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Líbia, será desta? Parece que não…

A Líbia tem eleições presidenciais previstas para 24 de Dezembro e eleições legislativas um mês depois. O processo dá sinais de grande instabilidade e já há boicotes ao “recenseamento” eleitoral. Os sinais não são animadores. 10 Anos de caos deixaram o país “partido ao meio”, muito dividido, pode dizer-se “balcanizado”. Por José Manuel Rosendo no blogue em meu Mundo minha Aldeia.
Saif Al-Islam, um dos filhos de Moahammar Kadhafi, é candidato às presidenciais de Dezembro. Foto: Comissão Eleitoral Líbia.

Saif Al-Islam

Por agora, a grande surpresa, embora essa possibilidade já tivesse sido admitida, é a candidatura de um filho do antigo líder Mohammar Kadhafi (deposto e assassinado na sequência da “Primavera Árabe”, em 2011). Saif Al-Islam, 49 anos, ficou sempre ao lado do pai, tendo sido capturado por uma milícia de Zintan, julgado em Tripoli, condenado à morte em 2015, tendo sido libertado um ano depois e mantido em “residência vigiada” num local secreto. No domingo, 14 de Novembro, deslocou-se a Sebha (um dos três locais para registar candidaturas), sul do país (cerca de 700 km a sul de Zintan), para assinar, com impressão digital, a documentação de candidatura entregue à Comissão Eleitoral. O jornal Le Monde sublinha que, com esta decisão, depois de anos de silêncio – apenas quebrado com uma entrevista ao New York Times em Julho de 2021 – e vincando o momento vestindo – tal como o pai – uma abaya e um turbante ao estilo beduíno, Saif Al-Islam provocou um pequeno sismo político na Líbia. Deu um sinal aos que ainda sonham com o tempo pré-revolta, mas recupera também o medo dos que combateram o regime do pai e que receiam a concretização da ameaça feita por Mohammar Kadhafi na então Praça Verde de Tripoli: “zenga-zenga” (entenda-se: “vou persegui-los rua a rua, casa a casa”). O antigo líder não pode já concretizar a ameaça, mas Saif Al-Islam, na mesma altura, também prometeu “rios de sangue”.

Khalifa Haftar

Dois dias depois de Saif Al-Islam anunciar a sua candidatura, também Khalia Haftar, 77 anos, anunciou que é candidato. Neste caso não há surpresa. O homem que tem liderado o Exército Nacional Líbio, que controla a Cirenaica – região Este do país – fez o anúncio através da televisão, indo depois à Comissão Eleitoral, em Benghazi, para formalizar a candidatura. Disse que não o faz por querer poder mas para conduzir o povo líbio “à glória, ao progresso e à prosperidade”. Afirmou-se o homem que será uma boa escolha para os líbios e da qual não se arrependerão. Khalifa Haftar aceitou um cessar-fogo em outubro de 2020 depois de ter falhado a ofensiva militar que desencadeou para conquistar Tripoli, onde estava o Governo que tinha o apoio da ONU e que tinha ajuda militar da Turquia. Khalifa Haftar tem tipo o apoio da Rússia, Egipto, Emirados Árabes Unidos e de alguns líderes tribais, para além de alguns apoios europeus. Nos anos de guerra-civil, Khalifa Haftar foi um inimigo feroz das milícias islamitas. Muitas décadas antes esteve no golpe militar que levou Mohammar Kadhafi ao poder. O líder líbio abandonou-o quando foi preso durante a guerra com o Chade. Os Estados Unidos libertaram-no e deram-lhe asilo político. Regressou à Líbia em 2011.

Outros candidatos

O Presidente do Parlamento também se candidata nestas presidenciais que são as primeiras com sufrágio universal.

Aguila Saleh, 77 anos, considerado como muito próximo de Khalia Haftar já entregou o dossiê de candidatura em Benghazi.

O antigo Ministro do Interior, Fathi Bachagha, 59 anos, também oficializou a candidatura, em Tripoli. É um antigo piloto da força aérea, considerado um protagonista chave do Conselho Militar de Misrata durante a revolta contra Mohammar Kadhafi. Falhou uma tentativa para chegar a primeiro-ministro do actual governo interino.

A dois dias do final do prazo para a entrega de candidaturas, a Comissão Eleitoral anunciou que 29 candidatos entregaram a documentação.

Leis eleitorais contestadas

Acontece que estas candidaturas surgem ainda antes de existir um acordo claro sobre as regras eleitorais e de governação. Há uma lei para as legislativas e outra para as presidenciais, mas são leis produzidas pelo Parlamento instalado em Benghazi (uma região controlada pelas forças de Khalifa Haftar) e que são vistas como feitas à medida dos interesses do marechal rebelde, nomeadamente para lhe facilitar o caminho para a presidência. Não por acaso, o Primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, disse na conferência de Paris, a 12 de Novembro, que é fundamental haver uma lei eleitoral “e já nos próximos dias”, para que possa haver eleições a 24 de Dezembro. Mas não há consenso nem acordo quanto ao sistema em que vai assentar a governação da Líbia, nomeadamente quando aos poderes que vão ser atribuídos ao Presidente. A 4 de Outubro, o Parlamento instalado em Benghazi aprovou a lei das legislativas e já tinha ratificado em Setembro – sem votação – o texto que regula as presidenciais. Problema: o Alto Conselho de Estado – uma espécie de Senado – com sede em Tripoli, não aceita nenhum dos documentos que mantêm as presidenciais a 24 de Dezembro e marcam as legislativas para um mês depois. Há quem admita um adiamento das eleições para que todas estas dúvidas fiquem antecipadamente esclarecidas. E há também quem queira o adiamento porque a lei aprovada no Parlamento de Benghazi não permite candidaturas a quem nos três meses anteriores às eleições tenha estado em cargos políticos (caso de Abdel Hamid Dbeibah, actual Primeiro-ministro do governo pós cessar-fogo).

Boicote

Ainda sem quase nada definido ou garantido relativamente à realização das eleições, já há boicotes. Representantes de várias cidades e grupos hostis às candidaturas anunciadas apelaram ao boicote das e levaram ao encerramento dos locais onde é feito o registo dos eleitores.

O Conselho dos Notáveis de Misrata – cidade onde estão sediadas as mais ferozes milícias contra Kadhafi – recusam eleições com um candidato (Saif Al-Islam) que é procurado pela justiça líbia e pelo TPI e apelam “aos patriotas livres” para se manifestarem contra a realização das eleições.

Em Zaouia, a oeste da capital, os notáveis e líderes revolucionários declararam que não aceitam “a candidatura de dois criminosos de guerra procurados pela justiça”. Também em Tripoli houve protestos e o Presidente do Alto Conselho de Estado, Khaled al-Mashri anunciou que vai boicotar as eleições e vai fazer uma proposta de adiamento do processo eleitoral para 15 de Fevereiro de 2022.

Para já, a Comissão Eleitoral anuncia que estão registados 2.83 milhões de eleitores num país com cerca de 7 milhões de habitantes.

Um problema para a comunidade internacional

Os inimigos de Khalifa Haftar acusam-no de crimes de guerra e Saif Al-Islam tem um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. Qual será atitude da comunidade internacional se um destes homens for eleito Presidente da Líbia.

No caso de haver mesmo eleições, a grande dúvida é saber se aquele(s) que perder(em), aceita(m) a derrota. Outra dúvida é a de saber se em caso de vitória de um dos dois principais candidatos, a Líbia não irá regressar aos tempos sombrios de uma ditadura. Ou até a um reacender da guerra civil.

Na Conferência de Paris, a chanceler alemã, Angela Merkel, ao lado do Primeiro-ministro do Governo interino e do Presidente do Conselho Presidencial líbio, avisou: em democracia só há um vencedor e é preciso que todos aceitem o resultado!

Precisamente em Paris, onde estiveram representados os países com mais influência no conflito líbio, foi expressa a vontade de aplicar sanções a quem perturbar o processo na Líbia e o Presidente francês, Emmanuel Macron, disse que é urgente que a Turquia e a Rússia retirem todos os mercenários da Líbia. A Turquia respondeu dizendo que a presença militar turca constitui uma força de estabilidade.

A Líbia, depois de 10 anos de guerra merecia um regresso à paz e uma reconciliação que se afigura extremamente difícil mas não impossível. Assim os líbios queiram e os poderes externos o permitam.

Artigo publicado em meu Mundo minha Aldeia.

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