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Alemanha: Fischer e Schröder concorrem no gás natural

Tubos de pipeline. Fotos de morak faxe, FlickRA
Alemanha envolveu duas das suas mais activas personalidades políticas
dos últimos anos em posições relevantes nos dois projectos
concorrentes de pipelines que trarão gás natural à Europa: Joschka
Fischer, de um lado, e Gerhard Schröder, do outro. João
Alexandrino Fernandes
explica
o que está em causa.

Na
sua edição de 25 de Junho, um dos jornais
diários de maior leitura e de maior reputação na Alemanha, o
Süddeutsche Zeitung,
de Munique, através de um artigo de Hubert Wetzel e citando uma
outra fonte, o Manager Magazin,
noticiou que Joschka Fischer, o antigo vice-chanceler e ministro dos
negócios estrangeiros do governo do chanceler Gerhard Schröder,
subscreveu agora um contrato para promover o projecto Nabucco e
colaborar na sua concretização.

Nabucco
é o nome dado a um pipeline destinado a trazer para a Europa o gás
natural da região do Mar Cáspio e do Próximo-Oriente. O pipeline
fará o seu caminho pela Turquia em direcção à Áustria. Terá uma
extensão de cerca de 3.300 Km, e, o que é extremamente importante,
não atravessará território da Rússia, fazendo desta forma com que
a Europa ocidental fique mais independente dos fornecimentos do gás
russo, evitando ainda o percurso por países inseguros, como é o
caso da Ucrânia. O projecto Nabucco, no qual também participa o
consórcio de energia alemão RWE, é um dos projectos de energia
mais importantes para a zona da União Europeia.

O
projecto defronta para já muitas dificuldades. Ainda não é certo
que países vão fornecer o gás para o pipeline. Possíveis países
exportadores da Ásia central ,como o Cazaquistão, o Uzbequistão e
o Turcomenistão têm até agora exportado o seu gás através da
Rússia. Moscovo vende-o depois à Europa, com uma percentagem de
lucro sobre o preço de aquisição. Acresce ainda o facto de que a
Turquia, como principal país de passagem do pipeline, exige
condições especiais no preço do gás.

Os
defensores do projecto Nabucco já há muito que exigem um maior
empenho político dos europeus. Uma primeira intervenção política
da União Europeia já ocorreu em 2007, quando a União Europeia
constituiu o antigo ministro dos negócios estrangeiros holandês
Jozias van Aartsen como seu encarregado para o projecto Nabucco. No
entanto, van Aarsten deixou o cargo pouco depois, para se tornar
presidente da câmara de Haia. Agora será Fischer o encarregado da
promoção política e pública do projecto, e a sua principal tarefa
será trabalhar na resolução dos problemas com a Turquia.

O
insólito da situação é que esta suposta nova actividade de
Joschka Fischer parece poder resultar numa concorrência com o seu
anterior chefe de governo, o ex-chanceler Gerhard Schröder. É que
este é o presidente do conselho de accionistas do pipeline Nord
Stream. O que é então o Nord Stream?

Nord
Stream é um projecto conjunto de quatro grandes fornecedores de
energia, Gazprom, BASF/Wintershall, E.ON Ruhrgas e Gasunie. O
accionista maioritário, e que detém a posição dominante no
projecto, é o consórcio russo Gazprom.

Trata-se
de um pipeline submarino, que vai ligar a Rússia e a União Europeia
pelo fundo do Mar Báltico. O pipeline terá cerca de 1.220 Km de
comprimento, afundará em Wyborg, na Rússia, perto de S. Petersburgo
e irá sair a Greifswald, na costa alemã do Mar Báltico. Será
composto por duas condutas paralelas. A primeira estará concluída
no final de 2011 e terá uma capacidade de transporte de cerca de
27,5 mil milhões de metros cúbicos de gás natural por ano. A
segunda conduta estará pronta em 2012 e aumentará a capacidade de
transporte do pipeline para o dobro, 55 mil milhões de metros
cúbicos por ano. Calcula-se que através deste fornecimento podem
ser abastecidas de energia 25 milhões de famílias europeias. O
custo total do investimento neste projecto está orçamentado em 7,4
mil milhões de euros. Prevendo-se que as importações de gás
natural pela União Europeia cresçam para 200 mil milhões de metros
cúbicos por ano até 2025, o Nord Stream, transportando 55 mil
milhões de metros cúbicos, cobrirá desta forma cerca de 25% das
necessidades totais.

Ora,
o problema que se coloca é que o Nord Stream será o meio principal
para a importação do gás natural da Rússia, e por esse motivo o
maior accionista do projecto é a Gazprom. A Gazprom tem todo o
interesse neste pipeline. Por um lado, porque lhe permite continuar
os seus lucrativos negócios com a União Europeia, dispondo para tal
de um novo meio de transporte, mais seguro, ocupando uma extensão
menor, de grande capacidade e construído com a tecnologia mais
avançada que existe para este tipo de obra. Não é portanto de
estranhar que a Gazprom tenha contratado para o projecto Nord Stream
o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder, amigo pessoal de
Vladimir Putin, e que logo ao deixar a chancelaria alemã começou o
seu trabalho para a Gazprom.

Por
outro lado, a Rússia dispõe assim de um meio político de pressão
sobre a União Europeia, que será tanto maior quanto mais a UE
depender de uma fonte de energia a que só tem acesso através das
relações com a Rússia.

Agora,
com a construção do pipeline Nabucco, em que estará envolvido
Joschka Fischer, a Rússia vê-se afectada nas suas perspectivas de
negócio com a União Europeia. O projecto Nabucco, prescindindo do
gás natural russo e evitando a passagem pelos territórios russo e
ucraniano, diminui a pressão que o governo russo pode exercer sobre
a União Europeia, deixando-lhe menos margem política para a
negociação dos preços dos fornecimentos. Embora a União Europeia
possa absorver os fornecimentos adicionais de gás do Nabucco,
continuando as suas compras à Rússia, a pressão que a Rússia
exerce sobre o preço terá necessariamente que abrandar. A própria
perspectiva da construção do Nabucco, sobre a qual não existem
ainda verdadeiras certezas quanto à viabilidade, já pode neste
momento ser usada pela União Europeia como instrumento de pressão
político.

Quem
mais vantagens retira de toda esta situação é a Alemanha. Note-se
que a Alemanha está a desenvolver a sua política de segurança
energética para o futuro. Por um lado, a Alemanha participa através
dos seus consórcios energéticos nos dois projectos aparentemente
concorrentes, a RWE no Nabucco e a E.On Ruhrgas no Nord Stream. Para
os consórcios alemães, essa concorrência não é importante,
importante para os interesses da Alemanha é ter uma participação
em todos. Depois note-se que a Alemanha envolveu duas das suas mais
activas personalidades políticas dos últimos anos em posições
relevantes nos dois projectos, Joschka Fischer no Nabucco e Gerhard
Schröder no Nord Stream. Por último a Alemanha tem posições
privilegiadas no controle da distribuição. No caso do Nord Stream,
porque o terminal do pipeline é em Greifswald, em território
alemão. O Nabucco, saindo do território da Turquia pela Bulgária,
atravessará a Roménia e a Hungria e vai terminar ao grande centro
energético austríaco em Baumgarten an der March, situado na
fronteira entre a Áustria e a Eslováquia, 40 Km a leste de Viena de
Áustria. A situação posterior é ainda indefinida, porque depois
de chegar à Áustria, o gás natural transportado pelo Nabucco terá
de ser distribuído pela União Europeia. Ora, em Baumgarten an der
March encontra-se o distribuidor de combustíveis austríaco OMV. A
OMV realiza os seus negócios com o leste europeu, excepção feita à
Itália, e funciona também como distribuidor do gás proveniente da
Rússia para a Europa Ocidental, ao qual o Nabucco pretende agora ser
uma alternativa. No entanto, já desde 1991 que a OMV também procura
implantar-se no mercado alemão, tendo já uma rede de distribuição
de combustíveis no sul da Alemanha. Por outro lado, a Alemanha já
definiu claramente os seus interesses quanto à distribuição
futura do gás transportado pelo Nabucco até Baumgarten an der
March, na medida em que do grupo de consórcios que vai construir o
pipeline, o único participante da Europa ocidental, para além da
OMV austríaca, é precisamente a RWE alemã. Ou seja, sem a
intervenção ou contra os interesses da Alemanha, não é razoável
pensar na distribuição do gás natural do Nabucco de Baumgarten an
der March para ocidente.

O
aprovisionamento energético é para a Alemanha uma questão
essencial. Como país industrializado e líder da economia europeia,
a Alemanha sabe que do fornecimento de energia depende o seu futuro
e, por isso, mesmo no quadro conflituoso da actual política
internacional, os políticos e industriais alemães traçam os seus
cenários, fazem as suas previsões e actuam em conformidade, sem
esperar que as insuficiências surjam. Esta é uma posição
partilhada por todos os quadrantes políticos alemães, da direita à
esquerda. Existem certamente divergências quanto aos métodos, mas
quanto à finalidade, não há duas opiniões: a energia é uma
questão fundamental para o futuro do país, que tem de ser resolvida
agora, e não um dia, quando os problemas se manifestassem. Aí
seria demasiado tarde.

E
nós? Greifswald e Baumgarten an der March
ficam muito longe de Portugal. O gás natural que no futuro nos
chegar terá de ser para aqui transportado, de uma forma ou de outra.
E de algo podemos desde já ter a certeza: tal como o caudal dos rios
que vêem de Espanha, dos quais só nos chega a água que o nosso
enorme vizinho deixa passar, também aqui só nos chegará a energia
que os países industrializados do centro e norte da Europa deixarem
cá chegar; a nossa participação na União Europeia não será
suficiente para alterar esta condicionante.

Devíamos
começar a pensar nisso seriamente. Porque enquanto pensarmos que
política de energia consiste em vender aos interesses privados os
recursos naturais públicos, sem que daí resulte qualquer melhoria
ou acréscimo de responsabilidade perante a população pelos
serviços prestados; enquanto pensarmos que política de energia
consiste em enriquecer os detentores dos grandes interesses privados,
depauperando o nosso já escasso sector público; enquanto pensarmos
que política de energia consiste em cortar o abastecimento de água
e luz às famílias que, empobrecidas, não conseguem pagar as suas
contas; enquanto pensarmos que política de energia consiste em não
repercutir no consumidor as descidas do preço do petróleo para
aumentar os lucros da distribuidora, então, e para além do
manifesto abuso dos recursos do país e da exploração anti-social
da sua população, não estaremos a pensar na nossa posição no
futuro. Se continuamos a proceder assim, e dada a evolução a que
assistimos, não vamos apenas um dia ficar mais pobres, vamos ter que
construir sujeições económicas e políticas tão profundas que
implicarão algo de mais importante: implicarão que deixaremos de
poder subsistir como país independente.

João
Alexandrino Fernandes

Fontes:
Engagement in der Erdgas-Branche : "Fischer
berät Nabucco", artigo de Hubert
Wetzel,
no Sueddeutsche Zeitung de 25.06.09, em www.sueddeutsche.de.
Sobre
o projecto Nord Stream, a informação ao público em
www.nord-stream.com,
sobre o projecto Nabucco, a informação ao público em
www.nabucco-pipeline.com,
sobre a OMV, a informação ao público em www.omv.com
, sobre Baumgarten an der March, entre muitos outros sites possíveis,
Georg
Renner
(Die Presse), "Lokalaugenschein: Am österreichischen Ende der
Pipeline", artigo de 08.01.09, em http://diepresse.com.

 

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