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Autodeterminação de género nos documentos: e depois?

Aprovada a lei da autodeterminação de género, a questão que se coloca é o que aconteceu depois. Quais as dificuldades que as pessoas trans têm encontrado? Na prática, o que mudou? Como é que estas pessoas vêem a sua identidade e as suas escolhas respeitadas? Em que medida em que a autodeterminação esbarra na determinação alheia? Por Ana Bárbara Pedrosa.
Fotografia de Ana Candeias
Fotografia de Ana Candeias

Recentemente, o país assistiu a melhorias legais em relação a questões de reconhecimento de identidade de género autodeterminado. Com altos e baixos no decorrer do processo, 2018 ficou marcado no calendário como um ano importante em termos de reconhecimento de direitos: a 13 de Abril, o parlamento aprovou uma proposta que eliminava a patologização da alteração de género. Não foi coisa pouca, na medida em que acabava com a obrigatoriedade do diagnóstico médico e reduzia a idade legal de 18 para 16 anos. Mas não foi coisa muita, na medida em que muito ficou ainda por fazer. Aliás, o projecto de lei apresentado pelo Bloco de Esquerda queria ainda que a identidade trans deixasse de ser considerada uma doença mental.

Nem esta alteração foi escorreita: a lei que o parlamento aprovou encontrou inicialmente uma parede chamada Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente da república queria que houvesse um relatório médico para a mudança de sexo no registo civil de menores de 18 anos. O Bloco afirmou que Rebelo de Sousa pedia um relatório médico para um acto civil.

Entretanto, a Organização Mundial de Saúde excluiu a transexualidade, até então entendida como “transtorno de identidade de género”, da lista de doenças mentais.

Em Junho, uma petição pediu aos deputados que rejeitassem o veto de Marcelo, já que a nova lei da identidade de género viria a ser reapreciada no parlamento em Julho. Nessa altura, o órgão voltou a aprovar a autodeterminação, acabando esta por ser promulgada e vindo a ser publicada em Dezembro seguinte.

A lei de Março de 2011 fazia com que, para se alterar nome e sexo no registo, se tivesse de ter pelo menos 18 anos, se fizesse um requerimento numa conservatória, pagasse 200 euros de emolumentos e apresentasse um relatório que comprovasse o diagnóstico de perturbação de identidade de género. Por sua vez, este teria de ser da autoria de uma equipa multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro. A lei da autodeterminação de género veio acabar com estas diligências tantas vezes encaradas como humilhações ou menosprezos.

Cabe acrescentar que, para se fazer a alteração no cartão de cidadão, não é preciso estar a fazer reposição hormonal. E, para se fazer reposição hormonal, não é preciso alterar o cartão de cidadão. Após a alteração do nome de cidadão, segue-se a actualização dos restantes documentos oficiais: passaporte, carta de condução, contratos de arrendamento e/ou escritura da casa, diplomas, cartões de identidade de descendentes (só após os 18 anos), registo de animais, documento único automóvel, certidão de casamento, contas do banco, seguros, contratos de arrendamento, fornecimento de gás/luz/água/internet, propriedade intelectual, caderneta predial. Só a partir de 2011 é que se começou a pagar a mudança de nome. O valor, de cerca de 200 euros, será exagerado até para as taxas de emolumentos habituais, até porque o resto terá de ser pago à parte.

A exigência da despatologização foi acertada do ponto de vista legal e social, quebrando barreiras impostas por preconceitos e dando a possibilidade do livre arbítrio às pessoas trans, sem amarras legais impostas por outros. Contudo, o processo de transição não é assim tão a direito. Encarar a identidade trans como uma doença, num contexto em que os profissionais médicos têm de dar avais para o prosseguimento da transição (de nome ou de corpo), faz com que a decisão final sobre a vida de alguém, num elemento que pertence ao seu íntimo, esteja nas mãos de terceiro. Assim, será natural que as pessoas trans evitem ser observadas: não sabem se haverá discriminação do outro lado.

Podemos constatar que a lei teve avanços importantes. As alterações legais conferiram legitimidade à condição e legitimidade à decisão. A questão que se coloca é o que aconteceu depois. Quais as dificuldades que as pessoas trans têm encontrado? Na prática, o que mudou? Para além de acções que conferem e mostram inequívoca dignidade (a autodeterminação não é coisa pouca), como é que estas pessoas, que não estão protegidas de discriminação no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, vêem a sua identidade e as suas escolhas respeitadas?

A autodeterminação e a determinação alheia

Quem desejar alterar de nome pode fazê-lo consoante a sua vontade, precisando apenas de um atestado de um profissional de saúde de que está consciente da sua decisão. Esse documento, para além disso, não tem de atestar qualquer disforia de género.

Contudo, para proceder à mudança de sexo física, o caminho fica mais complicado. O reconhecimento da identidade garantido na leia esbarra na prática, já que, para efeitos de autorizações de alteração do corpo, terá de ser feito um diagnóstico de patologia mental e de ser atestada a disforia de género. Este, claro, poderá deixar o ónus da decisão nas mãos de alguém que não a pessoa que autodeterminou o seu género, criando-se uma clivagem entre a autodeterminação e a determinação alheia.

Para mais, o SNS não assegura uma resposta segura, eficaz e atempada e o SNS centralizou os processos de transição médica, das operações cirúrgicas que as pessoas querem fazer, na Unidade Reconstrutiva Genito-Urinária e Sexual (URGUS), do Centro Hospital e Universitário de Coimbra (CHUC).

Estando legalmente garantida a ideia da autodeterminação de género, que leva a que, por exemplo, um maior de 16 anos possa mudar oficialmente de nome para um que esteja de acordo com a sua identidade de género, os relatos afirmam que a autodeterminação encontra entraves, seja na oferta pública que impede cirurgias, devido a filas de espera incomportáveis, seja porque o processo depende de autorizações de médicos que podem, simplesmente, boicotar o processo.

Contactados pelo Esquerda.net, tanto Isaac dos Santos (23 anos, Lisboa) como Ary Zara (33 anos, Lisboa) e Vasco Sampaio (18 anos, Almada) relataram exemplos de casos de pessoas transexuais que ficaram até um ano em consultas e conversas até que fosse possível começar o tratamento hormonal. Ary Zara repara na discrepância: “Não se precisa de autorização de ninguém para se engravidar, que é uma decisão importante que envolve a vida de outra pessoa, mas numa transição, que só envolve o próprio, é preciso dar provas e tentar convencer.”

Isaac dos Santos. Fotografia de Melissa Vieira.

Ou seja, a autodeterminação esbarra na determinação alheia. Tanto Isaac como Ary e Vasco sublinharam o peso dado ao sistema binário, identificando o maior problema: quem não se encaixa peremptoriamente numa caixa pré-estabelecida do que é o feminino e o masculino dificilmente vai ter aprovação médica para iniciar ou prosseguir a sua transição. “Uma pessoa afirma a sua identidade mas o médico acha que tem de ser convencido”, aponta Vasco.

Por outras palavras, a decisão de alguém sobre o seu próprio corpo e a sua afirmação de género fica depende da concepção de género de um médico, ainda que a lei garanta aos cidadãos maiores de 16 a possibilidade de determinarem os seus géneros.

As caixas de um sistema binário, uma transição inequívoca

O parecer de um médico ou de um psicólogo será necessário para atestar a certeza na decisão de quem procura a transição, embora não ateste a disforia de género. Posteriormente, afirma Ary, “as pessoas têm de provar aos médicos que são trans, o que faz com que criem uma narrativa que sabem que será aceite”, referindo a um modelo binário em que se tem de encaixar forçosamente. “Se um rapaz de cabelo comprido chega lá, é meio caminho andado para atrasos”, acrescenta Isaac.

Esta ideia é corroborada por Vasco: “Há muitos impedimentos e a visão de que ser trans é só uma história.” “Tem de haver uma narrativa que passe no teste”, acrescenta. Assim, pese a autodeterminação de género na hora de mudar de nome nos registos, as pessoas vêem-se confrontadas com muitas barreiras ao longo da transição. “Quando isso acaba”, continua Vasco, “começa a lista de espera para as cirurgias. E muitas vezes há novas avaliações ainda”. E perdem-se anos de vida assim.

Muito mais do que mudar de nome

Identifica-se ainda um problema nos dados da filiação. Se uma pessoa, após a sua transição, não vê o seu nome alterado no documento de identidade de um filho, pode criar-se um problema legal. É que, para mudar a filiação, só com a autorização do/a outro/a responsável pelo menor ou então por vontade do próprio, mas só depois dos 18 anos. “Até lá, como provar que aquela pessoa é pai ou mãe?”, aponta Ary.

Ary Zara. Fotografia de Pedro Almeida.

Ary Zara. Fotografia de Pedro Almeida.

Em causa estarão casos como idas às urgências hospitalares. A mudança de nome, ao não se estender logo às declarações de filiação, pode deixar um pai ou uma mãe de fora, e um menor sem o acompanhamento devido. A possibilidade de mudar o nome na filiação com a autorização do outro genitor deixa o caso nas mãos “da benevolência da outra pessoa”, diz Vasco, e não sem ironia, acrescentando que a situação se poderia manter num relacionamento abusivo. “Que autodeterminação é esta em que as pessoas são obrigadas a expor-se e a contar a história toda, submetendo-se ao escrutínio alheio?”, pergunta. Da mesma forma, as certidões de casamento só podem ser alteradas com a autorização dos cônjuges.

De resto, se é certo que a autodeterminação veio regular o processo da mudança de nome e marcação de sexo, em termos de intervenção médica, salienta Vasco, “não adicionou quase nada”, porque o principal problema permanece, já que as leis de transição são as mesmas, datadas de 2011, e implicam duas avaliações psicológicas para que as pessoas possam aceder a tratamento hormonal ou para serem reencaminhadas para a cirurgia.

Ora, também aqui se encontra um entrave. A “autodeterminação” esbarra novamente ao ser encarada quase como patologia. Caberá, neste sistema, à pessoa que quer um processo de transição provar-se enquanto não-cisgénero e provar a sua sanidade. “Se não entras no sistema binário, estás fora”, sublinha Isaac várias vezes. As duas avaliações fazem com que se esteja sujeito à vontade e até aos preconceitos dos médicos. “Há hospitais que até são desaconselhados”, afirma Vasco, referindo profissionais que empatam o processo. Relatando casos de descredibilização da identidade de género das pessoas, Vasco afirma que “o Hospital de Santa Maria ninguém recomenda a ninguém” e que há médicos que se recusam a avançar no processo de transição.

Para além disto, Vasco refere as longas listas de espera e um processo de transição muito centralizado em Lisboa, no Porto e em Coimbra. Ainda assim, não deixa de afirmar que houve um grande avanço, embora acrescente que “a transição ficou aquém” e não deixe de sublinhar que o cartão de cidadão veio incluir um marcador de género que o bilhete de identidade não tinha.

Vasco Santos. Fotografia de Pedro Almeida.

Vasco Sampaio. Fotografia de Pedro Almeida.

O processo só pode começar aos 16 anos, as cirurgias só aos 18 (no público). A vontade dos médicos e as filas de espera vão causando os seus entraves.

Para além disso, as cirurgias têm de ser autorizadas pela Ordem dos Médicos. “É a única cirurgia onde isto acontece”, afirma, acrescentando que as autorizações demoram meses a ser enviadas. “Para alem da patologização, as pessoas ainda têm de enviar uma carta a expôr a sua vida à Ordem dos Médicos, esperando que o bastonário autorize rapidamente”, aponta Vasco.

Isto contraria as indicações da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Sendo recomendações, ou seja, não tendo um carácter obrigatório, podem ser ignoradas consoante a vontade dos médicos, que “passam por cima”, diz Vasco.

Isto revela ainda os entraves que se colocam nos processos de transição. Vasco aponta para as dissonâncias entre tratamentos relativos ao corpo: “uma mulher cis que queira fazer uma mamoplastia de aumento não tem de fazer nada; uma mulher trans tem de passar por duas avaliações, hormonas, cartas à Ordem dos Médicos, esperas”.

Procedimento muito semelhante, caminho muito diferente. E, de um lado, muito pedregoso.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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