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Lula demite chefe do Exército que acumulava insubordinações

Não é todos os dias que se assiste no Brasil à demissão de um chefe do Exército ordenada pelo Presidente da República. Muito menos quando se sabe que a maioria dos altos comandos da tropa é pouco simpática ao atual presidente.
Conhecedor desta situação, Lula nomeara para o Ministério da Defesa José Múcio, um antigo membro da Arena, o partido governante durante a ditadura militar, com a missão fazer pontes com os altos comandos e distensionar as relações entre estes e o Executivo. Múcio foi dos primeiros ministros de Lula a ser anunciado e começou a trabalhar ainda antes da posse do governo.
O novo ministro, porém, pareceu muitas vezes mais um representante dos galonados da tropa do que um ministro do governo Lula: em várias oportunidades alinhou com as posições do Exército contra a de outros membros do governo.
Insubordinações do general
O resultado foi que o chefe do Exército, general Júlio César Arruda, sentiu-se forte e acumulou insubordinações. A situação tornou-se insustentável neste sábado, dia 21, e Lula resolveu mostrar quem mandava. Ordenou ao ministro da Defesa a demissão de Arruda. A comunicação pública da decisão, feita por Múcio em conferência de imprensa, demorou apenas um minuto, quando o ministro esclareceu que questões como os acampamentos, os acontecimentos do 8 de janeiro e as relações com o comando do Exército provocaram “uma fratura” na confiança. “Achávamos que podíamos estancar isso logo no início”, justificou o ministro, que falou ao lado do novo comandante, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva.
A verdade é que nos dias que decorreram desde a posse de Lula até este sábado, dia 21, o general Arruda nunca escondeu a hostilidade em relação ao novo presidente e optou pela via do braço de ferro com ele. Acolheu os bolsonaristas que montaram um acampamento em frente ao Quartel-General em Brasília, um conjunto de edifícios, salas, jardins e monumentos que abriga, além do comando, 34 organizações do Exército. Entre elas, o Centro de Inteligência do Exército e a Escola de Inteligência, o 1º Grupo de Cavalaria de Guardas, o 11º Grupo de Artilharia Antiáerea, ou o Batalhão de Polícia do Exército.
Recordemos que a segurança de toda a área circundante do QG é da responsabilidade do Exército e que nunca a força permitiu ou permitiria que elementos estranhos à instituição permanecessem dias, mais precisamente 65 dias, ali instalados, se não houvesse, no mínimo, alguma simpatia com o movimento.
Recordemos, também, que o acampamento foi instalado para pressionar as Forças Armadas a desferirem um golpe de Estado, derrubando o presidente atual e reinstaurando no poder o anterior, isto é, uma ação para rasgar a Constituição.
Ainda assim, o Exército recusava-se a desmontar o acampamento e expulsar os neofascistas, argumentando que pretendia evitar confrontos com civis, preferindo a “via da persuasão”. Acontece que essa tática de nada serviu, ao mesmo tempo que o acampamento facilitou a preparação das ações terroristas e dos planos golpistas.
Foi no acampamento que se encontraram os bolsonaristas que puseram uma bomba num camião tanque de combustível no aeroporto de Brasília, que só não explodiu devido à inépcia dos bombistas. Foi do acampamento que saíram as hordas de neofascistas que invadiram as sedes dos Três Poderes, depredando e saqueando tudo o que puderam.
Dedo em riste, blindados para proteger bolsonaristas
Foi no acampamento que se produziu um gravíssimo incidente na noite e madrugada dos dias 8 e 9. No sábado, quando os neofascistas foram expulsos da Praça dos Três Poderes, muitos deles conseguiram fugir, acobertados por militares do Exército, e regressaram a pé ao acampamento. Pouco depois, uma força da Polícia Militar de Brasília, respondendo às ordens do interventor federal nomeado por Lula para substituir o secretário de Segurança da capital, foi ao acampamento para prender os bolsonaristas escapados do cenário das destruições. Mas o Exército proibiu a ação da polícia, continuando a defender os bolsonaristas.
Diante do acampamento, no episódio relatado pelo portal Metrópoles, o general Arruda dirigiu-se ao então comandante da PM-DF, Fábio Augusto Vieira (mais tarde demitido), e, com o dedo em riste desafiou: “O senhor sabe que a minha tropa é um pouco maior que a sua, né?” Retirada a PM, o chefe do Exército ordenou a instalação de três cordões de militares e barreiras de blindados diante do acesso ao acampamento, como demonstração de força e para impedir qualquer veleidade da Polícia Militar. Segundo reportagem publicada pelo Washington Post, Arruda terá advertido o ministro Flávio Dino: “Você não vai prender pessoas aqui”.
Captura de tela de video.
Mais tarde, numa reunião de Arruda com Dino, Múcio e o ministro Rui Costa, da Casa Civil, ficou acertado que a PM só poderia ir ao local na manhã do dia 9. O que quer dizer que, durante a noite, os principais líderes dos bolsonaristas acampados puderam fugir sem problemas. Entre eles, provavelmente, muitos familiares de militares que estavam acampados. Ficou famosa a visita da mulher do general Eduardo Villas Bôas, Maria Aparecida Villas Bôas, ao acampamento de Brasília no dia 28 de dezembro de 2022. Sentada no banco da frente de uma carrinha, passou duas vezes, lentamente, diante do acampamento, enquanto os presentes gritavam o nome do general. O general Villas Bôas foi o comandante do Exército entre 2015 e 2019, e assessor do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República durante o governo Bolsonaro, de 2019 a 2022. Atualmente, a doença de que sofre, a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) força-o a deslocar-se em cadeira de rodas, mas continua a ser um dos nomes mais influentes no meio castrense.
O boato de que Maria Aparecida teria estado no acampamento no dia 8 de janeiro circulou insistentemente, mas sem confirmação.
Defesa do GSI, apesar da inação
Outra insubordinação do general foi a recusa de demitir de imediato o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, argumentando que era preciso esperar os resultados de um processo disciplinar. Lula já vinha tornando público o seu descontentamento com os militares que deveriam ter defendido o Palácio do Planalto e nem apareceram, dizendo-se convencido de que as forças de segurança deixaram os golpistas invadir os prédios dos Três Poderes: “Eu estou convencido que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar, porque não tem porta quebrada, ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui".
O general, que deveria estar presente na reunião de Lula com os chefes militares, na sexta-feira, não foi convocado e viu bloqueado o elevador de acesso ao piso do gabinete do Presidente.
Gota d’água
Mas o que levou Lula a tomar a decisão de demitir o comandante do Exército, a chamada gota d’água, foi a recusa de Arruda de reverter a nomeação do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, o principal ajudante de ordens de Bolsonaro, que este designou, pouco antes do fim do governo, para comandar uma unidade do Comando de Operações Especiais do Exército, sediada em Goiás, a pouco mais de 200 quilómetros de Brasília.
Não é só o perigo de ter um bolsonarista declarado e fiel como comandante de uma unidade militar de elite tão próxima de Brasília. Há outro facto. No dia 20, o portal Metrópoles revelava numa extensa reportagem, que Mauro Cid estava envolvido num esquema de caixa 2 muito semelhante ao praticado nas “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro, operadas pelo famoso Fabrício Queirós. A suspeita, cuja investigação parece estar muito avançada, envolve levantamentos em dinheiro dos cartões corporativos, uso de cartões de uma amiga da primeira-dama para pagar despesas dela, entre muitas outras transações estranhas. As investigações correm no Supremo Tribunal Federal.
Como era possível dar o comando a um militar investigado pelo Supremo.
Arruda recusou-se a alterar a nomeação.
Não deixou a Lula outra solução senão demiti-lo.
O sucessor de Arruda, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, é o chefe do Comando Militar do Sudeste e é o mais antigo depois de Arruda. Em tempos tão conturbados, em que o Exército parece ver como normais manifestações antidemocráticas, como foram os acampamentos, o general Paiva chamou a atenção ao dicursar na sexta-feira. Ele afirmou que “Ser militar é (...) ser profissional. É respeitar a hierarquia e disciplina. É ser coeso. É ser íntegro. É ter espírito de corpo. É defender a pátria. É ser uma instituição de Estado. Apolítica, apartidária. Não interessa quem está no comando: a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar. É não ter corrente.” Disse também: “A mensagem que eu tenho e que eu quero trazer para vocês. No que pese turbilhão, terremotos, tsunamis, nós vamos continuar ímpetos, coesos, respeitosos e garantindo a nossa democracia. Porque democracia pressupõe liberdade, garantias individuais, políticas públicas e, também, é o regime do povo, alternância do poder. É o voto.”
A fala do general ganhou destaque porque, ironia das ironias, defendeu a Constituição da República. O que, no Brasil como em qualquer país, deveria ser normal, mas não é. É raro. Tão raro que lhe valeu a nomeação para novo chefe do Exército.
Será que terminou assim a chamada crise militar do governo Lula? Aguardemos.
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