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A importância da casa, por Luísa Costa Gomes

O que esta pandemia trouxe, entre muitos e muitos horrores que entretanto se foram tornando banais, foi a revelação do que estava escondido à vista de todos: uma sociedade deslassada e desamparada à beira de várias catástrofes. No centro desse desamparo está a casa, ou a falta dela. Intervenção de Luísa Costa Gomes no comício do Bloco em Almada.
Comício do Bloco de Esquerda em Almada, 22 de setembro de 2021 - Foto de Andreia Quartau
Comício do Bloco de Esquerda em Almada, 22 de setembro de 2021 - Foto de Andreia Quartau

Publicamos aqui o discurso que a escritora Luísa Costa Gomes fez no comício do Bloco de Esquerda, que teve lugar esta quarta-feira, 22 de setembro, em Almada.


Raras vezes na História recente, fora talvez durante as guerras, tiveram os governos tanto impacto na vida quotidiana das pessoas como durante esta pandemia. Não era por acaso que se falava do combate à doença com tantas imagens bélicas. Muitos falaram de atentados aos direitos fundamentais, o que é compreensível, se não atentarmos primeiro na necessidade de pensar e agir colectivamente e pelo bem comum.

Mas o que esta pandemia trouxe, entre muitos e muitos horrores que entretanto se foram tornando banais, foi a revelação do que estava escondido à vista de todos: uma sociedade deslassada e desamparada à beira de várias catástrofes. No centro desse desamparo está a casa, ou a falta dela.

Revelou-se o que estava à vista de todos: uma crise habitacional sem controlo e sem limite, fruto de uma espiral de voracidade que não deixa pedra sobre pedra, consequência de sucessivas bolhas do negócio imobiliário, talvez um dos negócios mais perversos do planeta. Um negócio sistémico, que joga com o que há de mais profundo e precioso em nós, o nosso sentido de pertença a um espaço que nos acolhe e que nos protege. Que joga com a nossa casa.

Quando escrevi a peça de teatro que lida com a perversão do imobiliário, depois da bolha de 2008, e que se chama Dias a Fio, queria tratar esse estranho fenómeno que é comprar e vender o sítio que habitamos, onde ficam impressos os traços, os fantasmas do que vivemos, a árvore que plantámos quando nasceu o primeiro filho, o sítio na sala onde ele deu os primeiros passos, o lugar em que acabei o primeiro romance, a parede para que eu estava a olhar quando me surgiu tal e tal ideia. Que a transação e o comércio dos espaços pessoais vividos se tenha tornado absolutamente banal é o sinal da mudança radical da nossa vida colectiva neste século.

A última peça que escrevi e que se chama Airbnb e Nuvens trata dessa miragem além-troika em que tudo se aluga até a cama em que dormimos. A verdade é que a actividade das multinacionais do imobiliário, a passividade do Estado que não quer nem por nada interferir no mercado e a falta de regulamentação provocam alterações sociais estruturais, com a especulação nos centros das cidades levando nas suas ondas de choque os rejeitados que não podem suportar os preços absurdos.

Ficou patente por exemplo durante a pandemia que quem mais se infectava com o vírus eram as pessoas com menos meios económicos, porque eram muitos, eram muitos em casas muito pequenas, não podiam confinar pela precariedade e invisibilidade administrativa dos seus trabalhos, não podiam deixar de viajar horas e horas em transportes sobrelotados. Ser pobre era e é correr um maior risco de vida. Almada ainda com a gestão comunista, depois com a gestão socialista, emocionou-se com um sobressalto de gentrificação.

Habituada a ter de si própria uma imagem de cidade periférica, pobre e trabalhadora, teve um primeiro brilhozinho nos olhos quando viu o seu miserável parque habitacional valorizar para além dos seus mais loucos sonhos. Almada foi das primeiras frentes a sofrer essa onda de choque vinda de Lisboa, embora já antes se fizesse sentir a vertigem no aumento dos preços pela mera falta de casas para comprar ou arrendar. É o mercado a funcionar. Ao que se diz, é o melhor para todos, compradores e vendedores, mas realmente é o melhor para as multinacionais do imobiliário e as câmaras que arrecadam impostos.

E estou neste caso apenas a referir o acesso à habitação de uma classe média cada vez mais vítima da precariedade e em permanente stress económico. Dantes dizia-se que a pequena burguesia vivia no pânico da proletarização. Hoje nem essa sorte tem a pequena burguesia: com trabalho precário e mal pago, o seu pânico é simplesmente o de ficar sem casa. Escolhendo um modelo social baseado na monocultura do turismo e na captação de nababos em fuga ou pior ainda, Almada continua a rejeitar quem lá vive e a esquecer que uma cidade é feita para a qualidade de vida e a dignidade dos seus habitantes. Porque também é isso, habitar um espaço: é viver todos os dias as consequências das opções políticas de quem o governa.

Por isso me parece tão pertinente colocar a questão da casa no centro das nossas preocupações políticas. Que todos possam ter uma casa com uma renda justa, que reflicta as qualidades da casa e do contexto, transportes colectivos bem pensados e a funcionar com boa coordenação, têm um impacto fundamental na vida das pessoas. As medidas que o Bloco propõe são todas prioritárias, quer na construção e renovação de habitação pública, quer no arrendamento a preços acessíveis, a importantíssima regulação do alojamento local, que não se reduz a uma questão de boa vizinhança, mas é fundamentalmente uma questão de justiça social, a redução do IMI, a habitação para os jovens.

Deixaria apenas uma última palavra de encorajamento aos que aqui não estão, e que precisem de alguma motivação extra para ir votar no domingo: as coisas assim não podem continuar. Para além dos horrores que esta pandemia trouxe, o mais triste e preocupante é que ela não tenha servido para repensar verdadeira e decididamente (e não só nos discursos da ONU), o modelo económico e social que foi sua causa indirecta. Que as medidas que se tornam cada vez mais necessárias se tenham tornado num discurso vazio para político fazer boa figura. Tentemos mais uma vez fazer a diferença.

Discurso da escritora Luísa Costa Gomes no comício do Bloco de Esquerda em Almada, a 22 de setembro de 2021

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