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“É preciso proteger Portugal da União Europeia”

Em entrevista ao Esquerda.net, João Semedo explica porque a denúncia e o combate ao Tratado Orçamental são, para o Bloco de Esquerda, a questão central destas eleições europeias. O coordenador do Bloco defende a realização de um referendo ao Tratado, para que os portugueses se pronunciem sobre a política europeia e a integração de Portugal na Europa. Por Luis Leiria.
Foto Paulete Matos

Há motivos para comemorar a dita saída da troika de Portugal?

O Bloco de Esquerda tem dito, e bem, que sai a troika mas fica a austeridade. E se dúvidas houvesse sobre isso, bastaria pensar que Portugal foi um dos primeiros Estados-membros da União Europeia a aprovar o Tratado Orçamental. O Tratado é a lei-quadro da austeridade, que impõe um colete de forças na despesa pública dos Estados-membros, que na prática se traduz naquilo que nós temos assistido nos últimos três anos em Portugal. O Tratado Orçamental obriga os Estados a um défice estrutural das suas contas não superior a 0,5% do Produto Interno Bruto e prevê um conjunto de mecanismos automáticos sempre que o défice for superior a esse valor. Só admite défices excessivos quando a dívida não for superior a 60% do PIB. Isso praticamente não se verifica em qualquer Estado da União Europeia, e portanto é um garrote, uma pressão  brutal sobre a despesa pública, o que significa mais austeridade. Austeridade quer porque baixam os salários e as pensões e aumentam os impostos, austeridade porque aumentam os preços dos bens essenciais, e austeridade também porque para equilibrar as contas públicas baixa-se a despesa do Estado, fundamentalmente as despesas sociais, as mais necessárias para a esmagadora maioria da população: prestações sociais, educação, saúde, segurança social, reformas e aposentações.

E portanto nós no Bloco achamos que o Tratado Orçamental é muito clarificador dos diferentes posicionamentos das várias forças políticas, razão até pela qual ainda recentemente na nossa conferência – mas já a Mesa Nacional tinha decidido isso – nós consideramos que uma linha de fundo da nossa campanha eleitoral para as europeias é exatamente a mobilização popular, a mobilização cidadã contra o Tratado Orçamental, porque com ele Portugal deixa de ter qualquer capacidade de autonomamente e com toda a independência definir as políticas que entender. 

Mas como resolver o garrote da dívida?

O Bloco distingue-se também pela forma como defende que défice e dívida devem ser tratados. Não vemos outra solução para a dívida que não seja reestruturá-la. A economia portuguesa não liberta os recursos suficientes para que o Estado consiga pagar os juros de uma dívida tão elevada. Mesmo que os juros sejam reduzidos, mesmo que os prazos sejam alargados, tudo o que a economia liberta como recursos se esgota no pagamento dos juros aos credores. Portanto, a alternativa que nós temos é: ou os juros para pagar aos credores, ou a capacidade de dispor de receita pública para investir na economia e na despesa social. É exatamente isso que os credores não querem, é exatamente isso que o capital e os mercados não querem. O Tratado Orçamental é talvez a expressão mais elaborada, o garrote mais forte para dobrar os Estados, no sentido de os obrigar a uma austeridade permanente que sacrifique quem trabalha, sacrifique a remuneração do trabalho em benefício do capital.

A austeridade do Tratado Orçamental vai cair fundamentalmente sobre os países do Sul, ou os países periféricos da Europa...

São os países que têm as economias mais frágeis, são os países que mais facilmente podem ser obrigados a uma disciplina orçamental mais violenta. E essa disciplina orçamental torna as condições de base mais difíceis para vencer as suas próprias dificuldades. A realidade portuguesa é bastante emblemática nesse aspeto. Nós temos uma economia frágil. A austeridade condiciona ainda mais o crescimento da economia, a austeridade impôs uma retração do consumo, do mercado interno, o que é um fator de inibição, de contração da própria economia.

A austeridade funciona para os países mais frágeis como uma pescadinha de rabo na boca. E é exatamente por isso que nós dizemos com clareza: que o país precisa de uma política diferente que rejeite a austeridade e aposte na economia, no emprego, no Estado social, na despesa social. É isso que dá capacidade aos portugueses de viver melhor, de consumir mais, e por essa via estimular também o crescimento da economia.

Não é receita única, há muitas outras coisas que é preciso fazer, naturalmente, há as exportações, combater o desperdício, tudo isso é muito importante. Aliás, o Bloco fez aprovar na Assembleia da República o que nenhum governo até agora aplicou – o Orçamento de Base Zero, que é a forma mais rigorosa de cortar a despesa pública sem que esse corte prejudique seja o que for. Mas o “desperdício” de que a direita, os mercados, o governo e António José Seguro falam é um desperdício virtual, é pretexto para cortar naquilo que é essencial.

No Serviço Nacional de Saúde isso vê-se claramente. O governo anunciou que ia cortar as gorduras e deixou o SNS no osso. Essa é que é a realidade. O SNS está nos mínimos da capacidade de resposta que precisa de dar aos portugueses.

O Tratado Orçamental tem também uma outra dimensão que também é razão pela qual o colocamos no centro da nossa política: Portugal foi dos primeiros países a aprová-lo. Foi aprovado por iniciativa do governo do PSD e do CDS, mas também do PS de António José Seguro. E essa aprovação tão rápida e tão entusiasmada é bem a marca do que são os pontos de identidade gravíssimos entre o PS, o PSD e o CDS. Também aí o Tratado Orçamental diferencia a esquerda das outras forças políticas.

É compatível o Tratado Orçamental e a manutenção do Estado social?

O Tratado Orçamental, ao impor um garrote sobre a despesa pública, tem como consequência inevitável reduzir a despesa social e portanto condicionar o funcionamento dos serviços públicos. E a prazo reduzir esses serviços a uma caricatura e uma miniatura do que foram. Isso está a ver-se em Portugal. A direita, os liberais, têm um objetivo: é acabar com as funções sociais do Estado e entregar a sua gestão e a sua exploração ao setor privado. Um SNS conduzido e explorado pelos privados, uma escola pública conduzida e explorada pelos privados, e mesmo a Segurança Social em parte capitalizada pelos grupos financeiros. É este o plano. Substituir a natureza pública destas funções pela sua gestão, pela sua propriedade privada, pela sua mercantilização. Alargar ao mercado segmentos que até agora têm estado fora da exploração capitalista, nomeadamente todas aquelas que são as funções públicas, sociais do Estado.

Reduz-se a despesa pública de forma a que os serviços públicos fiquem uma caricatura do que eram e deveriam ser. E a pretexto disso o Estado irá depois dizer aos portugueses que é a sua privatização,  a entrega da escola pública, do Serviço Nacional de Saúde aos privados que vai recuperar a qualidade desses serviços. Como sabemos, isso é uma historieta, uma história mal contada. O que a direita e todos os neoliberais pretendem é entregar à exploração privada setores muito importantes da atividade económica, como são os serviços públicos. E, por outro lado, retirar aquilo que a Constituição consagra como um direito geral e universal de todos os cidadãos e cidadãs em Portugal, que é o direito à saúde, o direito à educação. Portanto, passarão a ser direitos dos quais só beneficiarão aqueles que tiverem dinheiro para os pagar. “Queres saúde, paga!”, como dizia um ministro do PSD. “Queres educação, paga!” É isso que está a ser preparado em Portugal e na Europa. É exatamente contra isso que nós faremos a nossa campanha para as eleições europeias.

Finalmente, o Bloco de Esquerda defendeu a realização de um referendo ao Tratado Orçamental. Queres falar sobre isso?

Sim, o centro da nossa campanha vai ser, por um lado, acabar com a austeridade, e a austeridade significa em Portugal esta política da direita e lá fora significa o Tratado Orçamental. E uma segunda grande ideia que é proteger Portugal da União Europeia, porque, na realidade, a UE deixou de ser aquela Europa pela qual nós nos batemos, a Europa do trabalho, a Europa da igualdade, a Europa da coesão, a Europa da paz, para transformar-se na Europa dos grandes negócios e dos mercados. E portanto o que dizemos é que é preciso defendermo-nos desta Europa de hoje e sobretudo que os portugueses se pronunciem uma vez que seja sobre a política europeia do país e sobre a integração de Portugal na Europa. Nunca os portugueses foram consultados sobre isso.  Parece-nos que o Tratado Orçamental, que é um instrumento tão violento que condiciona o futuro do país, é exatamente aquele que deve ser referendado.

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