2001, o Porto: «O responsável pela programação de uma pequena (sic) fundação que se tornou num espaço alternativo (sic) de qualidade na vida cultural lisboeta foi convidado para fazer o mesmo (sic) no Porto 2001... A diferença mais visível (sic) entre programar a Culturgest e o Porto 2001 é o orçamento: de cerca de 300 mil contos para quatro milhões''» (Público, 20 Dez. 98).

Foi aqui que pude entender que a CAPITAL da Cultura 2001, se António Pinto Ribeiro aceitasse o convite, seria em ponto grande (ou seja com mais CAPITAL) uma Culturgest - leia-se, uma instituição cultural com CAPITAIS da CGD, uma instituição bancária com CAPITAIS do Estado que é proprietária e que funciona na CAPITAL. Como o convite afinal não foi aceite (ou feito), poderá vir a ser em ponto grande um CCB, uma Serralves, uma Casa das Artes, um S. João ou uma qualquer outra instituição cultural da CAPITAL ou da província, conforme o convite que for feito e aceite.

De facto, a cultura (visível e venerável) distribui-se hoje por um ainda assim razoável número de organismos (chamem-se fundações, centros culturais, festivais, capitais da cultura, expos ou mesmo mundiais ou europeus de futebol...) que apresentam um modelo semelhante e que usam cinco ingredientes em doses que, essas, são mais variáveis.

Eis a receita: 1° um edifício importante (ou um conjunto de edifícios) com tendências monumentais (novos ou «recuperados»), assinados de preferência, o que garante a modernidade da instituição e a sua inserção no «quotidiano das cidades»; 2° CAPITAIS públicos, o que garante a opção pelo «verdadeiramente cultural», a seriedade do empreendimento e a sua durabilidade; 3° CAPITAIS de empresas privadas, o que garante, através dos logotipos, o «realismo» do «projecto»; 4° gestores de reconhecido mérito que garantam a rentabilidade máxima da empresa (ou seja a sua aproximação possível à «economia privada») e que saibam utilizar, em conferências de imprensa, a expressão «custo zero»; 5° saberes adquiridos noutros terrenos, nomeadamente nas defuntas «sociedades de intelectuais e artistas» e nas decadentes «associações de amadores», o que garante o «serviço público», ou seja a contemplação dos vários «públicos» e dos vários «gostos».

É para darem cumprimento a este último ponto que entram em cena os «programadores» - que, ao contrário do que está a acontecer em relação à CAPITAL DA CULTURA 2001 (pelo menos na altura em que escrevo estas linhas, o que não quer dizer na altura em que elas forem publicadas...) não costumam fazer-se rogados em questões de acumulação ou aumento de CAPITAL, uma vez que não têm aquelas difíceis relações com a palavra, no feminino ou masculino (e de seus derivados) de que atrás falei. Para eles, a Cultura é, como o saber no ensino recorrente, «CAPITALIZÁVEL».

3. Uma profissão de futuro: programador cultural

Hoje, os programadores são. de facto, uma nova profissão. Começa mesmo a despontar uma «corporação» ou «ordem» (a palavra «sindicato» não parece, por várias razões, nada adequada).

É o que parece mostrar a primeira reunião de programadores que teve lugar na CAPITAL DA CULTURA 2001 (a notícia vinha no Expresso, ao lado de uma outra sobre o centenário de 1498 na índia...) num desses edifícios atrás referidos, o Rivoli. Tratou-se de uma «Assembleia Geral» onde não terá faltado «democracia», uma vez que em pé de igualdade se sentaram à mesma mesa, entre outros, representantes tanto do CCB, da Culturgest, do Acarte ou do Ministério da Cultura, como dos jovens (ou marginais) ZDB, Festival X, Danças na Cidade ou Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde, para se interrogarem em conjunto, entre outras coisas, sobre o seguinte: «Será o programador o responsável pelo desenvolvimento cultural e artístico, pela descoberta de novos valores?».

A obra dos referidos «programadores» está actualmente bem à vista, pelo menos para quem ler jornais. Basta ver o «programa» das comemorações dos 150 anos da Associação de Industriais (antigamente designados por CAPITALISTAS) dessa mesma CAPITAL da Cultura 2001 e descobre-se o dedo dos «programadores». O tema escolhido é o surrealismo!

É assim que a obra de Max Ernst é trazida ao Porto para assinar esses 150 anos da AIP (que, por sinal, é da idade do Manifesto do autor do CAPITAL). Torna-se possível juntar debaixo da mesma bandeira (ou seja na mesma página de jornal e no Europarque, entrada 500$00), os ditos «industriais» + um conjunto de obras de artistas que, numa ou noutra altura se reclamaram, ou ainda reclamam, de um movimento que num dos seus manifestos afirmava «Transformar o mundo», disse Marx, «mudar a vida», disse Rimbaud - «estas palavras de ordem são para nós uma só» + a «escolha dos críticos de Arte Contemporânea Portuguesa» + 60 e tal logotipos de empresas várias, umas que patrocinam (e note-se que há 3 patrocínios diferentes: de honra, oficiais e específicos), outras que colaboram, outras que apoiam e outras que organizam + o logotipo do Ministério da Cultura, que patrocina.

Ou seja: edifício importante + CAPITAIS do Estado + CAPITAIS privados + gestores de mérito + saberes e gostos vindos de outras bandas...

4. Alguns números

Para terminar, transcrevo aqui alguns números, já que essa palavra CAPITAL (no feminino ou no masculino), gosta de se alimentar de algarismos.

Segundo um inquérito recente, no Porto (futura CAPITAL da Cultura 2001, já constituída em S.A.), 2 em cada 3 habitantes raramente vão ao cinema, 80% não lêem regularmente, nem vão a concertos, nem a museus, nem ao teatro, 70% não compram discos, mas quase 90% vêem televisão.

Segundo as estatísticas oficiais, em 1994, ano da Lisboa CAPITAL (europeia) da Cultura, em todo o País (CAPITAL + Província) teriam funcionado 175 salas de cinema (452 em 1973; 482 em 1975) e 42 salas de teatro (79 em 1973; 106 em 1975); teria havido 186 estreias de filmes, 67% dos quais americanos (346 - dos quais um quarto americanos - em 1973; 443 - dos quais 17% americanos - em 1975); teria havido 7,1 milhões de idas ao cinema (28,9 milhões em 1973; 41,5 milhões em 1975) e 411 mil idas ao teatro (neste caso, mais do que no ano anterior, mas 1,1 milhões em 1973 e 1,3 milhões em 1975); ter-se-iam publicado, em 1ª edição, 4099 títulos de livros (5765 em 1973; 5574 em 1975) com uma tiragem de 13 milhões de exemplares (15 milhões em 1973; 29 milhões em 1975).

Não há meio de melhorar as minhas difíceis relações com a palavra CAPITAL!


Artigo publicado no jornal Combate em janeiro de 1999 e republicado na coletânea "Malhas que a Memória Tece" (Edições Combate).

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