You are here

Multinacionais transformam lares de idosos em negócio de milhões

Investigação jornalística mostra como na Europa algumas empresas estão a adquirir lares de grupos mais pequenos, a ganhar muito à custa do bem-estar e saúde de trabalhadores, idosos e do Estado e a fazer depois circular o dinheiro por offshores.
Terceira idade. Foto de Paulete Matos.
Terceira idade. Foto de Paulete Matos.

A mais recente investigação do consórcio de jornalistas Investigate Europe é sobre como algumas multinacionais estão a transformar os lares de idosos num negócio de milhões em detrimento de trabalhadores e utentes. Subfinanciamento, trabalhadores a menos para trabalho a mais e benefícios estatais fazem parte do seu modelo de negócio.

O “ouro cinzento” é uma investigação trans-nacional começada em março e que foi lançada este domingo no jornal Público. A peça traz relatos sobre residentes “tratados como peças numa fábrica, sempre com pressa” e de trabalhadores pressionados ou que desistem porque não aguentam o trabalho. Mas também revela os nomes de empresas como a Orpea e a Domus Vi que estão a comprar grupos nacionais mais pequenos. Na Europa apenas 28 empresas privadas detêm 5.388 instalações com cerca de 455.559 lugares. Estas grandes multinacionais beneficiam muitas vezes de dinheiro público e transferem depois receitas para offshores numa “intrincada engenharia financeira”.

De acordo com os dados apresentados, a Orpea é o maior operador do continente de cuidados para a terceira idade com mais de 110.00 lugares, 700 deles em Portugal onde tem nove lares. A empresa está em franca expansão, aumentou a capacidade em 65% nos últimos cinco anos, e está a criar mais 25.000 lugares, três mil deles no nosso país. O preço das ações duplicou desde 2015, o valor de mercado triplicou mas a sua dívida financeira líquida é de quase 200% do capital.

A Domus Vi, o terceiro operador da Europa, também marca presença em Portugal com três lares. No conjunto do continente detém 355 locais com acima de 33.000 lugares. A Investigate Europe descobriu, por detrás das várias empresas envolvidas que estas dependem de um fundo financeiro gerido pelo Intermediate Capital Group plc, grupo presidido por um ex-ministro trabalhista do Reino Unido. E um complexo esquema que tem feito, ao longo de quatro anos, com que vários fundos de investimento, vão entrando na empresa, multiplicando o seu valor sem gastar dinheiro, ou seja pedindo emprestado o dinheiro dando como garantia os ativos que estão a ser comprados.

O Público entrevistou Vivek Kotecha que realizou um estudo sobre lares privados na Grã-Bretanha e que considera tratar-se de margens de lucro que “parecem desmesuradas, dado o risco que está envolvido no serviço prestado, e parecem gerar níveis de lucro realmente elevados face ao que deveria existir numa indústria de mão-de-obra intensiva”.

Para além disso, o jornal InfoLibre descobriu uma “engenharia financeira de filigrana” na Geriavi, a empresa dona da Domus Vi em Portugal e Espanha, ligando onze outras empresas de modo a esconder lucros, impor dívida às empresas que gerem mesmo os lares, lucrar com os juros dos empréstimos e fugir aos impostos. Por sua vez, esta liga-se em França a outra empresa, a Kervita SAS que paga os impostos de 200 filiais em França, Espanha e Portugal, o que permite reduzir os impostos a pagar. E que deve juros ao ICG, o que permite declarar prejuízos.

Em Portugal, multinacionais apostam em lares para rendimentos mais altos

Este trabalho jornalístico justifica a relativa pouca penetração destas empresas em Portugal com a lei em vigor. Não havendo financiamento direto dos lares privados (apenas daqueles que não têm fins lucrativos), o mercado é bem menos atrativo do que noutros pontos da Europa.

Assim, dos 2.537 lares do país, 1.677 são detidos pelo “setor social”, a maioria pela Santa Casa da Misericórdia em acordo com o Estado, 733 são privados e 133 não têm fins lucrativos mas não têm acordos com o Estado.

A Orpea e a Domus Vi investem em Portugal em lares sem comparticipação pública para clientes de elevado rendimento, cobrando entre 1.500 a 4.000 euros mensais.

Direitos dos trabalhadores em causa

O Investigate Europe recolheu igualmente testemunhos sobre abusos laborais. Um dos casos é uma queixa feita pela CGT, a central sindical francesa, contra a Orpea que empregou três atores em lares de forma a infiltrarem as organizações de trabalhadores e fazerem relatórios sobre as suas atividades. Citam-se ainda casos de intimidação e ostracização de delegados, ativistas sindicais e membros de comissões de trabalhadores em França e na Polónia. Na Alemanha, a empresa está a processar os presidentes de duas comissões de trabalhadores para os tentar despedir por uma suposta fraude em documentos de gestão do tempo de trabalho. Dois dos casos foram arquivados mas há mais a correr nos tribunais.

Sobre a Domus Vi citam-se casos na Galiza como o de Maribel Barreiro, membro da Comissão de Trabalhadores. Era secretária da direção quando o lar era público mas quando a Domus Vi ganhou a sua concessão foi despromovida para o armazém, obrigada a carregar pesos fortes, acabou por ter de meter baixa e sofreu um acidente de trabalho.

Trabalhadores a menos

Dos lares geridos por estas multinacionais chegam ainda notícias de que contratam trabalhadores a menos. Por exemplo, o governo local descobriu que um lar da Orpea em Kirchberg, na Áustria, não cumpria a proporção devida de pessoal, o que fez com que os residentes fossem “sistematicamente levados para situações de incontinência”, dado que não havia formação sanitária, entubaram-se pacientes em vez de se tentar que bebessem, entre outras situações.

Na Suíça, o sindicato Unia também denuncia condições de trabalho “bastante medíocres em comparação com outros lares e o quadro de pessoal é escasso”. Segundo o Público, “na Alemanha, em Espanha e na Itália, um quarto da mão-de-obra está empregada apenas numa base temporária” e “o grupo adiciona frequentemente trabalhadores administrativos, de limpeza e outros ao pessoal de enfermagem, a fim de cumprir os requisitos legais.

Em Portugal, o Instituto da Segurança Social confirmou a este órgão de comunicação social que “foram recebidas cinco denúncias e duas reclamações” de familiares ou utentes destas duas empresas. São queixas sobre falta de recursos mas sobretudo sobre falta de enfermeiros e de pessoal.

Termos relacionados Sociedade
(...)