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Porque precisamos da teoria da reprodução social para entender a crise do coronavírus

Nesta crise, temos de exigir que quem presta serviços essenciais, a grande maioria mulheres, receba a dignidade e os salários que merecem. Depois dela devemos exigir que a vida e a reprodução da vida se tornem a base da organização social. Por Tithi Bhattacharya.
Ilustração: "A Woman's Work Is Never Done," 1974. Red Women’s Workshop.
Ilustração: "A Woman's Work Is Never Done," 1974. Red Women’s Workshop.

Quando pensar nessa crise nos próximos anos, duas imagens ficarão comigo. Uma é a de italianos comuns cantando juntos nas varandas em solidariedade com os vizinhos isolados e cuidadoras na linha de frente. A outra é da polícia indiana que atacou com jatos de lixívia trabalhadores migrantes e os seus filhos por “ousarem” andar pelo país depois de os seus locais de trabalho terem sido fechados durante o confinamento e não haver transporte público disponível para chegarem a casa.

As imagens incorporam, respetivamente, a resposta das pessoas comuns à pandemia do coronavírus e a resposta própria do capitalismo. Uma é a solidariedade e o cuidado com a manutenção da vida; a outra, a força disciplinar no interesse do lucro.

Exemplos de respostas diametralmente opostas marcam o cenário da atual crise. Os agricultores palestinianos estão a deixar produtos frescos na beira da estrada para as pessoas que não podem comprar alimentos; enquanto Victor Orbán, da Hungria, usou a crise para governar por decreto. Trabalhadores da General Electric nos EUA estão a forçar a sua empresa a produzir ventiladores; enquanto empresas de planos de saúde estão a tentar manter seus lucros, a cortar salários e benefícios para os funcionários que estão a tratar pacientes com coronavírus.

A pandemia está a expor tragicamente que, enquanto o necessário é concentração em salvar e sustentar a vida, o capitalismo preocupa-se apenas em salvar a economia ou os lucros; é nessa medida que um político do Texas, representando totalmente a sua classe, deseja que os americanos sacrifiquem os seus avós para salvar a economia.

Essa relação entre lucro e vida no capitalismo é o foco da Teoria da Reprodução Social (TRS). Os principais argumentos da TRS são os seguintes:

Enquanto o capitalismo como sistema se preocupa apenas com o lucro, sendo o lucro o sangue e o motor da vida do capital, o sistema tem uma relação de dependência relutante com processos e instituições de reprodução da vida. O sistema depende dos trabalhadores para produzir mercadorias que são vendidas para obtenção de lucros. O sistema, portanto, só pode sobreviver se a vida dos trabalhadores for reproduzida de forma contínua e confiável, enquanto vai sendo substituída geracionalmente. Comida, habitação, transporte público, escolas públicas e hospitais são ingredientes de vida que reproduzem socialmente os trabalhadores e suas famílias. O nível de acesso a esses bens determina o destino da classe como um todo, e são as mulheres que realizam a maior parte desse trabalho de manutenção das vidas globalmente. Mas o capital tem relutância em gastar qualquer parcela dos seus lucros em processos que sustentam e mantêm a vida. É por isso que todo o trabalho de assistência é desvalorizado ou não remunerado no capitalismo, ao mesmo tempo que instituições de reprodução da vida, como escolas e hospitais, são constantemente privatizadas ou subfinanciadas.

A pandemia do coronavírus está a forçar o capitalismo a priorizar temporariamente a manutenção de vida. Novos hospitais estão a ser criados para cuidar dos doentes. Leis draconianas de imigração estão a ser flexibilizadas, enquanto hotéis elegantes estão a ser requisitados para abrigar os sem-teto. Mas também estamos vendo uma escalada simultânea nas funções coercivas dos Estados capitalistas. Israel usou a crise para melhorar a sua vigilância. A Bolívia adiou as eleições, enquanto a Índia está testemunhando um aumento da brutalidade policial.

Enquanto estivermos no auge desta crise, precisamos exigir que os trabalhadores que prestam serviços essenciais, a grande maioria deles mulheres – as nossas enfermeiras, os nossos trabalhadores da alimentação, médicos, empregados de limpeza, catadores de lixo – recebam a dignidade e os salários que merecem. Os corretores da bolsa ou os bancos de investimento não fazem parte de nenhuma lista de “serviços essenciais” do governo. Como feministas, devemos exigir que agora e sempre o rendimento da elite reflita a sua utilidade.

Mas, uma vez a crise da pandemia tenha passado, não podemos voltar aos “negócios como sempre”. Devemos exigir que, em vez de o capitalismo colocar as nossas vidas em crise, sejamos nós a pôr em crise a sua dinâmica de colocar o lucro acima da vida.

Que a vida e a reprodução da vida se tornem a base da organização social, para o florescimento de muitos e não para a prosperidade de poucos.

Tithi Battacharya é Professora e especialista em Historia Moderna do sul da Ásia e Diretora do Centro de Estudos Globais na Purdue University. É co-autora do livro “Feminismo para os 99%:Um Manifesto”.

Texto publicado no site da autora. Traduzido por Carolina Freitas para o Esquerdaonline.com.br e publicado a 03 de abril de 2020. Revisto e adaptado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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