Quão perto estamos de uma vacina para a Covid-19?

06 de May 2020 - 14:34

“Claramente, não vem a tempo do primeiro pico da Covid-19. A pergunta é se virá a tempo do segundo pico”, afirma neste artigo Ana Isabel Silva, bioquímica e investigadora do I3S.

porAna Isabel Silva

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Vacina para o covid-19, "no melhor dos cenários, apenas no próximo ano estará pronta" Foto creative commons
Vacina para o covid-19, "no melhor dos cenários, apenas no próximo ano estará pronta" Foto creative commons

O desenvolvimento de uma vacina para a Covid-19 tem sido uma preocupação de todos. Tem aberto telejornais e preenchido timelines que preocupam a sociedade civil, alertada para o facto de uma vacina ser a solução para o nosso maior problema. Uma alternativa conhecida seria o desenvolvimento de imunidade de grupo. Mas isso só seria conseguido caso um número elevado da população contraísse o vírus e ficasse depois imune ao mesmo, sem capacidade de o transmitir. Uma das preocupações e dúvidas relativamente a esta solução foi a possibilidade levantada de pessoas poderem ser infetadas uma segunda vez num curto espaço de tempo, não havendo portanto garantias de imunidade. No entanto, foi já demonstrado que a segunda infeção nestas pessoas se tratou de falsos positivos (Lan et al., 2020). Na comunidade científica, há grandes expectativas de que haja uma imunidade a médio-prazo para este vírus. A imunidade de grupo seria então uma maneira “natural” de controlo da transmissão do vírus. Porém, os estudos mostram que, apesar deste vírus estar bastante disseminado a nível mundial, ainda não afetou população suficiente para estarmos sequer próximos de atingir essa imunidade de grupo. Consequentemente, a única solução viável no tempo presente é o aparecimento de uma vacina.

Mas estará essa vacina para breve? Porque está a demorar tanto tempo a ser desenvolvida?

nunca uma vacina para um coronavírus foi validada para humanos

É importante perceber que nunca uma vacina para um coronavírus foi validada para humanos. Recentemente, foi noticiado que uma vacina para este novo coronavírus só estaria pronta em 2036. Há alguma verdade nesta previsão? Para respondermos melhor a esta pergunta, é importante perceber os passos necessários para a criação de uma vacina. Começa sempre com investigação laboratorial. Esta investigação é o que nos permite conhecer melhor o vírus com o qual estamos a lidar e perceber que abordagens poderão ser usadas numa vacina. Depois de escolhida esta abordagem, começam-se os ensaios pré-clínicos. Baseiam-se em experiências em animais que permitem ter uma primeira ideia sobre a segurança e eficácia dos componentes da vacina. Os animais normalmente usados nestas experiências são os murganhos ou ratos. No entanto, no caso do coronavírus, isso demonstrou-se não ser possível. Foi necessário então encontrar uma solução, como foi o caso do furão.

quando há segurança suficiente para começar os testes em humanos, passamos para a fase clínica. Esta é dividida em 3 fases

Finalmente, quando há segurança suficiente para começar os testes em humanos, passamos para a fase clínica. Esta é dividida em 3 fases. Na fase 1, apenas se testam possíveis efeitos secundários. Assim, são usados voluntários saudáveis e monitorizados para reações adversas durante algum tempo. Apenas na fase 2 se testa realmente a eficácia da vacina na proteção contra a infeção. Nesta fase, apenas algumas centenas de pessoas são testadas, enquanto na fase 3 este número aumenta substancialmente. Mesmo depois de todos estes passos feitos, é ainda necessária a produção da vacina em grandes quantidades. Por isso, consoante o tipo de vacina desenvolvida, serão necessárias infraestruturas adequadas e com a devida segurança. Depois de se garantir esta produção em grande escala, é necessária a aprovação pelas autoridades competentes e consequente utilização por parte dos serviços de saúde. No final de todo o processo, é necessário garantir a sua distribuição a toda a população. Todos estes processos levam, normalmente, décadas a ser desenvolvidos. A previsão da vacina para a Covid-19, para 2036 teve todos estes fatores em conta, calculando o tempo médio esperado para cada um dos passos. No entanto, esta previsão ignora vários factos triviais na investigação atual à vacina para a Covid. Este novo vírus, SARS-CoV-2, tem várias semelhanças com outros coronavírus já conhecidos. Consequentemente, muito já se sabe sobre este vírus. Aliás, várias potenciais vacinas foram desenvolvidas aquando do surto do SARS-CoV-1 e algumas chegaram ao início de ensaios clínicos. No entanto, com a erradicação deste vírus, muitos governos, incluindo o português, cortaram brutalmente o financiamento a esta investigação. Pensa-se que, pela semelhança entre estes dois vírus, uma vacina desenvolvida para o primeiro, teria grandes probabilidades de ser eficaz neste momento. Apesar do financiamento à Ciência ser bastante burocrático, o que poderia atrasar a investigação em curso, a verdade é que, no caso concreto, tem existido uma desbrurocratização e maior rapidez na garantia de fundos para o efeito. Tudo isto, permite diminuir bastante o tempo necessário para a investigação laboratorial. Um passo a ser encurtado é também o desenvolvimento de infrasestruturas necessárias para a possibilidade de produzir uma vacina que se demonstre eficaz. Estas infraestruturas estão já a ser pensadas e desenvolvidas, mesmo antes de uma vacina aprovada.

 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a 30 de abril, estavam a ser estudadas pelo menos cento e duas vacinas para a Covid-19. Mais de 70% das mesmas estão a ser conduzidas por empresas privadas. As abordagens diferem entre as equipas. Algumas estão a usar o vírus na sua forma inativa ou enfraquecida. Esta é uma abordagem recorrente, mas obviamente são necessários muitos testes de segurança, de maneira a garantir que não causa infeção a quem for administrada. Outros grupos querem administrar proteínas ou material genético do vírus. Ambas estas estratégias têm como objetivo fazer o corpo agir como se de uma infeção real se tratasse e assim desenvolver a resposta imunitária.

Apenas oito passaram já aos ensaios clínicos, ou seja, estão já a ser testadas em humanos

Uma esmagadora maioria delas está ainda no passo de ensaios pré-clínicos. Apenas oito passaram já aos ensaios clínicos, ou seja, estão já a ser testadas em humanos. Destas, seis estão na fase 1 e algumas aguardam ainda aprovação das entidades reguladoras. As maiores expectativas recaem sobre a duas mais avançadas, que se encontram neste momento no início da fase 2. Ambas usam a mesma estratégia, usam adenovírus que expressam à sua superfície uma proteína do novo coronavírus. Isto obriga o corpo a produzir uma resposta imunitária. Na ocorrência de uma infeção pelo SARS-CoV-2, o corpo terá já memória da mesma e será capaz de atuar muito mais rápida e efetivamente. Como acima mencionado, estas vacinas encontram-se na fase 2 dos ensaios clínicos. É importante relembrar que é nesta fase que uma maior percentagem de ensaios falham.

Um dos grupos responsáveis por uma destas vacinas pertence à Universidade de Oxford. Estes investigadores esperam ter mais de mil voluntários a participar no estudo. Irão monitorizá-los durante, pelo menos, seis meses. Durante este tempo, os voluntários serão monitorizados para reações adversas ao tratamento e sujeitos a vários testes de diagnóstico para perceber se são infetados pelo novo coronavírus. Serão também quantificados os anticorpos presentes no sangue destes voluntários. O estudo está previsto estar finalizado apenas em maio de 2021. A segunda vacina em fase 2 está a ser desenvolvida através de uma colaboração entre o Instituto de Biotecnologia de Beijing e a CanSino Biological Inc., na China. Este grupo foi responsável pelo desenvolvimento da vacina para o Ébola. Os parâmetros analisados são muito semelhantes aos descritos acima para o grupo de Oxford.

Mas então, se estas duas potenciais vacinas estão já em fase tão avançadas, porque são necessários tantos ensaios clínicos e pré-clínicos? Por duas razões essenciais. Uma delas, a mais evidente, é que a esmagadora maioria destes ensaios não irão funcionar. E portanto, quantas mais opções tivermos à partida, maior a possibilidade de chegarmos ao fim com alguma delas sendo viável. A segunda razão é que podemos não necessitar de uma vacina, mas sim de várias. Como sabemos que a produção e distribuição serão grandes problemas no acesso a estas vacinas, ter várias disponíveis poderá ser uma forma de colmatar este problema.

Então, e no final como se escolhem as melhores vacinas?

A OMS já desenvolveu um plano (https://www.who.int/blueprint/priority-diseases/key-action/Outline_CoreProtocol_vaccine_trial_09042020.pdf?ua=1), com o intuito de testar um grande número de vacinas num único estudo clinico. Isto irá permitir comparar as vacinas entre si, usando os mesmo critérios.

Tendo em conta o que foi dito acima sobre os atuais ensaios clínicos, espera-se que demorem, no mínimo mais seis meses. Esperar uma vacina antes desse tempo é completamente irrealista. Aliás, vários cientistas têm alertado para que que não haja demasiada pressa no seu desenvolvimento (Jiang, 2020). Receiam que a pressão pública possa levar a atalhos que se tornarão danosos para a saúde pública.

É importante, nesta matéria, que a OMS aja enquanto reguladora da distribuição, até porque já tem precedentes nesse sentido. Apenas isso garantirá uma distribuição justa a nível mundial

A previsão é que, depois de se perceber que uma vacina é segura e eficaz, possa ser usada, inicialmente, como vacina de emergência. Esta seria destinada apenas a pessoas de alto risco, como profissionais de saúde. Assim, mesmo que uma vacina esteja próxima não significa que toda a gente a receberá ao mesmo tempo.

Algo que está a preocupar a comunidade e decisores políticos é a capacidade de distribuição da vacina. É possível que, no país em que a vacina for produzida, o Governo possa ordenar a sua venda apenas a nível interno. Isto garante que os seus cidadãos serão os primeiros a ser imunizados. Muito provavelmente, seria a ideia de Donald Trump quando quis adquirir a uma empresa alemã a patente de uma potencial vacina que está a desenvolver. Na verdade, não há nenhuma lei que proíba os países de o fazer. É importante, nesta matéria, que a OMS aja enquanto reguladora da distribuição, até porque já tem precedentes nesse sentido. Apenas isso garantirá uma distribuição justa a nível mundial.

Concluindo, a previsão para uma vacina para o novo coronavírus será apenas em 2036? Como vimos, essa previsão é meramente teórica e não se adequa ao atual problema. Teremos então uma vacina já nos próximos meses? Também isso não parece possível. No melhor dos cenários, apenas no próximo ano estará pronta. Claramente, não vem a tempo do primeiro pico da Covid-19. A pergunta é se virá a tempo do segundo pico. Aliás, se esta doença se tratar de uma doença sazonal, o desenvolvimento de uma vacina será crucial. Só o tempo o dirá.

Jiang, S. (2020). Don't rush to deploy COVID-19 vaccines and drugs without sufficient safety guarantees. Nature, 579(7799), 321. doi:10.1038/d41586-020-00751-9

Lan, L., Xu, D., Ye, G., Xia, C., Wang, S., Li, Y., & Xu, H. (2020). Positive RT-PCR Test Results in Patients Recovered From COVID-19. Jama. doi:10.1001/jama.2020.2783

Texto de Ana Isabel Silva, bioquímica e investigadora do I3S

Ana Isabel Silva
Sobre o/a autor(a)

Ana Isabel Silva

Bioquímica e investigadora doutoranda no I3S