Nó górdio em Espanha: o tempo das reformas é limitado

03 de July 2020 - 23:31

A conjuntura é contraditória e positiva. O governo de Espanha não recebe grande apoio, mas sai bem visto do confinamento. As direitas estão sem norte e fracassaram na sua estratégia de assédio e derrube. Por Manuel Monereo.

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“A ministra Calviño concorda com estas políticas neoliberais e defendê-las-á até às últimas consequências” - Nadia Calviño é vice-presidente do Governo de Espanha e ministra dos Assuntos Económicos e da Transformação Digital – Foto Comissão Europeia
“A ministra Calviño concorda com estas políticas neoliberais e defendê-las-á até às últimas consequências” - Nadia Calviño é vice-presidente do Governo de Espanha e ministra dos Assuntos Económicos e da Transformação Digital – Foto Comissão Europeia

Há a perceção de que o governo ganhou uma batalha. Não sabemos que batalha e muito menos quais serão as suas consequências. Os sinais vêm de outro lado, da coligação “Corona-75”, ou seja, a frente ampla a favor da monarquia e, especificamente, de Juan Carlos I, que vai desde Felipe González a Santiago Abascal, passando por Cebrián1 e chegando, claro, a Aznar / Casado2, com Bono3 como mestre de cerimónias. Os seus chefes, a conspiração oligárquica, estão, como sempre, temerosos; gastam muito dinheiro e não conseguem encontrar quem realmente os represente, com o profissionalismo necessário.

A conjuntura é contraditória e positiva. O governo não recebe grande apoio, mas sai bem visto do confinamento. As direitas estão sem norte e fracassaram na sua estratégia de assédio e derrube. Pior, agiram com pouca habilidade para os seus “núcleos duros” no aparelho de Estado e foram detetados. O CNI4 foi neutralizado, mas o custo será elevado e, além disso, obrigará a uma remodelação interna particularmente severa. Estavam realmente numa operação golpista? O que parece certo é que tinham claro que a rotura do Governo era possível e que era preciso fazê-la antes de abrandar a escalada conflitual. A raiva de alguns dos principais colunistas e o desalento das direitas unificadas expressam o fracasso de uma estratégia e concedem ao Governo uma trégua que este deve aproveitar para definir um programa e um projeto para uma solução progressiva para a crise.

O "tempo político" é sempre limitado. O "momento" é marcado pela pandemia e o seu fim pela União Europeia

Porquê definir esta conjuntura como contraditória e positiva? É bom compará-la com a conjuntura de 2008. No governo, mantém-se a ideia de que a crise será em V e que a recuperação, segundo a ministra Calviño5, começou. Creio que é um erro de fundo, mas não é este o momento para desenvolver esta opinião, haverá tempo para isso. O que não parece lógico é a consequência política derivada desta análise. Uma vez que a recuperação começou, diz-se, não façamos as reformas de fundo e esperemos que a União Europeia marque o caminho. A "dama de negro"6 confunde o governo. As reformas que não se fizerem agora não serão feitas no futuro. O "tempo político" é sempre limitado. O "momento" é marcado pela pandemia e o seu fim pela União Europeia. As pessoas, massivamente, convenceram-se do que já sabiam: a sua liberdade, a sua segurança, depende de um conjunto de serviços públicos que devem ser reforçados e ampliados. As direitas e os seus intelectuais orgânicos (fundações e outros meios especializados em transmitir a única ciência económica verdadeira) não se atrevem a dizer o que pensam e, hoje, a maioria social não está disponível para ouvir as velhas provocações sobre os perigos dos défices públicos, as maravilhas das privatizações ou vantagens dos seguros privados.

A batalha político-cultural e programática é fundamental neste momento. Pela segunda vez em dez anos, o Estado, o setor público tem que resgatar o setor privado

A batalha político-cultural e programática é fundamental neste momento. Pela segunda vez em dez anos, o Estado, o setor público tem que resgatar o setor privado. As crises revelam a realidade e, em poucos dias, clarifica-se mais do que em muitos anos de debate ideológico, sempre que se esteja à altura e se aceite o repto. Sem o Estado não há economia e, na hora da verdade, vem em socorro; isso sim, endividando-se até ao pescoço e disponibilizando fundos públicos para empresas e instituições privadas. Não chegou a hora de democratizar o poder económico? Não estamos em posição de criar um banco público capaz de se financiar a si próprio como os bancos privados e impulsionar projetos e iniciativas para mudar o modelo económico-social? Não chegou a hora de reverter as (contra)reformas laborais e reconstruir a "constituição do trabalho" para enfrentar os desafios desta época? Se o Estado, na hora da verdade, é quem decide, não é chegado o momento de promover um setor empresarial público forte, capaz de planificar o desenvolvimento, organizar a mudança de modelo económico e redistribuir renda e riqueza?

A recente cimeira empresarial organizada pelo CEOE7 define muito bem a situação. Todos pedindo mais e mais fundos do Estado; todos queixando-se da escassez das ajudas; todos definindo projetos que exigem compromissos de “segurança jurídica” para investimentos futuros e que as reformas (bem pensadas e acordadas com os patrões) sejam adiadas uma vez que se consiga superar a crise. Vergonha alheia, mas é verdade: resgate-me, financie-me para recuperar poder económico e para que possa continuar a mandar e definir o futuro do país. Façam-me forte para vos dirigir, porque vocês não podem viver sem mim e muito menos contra mim. A questão da segurança jurídica é um truque e tem pouco espaço. O seu núcleo, não fazer reformas, não tocar nas relações de trabalho, não redefinir um sistema fiscal justo e eficiente, não promover mudanças reais que limitem o poder dos grandes oligopólios financeiros, energéticos e empresariais. E fazem-se, como no passado, “contra reformas? É claro que seria bom, ótimo, para a competitividade, para a criação de emprego e o futuro do país. Ponham-lhe nome e verão como combinam com o poder dos que mandam.

Há quatro perguntas que definirão o futuro da Espanha e que tornarão possível que ela tenha futuro, é o nosso nó górdio a resolver positivamente

Há quatro perguntas que definirão o futuro da Espanha e que tornarão possível que ela tenha futuro, é o nosso nó górdio a resolver positivamente. Primeiro, um Governo que se comprometa a sério com um projeto de país; que seja capaz de construir um novo modelo de desenvolvimento económico, social e ecologicamente sustentável. O consenso não pode converter-se no direito de veto dos patrões, pelo contrário, deve estabelecer uma aliança social com jovens, trabalhadores independentes, pequenos e médios empresários e classes trabalhadoras que precisam de mais poder, maior iniciativa e mais direitos. Segundo, aliviar os efeitos sociais da crise. Nunca houve uma distribuição igualitária de crises. Enquanto houver capitalismo e desigualdade entre classes sociais, isso não será possível; o que é possível é amortecer as suas consequências sociais mais negativas. O chamado escudo social tem que fortalecer-se rapidamente e a saúde pública deve reforçar-se de imediato, com mais recursos, mais pessoal e melhor coordenação.

que papel vai ter a Espanha na nova divisão do trabalho que está a ser definida na UE? Que modelo produtivo e de poder? As duas coisas estão relacionadas e sobrepõem-se

A terceira e quarta questões são, basicamente, uma: que papel vai ter a Espanha na nova divisão do trabalho que está a ser definida na UE? Que modelo produtivo e de poder? As duas coisas estão relacionadas e sobrepõem-se. A UE não é um clube de caridade nem uma esfera pública baseada na solidariedade. Como vemos todos os dias, há vencedores e perdedores. Quem manda e quem tem que aceitar uma posição subalterna. A Alemanha está a definir o seu papel no mundo; a UE está à beira da implosão e continua a ser o mercado preferencial para os países do núcleo central. Eles precisam que continue a existir e que o faça nas condições requeridas. Estão sempre dispostos a pactuar com as diferenças que não pressuponham uma mudança de direção política.

O "maná" europeu não virá, será insuficiente e responderá às decisões das instituições da União que serão determinadas pelo eixo franco-alemão

O "maná" europeu não virá, será insuficiente e responderá às decisões das instituições da União que, de uma maneira ou de outra, serão determinadas pelo eixo franco-alemão. Alguém acredita que os fundos europeus servirão para reindustrializar a Espanha, para criar grandes empresas capazes de competir com as alemãs ou as francesas? Alguém acredita que os fundos que virão servirão para um desenvolvimento territorial mais homogéneo e sustentável do nosso país? Alguém acredita que as políticas da UE servirão para ampliar o nosso estado social, promover uma reforma fiscal mais justa e redistribuir renda e riqueza?

Dir-se-á que algumas destas questões dependem de Espanha, das nossas políticas e de determinadas correlações de força. É uma meia verdade. Para desenvolver um novo modelo económico, social e ecologicamente sustentável, o obstáculo fundamental a ser superado será a União Europeia. Há alguns meses, quando afirmava que estamos numa primeira fase e que na segunda nos encontraríamos com as duras regras e resistências da UE, disse-se que esta crise era diferente e que a UE não seria um obstáculo, mas sim uma ajuda. Alguns de nós permanecemos calados e, muito antes do esperado, começa a situar-se na UE o lugar ou o espaço do confronto político em Espanha. Que o PP defenda na Europa regras estritas para a concessão de ajudas ao nosso país, não deve surpreender-nos. O seu patriotismo foi sempre de papelão. Mas é preciso ir mais longe e reconhecer a verdade que está diante dos nossos olhos e não queremos ver: as regras económico-financeiras constitucionais nos países da UE expressam uma aliança estratégica entre as classes dirigentes desses Estados e as instituições da UE, garantidas pela Alemanha. O ordoliberalismo alemão é a expressão política e ideológica dessa aliança entre os grupos de poder dominantes. Para ser mais claro: os patrões, as direitas, os vários nacionalismos e a ministra Calviño concordam com estas políticas neoliberais e defendê-las-ão até às últimas consequências. E Pedro Sánchez?

O verdadeiro "escudo do poder" dos que mandam e não se apresentam às eleições é a UE e a partir daí virá o sinal para o confronto

Os poderes económicos estão a executar uma estratégia bem conhecida: não enfrentar diretamente as reivindicações das populações, deixar que o tempo passe e que os verdadeiros problemas da pandemia apareçam perante a opinião pública. É o que a UE está a fazer, dilatando os processos, encenando confrontos entre bons e maus para chegar, no final, a um acordo de síntese. O verdadeiro "escudo do poder" dos que mandam e não se apresentam às eleições é a UE e a partir daí virá o sinal para o confronto com as políticas económicas e sociais de um governo projetado para outras tarefas, para outras circunstâncias e para um mundo menos trágico.

A União Europeia vive sob uma forma de Estado de exceção: as suas regras foram temporariamente suspensas, as regras do mercado interno foram contornadas e as instituições tomaram iniciativas para evitar o fim de um projeto que vive uma crise existencial. Agora é o momento para realizar as reformas de que o nosso país precisa, as mudanças necessárias para resolver velhos e novos problemas que determinarão as condições de vida, trabalho e segurança das nossas populações. Alterar o modelo produtivo exige alterar "o modelo de poder". As reformas têm um tempo limitado.

Artigo de Manuel Monereo, publicado em Cuarto Poder a 23 de junho de 2020. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net


Notas do tradutor

1 Juan Luís Cebrián, jornalista, escritor e empresário. Foi diretor fundador do jornal El País e presidente do grupo Prisa, até 2018. Presidente de honra do El País, membro do Clube Bilderberg e o único falante de espanhol com funções executivas nessa organização. Para mais, ver Juan Luís Cebrián na wikipedia em espanhol.

2 Aznar, antigo primeiro-ministro de Espanha e ex-líder do PP, Casado, atual líder do PP espanhol.

3 José Bono, dirigente do PSOE, ministro da Defesa de Espanha entre 2004 e 2006 e ex-presidente de Castilla-la-Mancha, mais informação em José Bono em wikipedia em espanhol.

4 CNI – Centro Nacional de Inteligência, agência de inteligência de Espanha criada em 2002, mais informação em wikipedia em espanhol.

5 Nadia Calviño é vice-presidente do Governo de Espanha e ministra dos Assuntos Económicos e da Transformação Digital. Foi diretora geral de Orçamento da Comissão Europeia, entre 2014 e 2018, mais informação em Nadia Calviño em wikipedia em espanhol.

7 Confederación Española de Organizaciones Empresariales