Eis-nos chegados a 1 de Setembro de 2015 e ao início de mais um ano letivo.
Para não variar muito dos anos anteriores no que respeita ao surgimento de normas e material legislativo em cima do arranque dos anos letivos, saiu no passado dia 27 de Agosto a lista provisória de atribuição de alunos/ financiamento a atribuir em 2015/16, resultante do novo processo de candidatura das escolas do Ensino Artístico Especializado (EAE) efetuado em princípios de Agosto.
Estamos perante um momento de hecatombe deste subsistema de ensino e, o que talvez seja ainda mais grave, perante um momento de negação da própria política.
Da política espera-se razão, reforma, lógica, projeto, sentido de equilíbrio e de justiça no tratamento do bem comum. No documento do ministério, infelizmente, encontramos apenas o oposto. Livre arbítrio, cortes cegos, irracionalidade, nenhum sentido de reforma, nenhum sentido de valorização ou dignificação do EAE. Uma miséria moral e política. Numa palavra apenas encontramos ideologia, faltando tudo o resto. Mais uma oportunidade perdida de reestruturar, racionalizar e fortalecer estatutariamente o EAE, ou seja, temos apenas mais um momento de negação de tudo o que a política deveria ser.
Vamos por partes.
1. Sobre o financiamento
As zonas de Grande Lisboa e Algarve sempre foram financiadas pelo Orçamento de Estado (OE) no que a este ensino diz respeito. Todas a zonas do país exteriores às referidas, passaram a ser financiadas quase em exclusivo por Fundos Comunitários a partir de 2011. Estas voltam no presente ano a ser financiadas pelo OE, ficando de novo todo o país em situação igualitária no que respeita à forma de financiamento.
As escolas das zonas de Grande Lisboa e Algarve estão, desde 2011, sob um processo de congelamento total e até de diminuição, no que concerne ao número de alunos e respetivo financiamento. Não foi possível a estas escolas crescer, desde então, em número de alunos e as mesmas tiveram, que me lembre, pelo menos dois cortes orçamentais noutros tantos anos.
Ao invés das anteriores, às escolas que desde 2011 foram financiadas através de Fundos Comunitários, foi permitido crescer de forma desregulada, em alguns casos mesmo exponencial, em número de alunos e respetivos montantes de financiamento. Não obstante alguns problemas na forma de obtenção desses Fundos e de vicissitudes várias no processo de financiamento (atrasos no envio das verbas; complexidade burocrática, etc.), foi possível a estas escolas crescerem em número de alunos, criando, por assim dizer, um ratio entre população residente/alunos de EAE nestas regiões muito superior ao atualmente existente nas referidas zonas de Grande Lisboa e Algarve que, como também já foi referido, se mantiveram congeladas.
Dito de forma mais simples, a grande maioria das escolas das chamadas zonas de convergência, saíram em 2011 do OE com um número Y de alunos e voltam em 2015 ao OE com um número Y x 3, ou Y x 4, ou Y x 5. Nalguns casos por ventura mais. Tudo isto devido a uma total ausência de regulação, durante um período em que quem pagava era a Europa. Mais um pequeno exemplo de como, devido à mais elementar falta de cuidado, o Estado pode sair fortemente lesado. A grande maioria destas escolas voltam este ano ao OE absolutamente inflacionadas, desmesuradas, não refletindo, em muitos casos, qualquer relação minimamente equilibrada entre a população existente e o número de alunos que estuda música. O Estado fica agora, como se costuma dizer (e passe o plebeísmo), com o menino nos braços!
Facilmente se pode constatar no edital de candidatura do atual concurso que, comparando as duas principais zonas do país, a disparidade é enorme. Enquanto à zona de Grande Porto é possível candidatar cerca de 4000 alunos, à zona de Grande Lisboa é possível candidatar apenas cerca de 2000.
Penso que se facilmente se percebe, por toda a explicação anterior, que esta disparidade de números se deve, fundamentalmente, ao facto das duas zonas referidas terem tido normas e fontes de financiamento diferenciados durante os últimos 4 anos.
Por tudo isto deveria o poder político, na altura de atribuir valores concretos, ter acautelado algum equilíbrio e ter introduzido alguns fatores de diferenciação no tratamento feito às escolas.
É da mais elementar injustiça tratar da mesma maneira escolas que estão congeladas há 4 anos e escolas que estiveram a crescer durante esses mesmos 4 anos. Se o Estado quer ou precisa de cortar financiamento terá de o fazer, por força da mais elementar justiça, nas escolas que durante os anos anteriores cresceram 300, 400 ou 500%, nunca nas que estiveram neste período, por imposição do próprio governo, numa situação de congelamento total e até de decréscimo orçamental.
O tratamento dado às populações não é aqui um assunto de somenos importância.
É aceitável para alguém que numa zona seja possível inscrever 4.000 alunos e noutra zona, com característica idênticas e por ventura até com mais população, seja possível inscrever apenas 2.000? Quais são as regras de equidade e qual é a lógica? Não se percebe e por isso se falou lá atrás de falta de lógica, de irracionalidade e livre arbítrio.
Tentar encontrar algum fio condutor lógico na interpretação dos resultados da candidatura é um exercício absurdo. A título de exemplo refira-se apenas que escolas com valores de classificação nominal muito baixa, têm cortes orçamentais substancialmente menores do que escolas com classificação bastante mais alta. Os exemplos de absurdo sucedem-se mas o seguinte roça o grotesco. O concelho de Almada candidatou 41 alunos de iniciação e foram-lhe atribuídos apenas 10, enquanto que, numa única escola da zona de Vale do Ave, foram atribuídos cerca de 250 alunos de iniciação!
2. Sobre o desemprego
Os cortes orçamentais são algo díspares em termos nacionais, mas esperamos não errar muito se dissermos que se situam, em média, a rondar os 25%. Cortar de repente 1/4 ou 1/5 no funcionamento de uma qualquer instituição, implica necessariamente reestruturações e despedimentos.
Se se vierem a confirmar estes cortes brutais, com certeza iremos assistir a despedimentos de trabalhadores e a ainda mais precarização das condições de trabalho, que são já nesta altura bastante fracas. Se forem despedidos em média 3 professores por escola estaremos a falar, multiplicando por 116 escolas, de cerca de 350 professores desempregados no início do ano letivo. Estes professores, como o mercado de trabalho se restringiu no todo nacional, não vão pura e simplesmente encontrar qualquer colocação.
Se uma reestruturação desta magnitude se fizesse durante o terceiro período, em Abril ou em Maio, a situação seria má, mas daria às pessoas, ainda assim, a possibilidade de tentarem reorganizar as suas vidas. Fazer uma reestruturação deste calibre e com estas características em cima do início do ano letivo, reveste-se de requintes de malvadez. Já não é só mau, é cruel!
Desmotivação e nalguns casos mesmo saturação por parte dos professores, baixos salários, excesso de trabalho, aulas cada vez mais mal preparadas e dadas sem qualquer convicção levam a que tipo de resultados? A resposta é óbvia, levam a resultados péssimos para todos, alunos e docentes. Os números e as classificações até poderão ser manipulados, maquilhados e embelezados mas não nos iludamos, os resultados absolutos serão sempre maus e a tendência é que sejam cada vez piores. Com estas políticas estamos num caminho inequívoco de retrocesso da qualidade do ensino e, portanto, civilizacional.
3. Sobre os interesses e demais assuntos
Ao longo destes últimos anos, na área do EAE, nem todos perderam. Os que ambicionaram ter nas suas escolas projetos de verdadeiros conservatórios de música e que respeitaram as convenções laborais, mantendo a mínima decência moral que as mesmas exigem, perderam e têm hoje passivos que se vão acumulando sucessivamente. Os que se contentaram em ter projetos de arremedo de conservatório de música, despediram os professores mais habilitados e os mais experientes, contornaram as regras mais elementares de decência laboral e até moral, precarizaram tudo o que podiam e o que não podiam, esses ganharam e há até casos que saem beneficiados com este processo de candidatura.
A explicação para tal é muito simples. Nas zonas que foram abrangidas pelos Fundos Comunitários a precarização laboral, em alguns casos, levou a que o custo/aluno se deprimisse bastante e ficasse relativamente baixo. A este propósito diga-se que a imaginação dos empregadores não tem limites, dou apenas um exemplo mas há muitos mais. Tive conhecimento de uma escola que, em Agosto, despede todo o corpo docente! A grande maioria destes docentes vai então pedir o subsídio de desemprego e volta a ser contratada no reinício das aulas. Parece mentira, mas não é.
No entanto, algumas escolas escrupulosas das referidas zonas abrangidas pelos Fundos Comunitários estão, com este processo de candidatura, também em profunda angustia porque, com o que está para já prometido, não conseguirão cobrir todos os custos de funcionamento.
No entanto aqui o problema é diferente e acaba por ser transversal a todas as escolas do país, quer as que estiveram sob influência do POPH, quer as que sempre se mantiveram sob financiamento do OE.
Apesar de, por inúmeras vezes, termos pedido ao governo que não eliminasse o financiamento por escalões diferenciados, onde, no escalão mais alto, havia uma majoração para as escolas com corpos docentes mais habilitados e mais antigos, o governo decidiu ignorar todos os nossos apelos e eliminou esta forma de financiar, criando um escalão único.
O resultado prático disto é muito simples de perceber.
Numa escola com um corpo docente mais habilitado e/ou mais antigo o custo/aluno é mais alto que o valor agora pago em escalão único. As escolas vêem-se desta forma duplamente lesadas, por um lado o número de alunos baixa e, por outro, o custo/aluno também baixa.
Objetivamente não se percebe um alcance desta medida que não seja o de apenas cortar cegamente, com vista à eliminação de despesa, assim, de forma primária, sem pensar nem nas implicações, nem nas consequências. Acaso quererão acabar com as carreiras docentes? E se acabarem as carreiras docentes, os salários vão nivelar-se por cima ou por baixo? A julgar pelos valores que estão em cima da mesa, seguramente que será por baixo.
Enquanto até aqui havia um incentivo para que as escolas contratassem professores mais habilitados ou mais experientes, neste momento passa a acontecer exatamente o inverso. As escolas têm todo o interesse em livrar-se dos mais velhos e em contratar recém licenciados. Como o escalão de financiamento é único, quanto mais barato fôr o custo do professor, quanto mais barato for o custo do trabalho, melhor para escolas.
Este é o estado em que este governo deixa o EAE e o miserável exemplo moral que vamos deixando às futuras gerações. Quem mais conseguir explorar o seu semelhante, melhor triunfará. O trabalho como fator de dignidade, força motriz da construção da Europa desde a segunda guerra mundial, é, no pensamento do liberalismo desenfreado, o alvo a abater. A séria redistribuição da riqueza, como fator de coesão social, não cabe neste pensamento político.
4. Epílogo
Um conservatório de música é um espaço para trabalhar a alta cultura, um espaço para filosofar, através da estética dos sons e da história, o percurso da humanidade.
Um conservatório de música não é seguramente um espaço de ocupação de tempos livres, de mera sensibilização às linguagens artísticas, de banalização ou simples fruição lúdica.
Como é referido num estudo/reflexão, efetuado em 1998, sobre o ensino artístico, promovido pelo Ministério da Educação:
"(...) A revalorização do papel do ensino da música implica uma reflexão profunda sobre quais devem ser os seus objetivos (...)"
"(...) Os agentes educativos precisam de encontrar na sociedade e cultura os meios e o reconhecimento necessários ao sucesso do seu desempenho."
"(...) estes ensino está a cumprir finalidades que são do ensino genérico, tendo-se transformado no seu "apêndice cultural" com o consequente desperdício de recursos (...)
Estou neste ensino há mais de 20 anos. Fui assistindo ao longo dos anos a várias tentativas de reforma, com especial incremento legislativo nestes últimos após a massificação do ensino articulado. A conclusão que tiro é que ainda não houve qualquer reforma digna desse nome, principalmente ao nível da reestruturação e racionalização da rede de escolas.
Cada novo governo que chega tenta introduzir alguma ideia e produz para isso legislação completamente avulsa, para assegurar o funcionamento imediato dessa sua ideia. O que vamos tendo é uma absoluta manta de retalho legislativa, adequada às necessidades de cada momento, em vez de um enquadramento simples e objetivo deste subsistema de ensino.
Sendo um tipo de ensino bastante dispendioso, que não visa a empregabilidade imediata, que muito dificilmente gera algum lucro para as escolas, pura e simplesmente não acredito que este possa ser assegurado de forma satisfatória unicamente por operadores privados. Com certeza que os operadores privados são necessários e têm a sua razão de existir, mas deveriam sempre ter como referência e trabalhar na esfera do sistema público. Este deveria ser de excelência e abranger todo o território nacional, com pelo menos uma escola por capital de distrito.
As assimetrias, que sempre existiram, entre a qualidade proporcionada no sistema público em comparação com o sistema privado, que são até acentuadas com esta nova legislação (fim do regime supletivo no privado, por ex.) e a gestão de caráter empresarial do sistema privado que, também por razões de sobrevivência, tem vindo paulatinamente a espartilhar as condições de trabalho até aos limites do razoável, espelham bem essa necessidade de termos um sistema público que introduza estatuto e racionalidade em todo o sistema.
Vivemos hoje em Portugal uma situação perfeitamente sui generis na rede de conservatórios públicos. O conservatório de música é uma escola que ministra ensino básico e secundário, no entanto só há 5 cidades no país (Portugal continental), 5 capitais de distrito, que possuem esta oferta. E, ao que parece, toda a gente acha isto normal. Há 5 cidades com direito a possuir esta oferta, há 13 cidades sem esse direito e ninguém se incomoda, ninguém se questiona.
Um Estado forte não poderá ser apenas um bom cobrador de impostos. Terá sempre de cuidar o mais possível do estatuto dos seus pilares fundamentais, conferindo-lhes importância, seriedade, equilíbrio. Justiça, cultura, educação, saúde, segurança, são a estrutura na qual todos nos revemos enquanto sociedade e enquanto povo. Sem isso não há sentido de identidade, nem de pertença.
A elevação do estatuto desta área do conhecimento, a excelência na qualidade de ensino, a elevação da dignidade e afirmação do músico erudito na sociedade, são tudo aspetos dificilmente alcançáveis apenas com umas compras de serviços precários, de baixo custo, a umas quantas escolas privadas por esse país fora, por muito bem intencionadas que algumas delas sejam.
5. Em Resumo
A situação criada nas escolas das zonas de Grande Lisboa e Algarve é absolutamente injusta e intolerável. A estas escolas não só não devem ser acometidos quaisquer cortes, como deveria até ser permitido crescer nalguma margem percentual, em virtude do congelamento que sofreram nos últimos anos no número de alunos e nos cortes orçamentais. De salientar a este propósito a falta de equidade (penso que inconstitucional) no tratamento entre as populações de várias regiões.
A muito provável vaga de despedimentos que irá ser criada por estas medidas.
A precariedade que irá instituir-se, tornar-se regra, com a criação do financiamento por escalão único.
A necessidade de repensar de forma estrutural os objetivos do EAE, bem como toda a rede de conservatórios de música a nível nacional.
Grândola, 2 de Setembro de 2015
Artigo de Rui Nabais, professor do ensino artístico