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Isto não é uma experiência (são direitos fundamentais)

Ser voluntária num centro que acolhe pessoas em situação de sem abrigo não é uma experiência. A vida dos/as outros/as não é uma experiência nossa, nem pode ser uma razão para darmos palmadinhas nas costas ao final do dia. Texto de Inês Colaço Fernandes
A linha que separa alguém de ter um teto, ou de estar em situação de sem abrigo, é muito ténue - Foto de Ana Feijão
A linha que separa alguém de ter um teto, ou de estar em situação de sem abrigo, é muito ténue - Foto de Ana Feijão

Uma das utentes insiste em perguntar-me: “Menina, está a gostar da experiência?”

Não é uma experiência

Nunca sei o que responder. Ser voluntária num centro que acolhe pessoas em situação de sem abrigo não é uma experiência. A vida dos/as outros/as não é uma experiência nossa, nem pode ser uma razão para darmos palmadinhas nas costas ao final do dia. E gostar, não é a palavra. Não é, porque os meus interesses pessoais ou gostos particulares aqui não podem ter lugar, a não ser que para servir os interesses de outros/as - para dar uma ideia, sugerir algo que possa ser feito de uma outra forma.

Há tanto para fazer antes do “eu” ser para aqui chamado: há sandes para preparar, comida para aquecer, fronhas e lençóis para distribuir, roupa para arrumar, medicação para verificar, atividades para organizar. Mas também tudo o resto, como o parar para conversar, que não é um momento menor. É uma reflexão nua e crua sobre uma realidade tantas vezes ignorada - que me tem permitido aprender muito:

Aprender muito

Que a pêra assada é mais adequada para os dentes frágeis.

Que as barritas de café fazem a vez dos chocolates.

Que para quem tem diabetes, os valores de glicemia antes de comer, devem estar entre os 70 e os 115 mg/dL.

Que muitas organizações que estão no terreno levam comida, mas poucas levam um/a psicólogo/a ou um/a dentista.

Que não há tempo para estar triste, pois só há tempo para passar à ação.

Que o valor médio de RSI em 2019 foi de 116,93 euros. E que o valor médio de uma renda em Lisboa em 2018 foi de 11,16 euros por metro quadrado (o que significa que uma casa com 60m2 custa 669,60 euros/mês).

Que um bom sítio para dormir, quando se dorme na rua, é a Praça da Figueira, porque levam lá comida muitas vezes e costuma ter polícias que talvez impeçam alguém de te fazer mal.

Linha muito ténue

a linha que separa alguém de ter um teto, ou de estar em situação de sem abrigo, é muito ténue

Que a linha que separa alguém de ter um teto, ou de estar em situação de sem abrigo, é muito ténue. Que o diga quem tem um curso em ciência política, que trabalhava num hostel de Lisboa a troco de dormida, e agora está aqui. Ou quem não consumia há 20 anos, mas depois de ter perdido o carro onde trabalhava e dormia, e se viu novamente nesta situação, sem querer retomar velhos hábitos, foi “dar no pó” apenas para se poder inscrever no programa de metadona. Ou quem perdeu o trabalho como doméstica e teve de deixar os filhos com o ex-marido porque se viu a braços com a sua primeira noite a dormir na rua. Ou quem, com os seus sessenta e muitos anos, foi expulsa de sua casa devido aos preços inflacionados de Lisboa em nome de um turismo desregrado. Ou quem limpa as ruas que todos/as nós pisamos todos os dias a caminho do trabalho, mas cujo ordenado não chega para alugar um quarto. Pessoas iguais a mim, apenas com uma outra vida, apenas com uma outra sorte. E não tenho ilusões: é um privilégio poder estar neste momento aqui de passagem, do lado de quem vai embora ao final do dia.

Urgente questionar o conceito de “pessoa em situação de sem abrigo”

Voluntários pelas pessoas sem-abrigo - Foto de Ana Feijão
Voluntários pelas pessoas sem-abrigo - Foto de Ana Feijão

Não é em vão ter feito algumas pequenas descrições: é que a própria maneira como encaramos as pessoas em situação de sem abrigo tem consequências problemáticas a nível político e a nível coletivo. É portanto, urgente, questionar de que forma é que o conceito de “pessoa em situação de sem abrigo” é construído, de que forma é que são feitas as práticas discursivas e de que maneira estas narrativas afetam as perspetiva sociais.

O capitalismo falha em providenciar habitação para aqueles/as que produzem riqueza - a classe trabalhadora. Se por um lado, o que cria a situação é a falta de habitação pública, a privatização de serviços públicos e o desemprego, há uma camada mais perversa nas perceções sociais que aponta para uma culpabilização dos indivíduos, como se houvesse um elemento de “responsabilidade” individual - como se fossem incompetentes, inadequados/as. Isto é uma das ideias que sustenta o sistema: as pessoas em situação de sem abrigo são a antítese do homem de mercado, do self made men, com as suas ideias de meritocracia e conquistas meramente através do empenho pessoal.

Meritocracia, uma sátira e um aviso

Aliás, a própria ideia de meritocracia é curiosa - embora seja utilizada pela direita enquanto fundamento de uma mobilidade social conseguida apenas através de esforço individual, este termo foi cunhado por Michael Dunlop Young, no seu livro de 1958, The Rise of Meritocracy. Nesta obra, o termo é utilizado de forma pejorativa: o escritor idealiza uma utopia, na qual as pessoas são classificadas de acordo com a sua inteligência, que é medida através de testes padrão numa idade precoce; os/as que se saem melhor no teste recebem melhor educação e têm acesso a melhores empregos; no entanto, o livro mostra como “os/as mais inteligentes” são-no porque têm acesso a uma educação de qualidade e que todos/as os/as outros/as nunca irão conseguir ascender. A conclusão do livro é a de que um sistema aparentemente justo pode tornar-se uma máquina de produzir e agravar injustiças (e termina com a “revolta da meritocracia”, uma convulsão social). O próprio autor veio em 2001, através de um artigo publicado no The Guardian, mostrar que a sua obra pretendia ser uma sátira e um aviso, e que acabou por ser utilizada na medida contrária do que pretendia ser.

Lógica individualista

A lógica meritocrática é utilizada para uma responsabilização individual: se acreditarmos que as pessoas “sucedem” na vida apenas através do seu mérito, do seu esforço, do seu trabalho mais árduo do que o de outros/as, e que não há influência de outros fatores, então o inverso disso é que as pessoas em situação de pobreza e em situação de sem abrigo não trabalharam o suficiente, é sinal de falta de compromisso e empenho. E portanto, não só as pessoas, mas a própria ideia destas pessoas serve para a manutenção do status quo, pois o medo de terminar nesta situação - enquanto consequência de atitudes individuais - ajuda à manutenção do poder do capitalismo. Isto permite sustentar uma ideia de medo e de aviso - ou aceitam o sistema, não reclamando mais direitos e aumentos, ou acabarão nesta situação. Peter Marcuse dizia que “homelessness exists not because the system is not working, but because this is the way it works” [sem abrigo não existe porque o sistema não está a funcionar, mas porque é assim que funciona]. Isto coaduna-se com o facto da questão sem abrigo ser sempre apresentada numa lógica individualista, enquanto uma inadequação individual, e raramente enquanto problema sistémico e estrutural que é.

Lógica de não-pertença

Por outro lado, é importante refletir nos impactos sobre as percepções da pertença ou não pertença ao espaço público: apesar das pessoas em situação de sem abrigo habitarem o espaço público, são vistas numa lógica de não-pertença. Se considerarmos o espaço público a partir da relações que os sujeitos estabelecem com o mesmo, e que na sociedade capitalista somos altamente influenciados/as naquela que é a relação das pessoas com o consumo, chegamos a duas conclusões:

a) que as próprias noções de espaço público se encontram subordinadas a uma lógica privatizada: o espaço público destina-se ao consumo e portanto, há uma expulsão de tudo o que possa perturbar esse consumo, pois este espaço tem de ser seguro para os/as consumidores/as, para que continue a lógica de aquisição de bens.

b) a riqueza determina o que as pessoas podem comprar, e o que podem comprar determina onde pertencem; se não podem comprar, não pertencem. Ou seja, ao fugirem à norma estética e material do tipo de sujeito que se insere numa lógica consumista, tornam-se um “incómodo”, ameaçam o espaço de consumo e por consequência, o espaço público, sendo empurradas para uma esfera de criminalização e de expulsão dos espaços urbanos, como se a sua mera presença fosse ofensiva (o que é visível na “arquitetura hostil” que começou a crescer em várias cidades, como a inserção de picos anti-sem abrigo em Londres, ou as multas para quem retire objetos do lixo na Hungria, ou os bancos com barras de metal em Oakland, ou os bancos extremamente inclinados nas paragens de autocarro, um pouco por todo o mundo).

estas pessoas habitam o espaço público, mas não são vistas como pertencentes ao mesmo

Ou seja, estas pessoas habitam o espaço público, mas não são vistas como pertencentes ao mesmo, e “tendem a ser desvalorizadas social, política e esteticamente porque não têm valor para o capital”. Há uma ideia associada de responsabilização individual da sua própria situação, como se todo o sistema não fosse responsável pelas políticas públicas insuficientes e mecanismos de exclusão social. E uma vez nessa situação, não servindo mais para alimentar o capital e a economia de mercado, são deixados/as à sua sorte.

Concomitantemente, as pessoas não são desprovidas de agência e, nesse sentido, têm o direito de estar integradas nas decisões coletivas que concernem à habitação e aos apoios e como estes devem ser moldados, de acordo com as suas necessidades. Identifico aqui um certo paradoxo - por um lado, responsabilizamo-las individualmente, mas por outro, não são chamados/as a ter voz nas soluções e processos decisórios, sendo atendidos/as em lógicas assistencialistas que não resolvem o problema (podem até agravá-lo) e se proclamam como satisfatórias.

Quantos de nós não evitam contacto quando abordados/as na rua por uma pessoa em situação de sem abrigo - viramos a cara, andamos mais rápido, não respondemos. Ignoramos que quem está à nossa frente é um ser humano. Habermas dizia, em 1984, que a nossa identidade é, em grande parte, resultado do que vemos de nós próprios/as espelhado nas caras dos/as outros/as. Portanto talvez a sua situação nos relembre da nossa própria situação de fragilidade e vulnerabilidade, vendo-nos impotentes face a um sistema que não nos dá justiça, e que a qualquer momento nos pode empurrar para uma espiral descendente de exclusão social.

Ver FOTOGALERIA Voluntários pelas pessoas sem-abrigo

Dignidade

Só quando reconhecemos damos dignidade. E reconhecer implica quebrar com a ideia de nós e de outros/as. Seyla Benhabib fala-nos do outro generalizado e do outro concreto - enquanto que o conceito do outro generalizado pressupõe que assumimos o/a outro/a enquanto indivíduo com os mesmos direitos e responsabilidades que queremos para nós próprios/as, é necessário vermos os/as outros/as concretamente, não apenas de forma generalizada, pois a generalidade exclui singularidades. O outro concreto pressupõe que as pessoas são seres racionais e únicos, com uma história de vida, com identidades e constituições afetivo-emocionais, e que só encarando o conceito de outro concreto enquanto continuum do outro generalizado conseguiremos compreender as necessidades, as motivações, as procuras, os desejos; ao considerarmos o outro concreto, confirmamos não apenas a sua humanidade, mas também a sua individualidade, e aproximamo-nos de uma ética do cuidado, que permite estabelecer as condições para cuidar de indivíduos específicos com necessidades concretas, e perceber quais as condições institucionais que permitem o trabalho dos cuidados. Por exemplo, não se podem pensar e delinear respostas para mulheres, homens, pessoas não-binárias e pessoas trans em situação de sem abrigo, de forma igual, pois as condições são variadas e a “cegueira” de género pode ser prejudicial.

Casa do Lago

Não podemos esquecer a situação duplamente fragilizada da mulher em situação de sem abrigo

A Casa do Lago é uma resposta de emergência que alberga apenas mulheres (cis e trans). Não podemos esquecer a situação duplamente fragilizada da mulher em situação de sem abrigo. Há um continuum da violência a que a mulher está sujeita, nomeadamente através das condições de habitação precárias, que têm origem (também) na divisão sexual do trabalho. As mulheres sofrem mais de empregos precários, sofrem mais de baixos salários e trabalham maioritariamente no setor dos serviços (que privilegia emprego temporário e mal pago) - aliás, a característica dominante dos padrões de mulheres trabalhadoras na Europa são níveis de segregação, baixos salários e desemprego. Ao mesmo tempo, sofrem de uma maior vulnerabilidade económica por dependerem de um modelo familiar patriarcal e muitas mulheres nesta situação estão-no devido a histórico de maus tratos e violência doméstica, agravando a sua situação, ou muitas vezes as mais idosas ficam numa situação hiper vulnerabilizada com a morte do seu companheiro masculino, nos casos em que o há, ficando em maior isolamento e consequente exclusão social. Muitas desempenham trabalhos em regimes informais e trabalhos domésticos, têm a sua situação agravada por não terem descontos e disporem de fraca proteção social, não esquecendo ainda que em Portugal, a maternidade é fator de empobrecimento, e muitas mulheres veem-se na situação de ter que cuidar dos/as filhos/as sozinhas. Uma vez “na rua”, há fatores de risco e agravamento a considerar: por um lado, há uma diferença entre estar em situação de sem abrigo sendo homem ou sendo mulher, sendo que a rua é tipicamente pertença do homem e a mulher é tipicamente remetida para a esfera privada, pelo que a mulher em situação de sem abrigo está em maior situação de invisibilidade, correndo mais perigo (físico, sexual) pelo lugar que a sociedade lhe atribui.

Mulheres em situação de sem abrigo

Ao mesmo tempo, as respostas para pessoas em situação de sem abrigo tipicamente não aplicam uma lente de género - uma vez que é um fenómeno maioritariamente masculinizado, as respostas sociais são dirigidas quase exclusivamente para homens, por serem a maioria, não dispondo as mulheres, as pessoas não-binárias, as pessoas trans, de respostas dirigidas a si. A referir ainda que no caso de mulheres racializadas e/ou migrantes, todos estes fatores se agravam à situação de risco de forma ainda mais vincada. A mulher em situação de sem abrigo é o exemplo de quando quase tudo falha - estão em situação de discriminação por serem mulheres, em relação aos homens; estão em situação de discriminação em relação à maioria das mulheres, por sofrerem de pobreza extrema. É duplamente excluída e não existem medidas de proteção social específicas. Nela encontram-se todas as ausências.

Direito à habitação

Em contexto de pandemia, quando os números de pessoas em situação de sem abrigo (que englobam pessoas que vivem na rua, pessoas que vivem em alojamentos de emergência, pessoas que pernoitam em centros de acolhimento, pessoas que vivam em “local precário” - carros, entradas de prédios, casas abandonadas) já está a aumentar, é urgente garantir o direito à habitação, que de resto se encontra expresso no artigo 65º da Constituição da República, e que deve ser encarado enquanto luta coletiva, e não apenas de quem precisa dela.

O direito à habitação está intrinsecamente relacionado, e é condição necessária para aceder a outros direitos, como o direito à educação, emprego, mobilidade ou saúde e trata-se portanto de uma questão de direitos humanos

O direito à habitação está intrinsecamente relacionado, e é condição necessária para aceder a outros direitos, como o direito à educação, emprego, mobilidade ou saúde e trata-se portanto de uma questão de direitos humanos. Destaco o acesso à saúde, pois embora tenhamos criado uma imagem coletiva de que uma pessoa em situação de sem abrigo tem questões de dependência de consumo de substâncias, e isso não corresponda à realidade factual, pois se há coisa que as crises dos últimos anos têm feito é acabar com um perfil-tipo da pessoa em situação de sem abrigo, também é verdade que há muitas pessoas nesta situação que têm frequentemente questões de consumos - por vezes como causa, por vezes como consequência da situação habitacional - e questões de saúde mental, que está longe de ser um direito adquirido em Portugal.

Os indivíduos não podem ser responsabilizados/as pela sua situação de sem abrigo e é imoral e inaceitável deixá-los/as à sua sorte quando sabemos que neste sistema económico, os mecanismos de saúde, de habitação e de proteção social falharam e continuarão a falhar.

A habitação transcende neste momento uma necessidade básica, tendo-se consubstanciado num objeto de mercado, com capacidade para criar diferenciação social. Numa altura em que se estima que milhares de pessoas em Portugal estejam nesta situação, e com uma crise à porta que agrava a situação dos e das que já se encontravam a viver de forma precária, com especial prejuízo de mulheres e migrantes, é mais urgente que nunca responsabilizar o Estado e estarmos comprometidos/as com o conceito de justiça social. É preciso, a nível coletivo, fazer melhor.

Portanto, aprendi também que não tenho resposta quando a pergunta que se impõe é “para onde vamos depois do vírus?”. Ainda não sei… mas continuaremos a lutar.

E assim, nesta Casa, sem conseguir identificar ainda onde está o que lhe dá o nome, olho para o horizonte e continuo a perguntar-me: onde estará o Lago…?

Texto de Inês Colaço Fernandes, estudante (pós graduação em Igualdade de Género e prestes a iniciar mestrado em Sociologia) e ativista d'A Coletiva.

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