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24 de Agosto de 1820: uma revolução inacabada

Há 200 anos começou no Porto uma revolução que acabou com a Inquisição e privilégios senhoriais, estabeleceu a igualdade perante a lei e a liberdade de imprensa, criou a primeira Constituição do país, afirmou o princípio da separação dos poderes. Por José Castro.
Ilustração sobre a Revolução Liberal.
Ilustração sobre a Revolução Liberal.

Foi há 200 anos. Na cidade do Porto, no então Campo de Santo Ovídio, (depois Praça da Regeneração e hoje Praça da República). Na madrugada de 24 de Agosto, o coronel Cabreira, um dos militares envolvidos no pronunciamento militar, reuniu a tropa. Após uma missa campal, foram lidas Proclamações aos soldados: “…Criemos um governo provisório, em quem confiemos…. Ele chame as Cortes e elas preparem uma Constituição!”. Uma outra Proclamação realçava o respeito pelo rei e pela religião católica e pedia uma Constituição “cuja falta é a origem de todos os nossos males”. O povo assistiu. A seguir, foi o caminhar até à Câmara Municipal na Praça Nova, hoje Praça da Liberdade. Ali foi aprovada a criação duma Junta Provisória do Governo Supremo do Reino com a atribuição de convocar as Cortes (que tinham reunido pela última vez em 1698) para a elaboração de uma Constituição. No “Manifesto aos Portugueses” afirmava-se, para justificar o pronunciamento: “…vimos nós desaparecer desgraçadamente nosso comércio, definhar-se a nossa indústria, esmorecer a agricultura e apodrecer nossa marinha…”. ”Imitando nossos maiores, convoquemos as Cortes …”.

O pronunciamento militar fora impulsionado pelo Sinédrio, associação criada no Porto em Janeiro de 1818 por Manuel Fernandes Tomás, desembargador da Relação do Porto e que viria a ser uma das principais figuras do complexo processo de instauração do liberalismo em Portugal. O Sinédrio, composto por 13 membros, entre os quais três militares, reunia-se todos os meses para apreciar a marcha dos acontecimentos e acompanhar as notícias da vizinha Espanha, onde uma revolta liberal tinha restabelecido o texto constitucional de Cádis. É Manuel Fernandes Tomás que redige a Proclamação “Aos habitantes de Lisboa” em que para justificar a necessidade de uma Constituição, refere a situação humilhante em que o país se encontra: a estadia do rei João VI no Brasil, onde se refugiara aquando da primeira invasão francesa em 1807, e os pesados custos de sustento da sua corte; o poder que Beresford e outros oficiais britânicos dispunham no reino; a repressão cruel contra oficiais do exército português, como Gomes Freire de Andrade, acusados em 1817 de conspiração para estabelecer um regime parlamentar e condenados à morte por enforcamento com posterior queima dos corpos; a insatisfação com o Tratado de Comércio e Navegação com a Inglaterra em 19 de Fevereiro de 1810 que possibilitou aos comerciantes ingleses obterem maiores ganhos que os portugueses no comércio com o Brasil.

O pronunciamento militar de Agosto de 1820 iniciado no Porto continha à partida contradições e ambiguidades nas intenções e compromissos entre os militares e outros autores do levantamento, refletindo diferentes opções políticas e dissidências entre forças sociais. Em Lisboa foi decisiva a revolta popular em 15 de Setembro contra os Governadores do Reino (Cardeal Patriarca, Marquês de Borba, Conde de Peniche, Conde da Feira) que não queriam reconhecer o novo poder, considerando-se “únicos depositários legítimos da Autoridade Régia”. E dois meses depois, António da Silveira que tinha sido presidente da Junta Provisória, quis atacar os liberais através dum golpe militar em Lisboa (a Martinhada, em 11 de Novembro).

Neste primeiro período do liberalismo, que ficou conhecido como “vintismo”, as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes, eleitas por sufrágio indirecto e não-universal (não puderam votar as mulheres, os menores de 25 anos ou os “criados de servir”), decidiram sobre temas importantes como o fim da Inquisição ou o estabelecimento da liberdade de imprensa. E também aprovaram o decreto de 2 de Abril de 1821 da abolição dos privilégios, como os serviços pessoais ou os que impediam a navegação dos rios. “A machadada mais funda que as Cortes vibraram na organização social do antigo regime”, como salientou Joaquim de Carvalho. Por decisão das Cortes Constituintes de 28 de Agosto de 1821 foram criadas Comissões de Comércio das Praças de Lisboa e Porto que reivindicaram “mais que a liberdade civil, liberdade de comércio”: divisão das propriedades rurais, abolição das barreiras e portagens que dificultavam a circulação de mercadorias, um Código Comercial (que veio a ser elaborado por Ferreira Borges, um dos membros do Sinédrio). E como solicitado, um Banco de Lisboa foi criado em finais de 1821. Em 23 de Setembro de 1822 foi aprovada a primeira Constituição em Portugal. Emanada duma assembleia eleita e à qual o rei se subordinaria, a Constituição de 1822 trata nos primeiros 19 artigos “Dos direitos e deveres individuais dos Portugueses”. Ao consagrar os ideais liberais de separação de poderes, de igualdade perante a lei e de respeito pelos direitos pessoais, foi alvo do continuado e brutal ataque dos partidários do absolutismo.

Logo em Fevereiro de 1823, Manuel da Silveira, conde de Amarante, dirigiu uma revolta em Trás-os-Montes: “Morra a Constituição e todos os seus sectários”. E em 27 de Maio, a sublevação da Vila-Francada em que o infante D. Miguel proclamou a restauração do regime absolutista, ficou evidente o carácter reacionário e violento dos oponentes à primeira experiência constitucionalista liberal em Portugal. As consequências económicas da independência do Brasil, a ainda grande força social do clero e da nobreza e as alterações na situação ibérica (o exército francês tinha recolocado Fernando VII no trono de Espanha) favoreceram os absolutistas, que anularam reformas e aboliram a Constituição de 1822.

Depois, em 29 de Abril de 1826 foi outorgada por D. Pedro, proclamado imperador do Brasil e herdeiro do trono de Portugal, uma “Carta Constitucional da Monarquia Portuguesa”. Não era uma constituição elaborada e votada por uma assembleia constituinte. A Carta Constitucional era “um dom espontâneo do poder de sua majestade”, o que fazia toda a diferença. Sobrepunha ao texto da Constituição de 1822 os poderes do monarca, como o de vetar leis ou de dissolver a Câmara dos Deputados. Esteve em vigor 2 anos.

Após o regresso de D. Miguel a Portugal foi dissolvida a Câmara dos Deputados, em 13 de Março de 1828. E durante seis anos, até os absolutistas serem derrotados na guerra civil que terminou em 1834, os liberais foram impiedosamente perseguidos. A revolta de 16 de Maio de 1828 que apenas pretendia restaurar o regime constitucional levou à forca 12 liberais (os “mártires da liberdade”): após a execução na então Praça Nova no Porto foram-lhes cortadas as cabeças e as mãos. E até Julho de 1831, além de confiscados bens a 80 mil famílias, houve mais de 26 mil presos, 14 mil exilados, 1.600 condenados ao degredo e 39 executados. Em 8 de Julho de 1832 os combatentes do exército libertador dirigido por D. Pedro, vindos dos Açores, desembarcaram na praia de Arnosa de Pampelido (em Matosinhos) e chegaram ao Porto, cidade que teve um papel de relevo para a vitória dos liberais. O cerco do Porto durante quase um ano pelos miguelistas e partidários absolutistas, foi um dos acontecimentos mais dramáticos vividos na cidade, mas foi também o símbolo de uma nova fase da vida do país, em que a liberdade era uma das ideias chave.

Mais tarde, em Setembro de 1836, o povo de Lisboa recebeu com entusiasmo Passos Manuel e outros deputados do Porto. Reclama-se a “imediata proclamação da Constituição de 1822 com as modificações que as cortes constituintes julgarem por bem fazer-lhes”. O novo governo (setembrista), irá aprovar medidas políticas relevantes: uma pauta aduaneira protecionista da indústria nacional, abolição do tráfico da escravatura, novo código administrativo com o território organizado em distritos, concelhos e freguesias, concurso para construção da estrada de Lisboa ao Porto, criação de liceus em todas as capitais de distrito e de escolas politécnicas. E uma nova Constituição, de que Almeida Garrett foi o principal relator, foi aprovada em Abril de 1838. Com 139 artigos, previa duas Câmaras, a dos Senadores (com grandes proprietários, bispos, oficiais-generais) e a dos Deputados. Para a eleição destes, por sufrágio censitário, era preciso ter a renda anual de quatrocentos mil reis. Esta Constituição vigorou até 10 de Fevereiro de 1842, quando Costa Cabral lançou do Porto mais um golpe militar (o regime dos barões), que restaurou a Carta Constitucional, a qual haveria de vigorar quase 70 anos, até à instauração da República em Outubro de 1910. Após levantamentos populares como a “Maria da Fonte” em 1846 ou depois “A Patuleia” contra as políticas fiscais e sanitárias de Costa Cabral ou pela tradição contra a modernidade, tropas espanholas e inglesas entraram em Portugal e teve lugar a Convenção de Gramido, em Gondomar, em 29 de Junho de 1847.

Veio atrasado o despertar do liberalismo em Portugal. Almeida Garrett manifestou logo em 1822 a sua deceção perante a ausência de reformas na instrução pública por parte das primeiras cortes constituintes. Para Alexandre Herculano, a revolução liberal não foi apenas política, mas também social e económica. Mas nos seus “Opúsculos”, salienta os malogros relativos: ao fim de 14 anos, e para favorecer a classe senhorial e proteger os lavradores, tinha sido anulado o decreto de Mouzinho da Silveira de 13 de Agosto de 1832 que abolira a dízima eclesiástica e os direitos senhoriais. Que dizer?

Em 1800 a população portuguesa andava pelos três milhões, quase 80% vivia da agricultura. O Porto tinha 63.000 habitantes, Setúbal, Braga e Coimbra pouco mais de dez mil em cada uma das cidades. Em Lisboa viviam 200.000 “almas”, como se dizia até ao primeiro código civil de 1867. A indústria era ainda incipiente. Um relatório ministerial de 30 de Dezembro de 1822 registava a existência de 1.031 fábricas que empregavam quase 15.000 operários. A primeira máquina a vapor só surgiria em 1835.

Nem a revolução francesa (1789), nem as primeiras tentativas do liberalismo em Espanha (Constituição de Cádis em 1812) tinham abalado as estruturas políticas e económicas em Portugal. Como salientou o historiador Victor de Sá, a burguesia liberal portuguesa não manifestou vigor revolucionário. Só perante a grave situação económica decorrente da perda do monopólio comercial do Brasil é que um sector da burguesia se decidiu em 1820 a uma ação política organizada. O seu ideal político era o regime parlamentar e constitucional. Partilhar com a classe dominante alguns privilégios parecia ser a aspiração económica e social da burguesia liberal. Para Joel Serrão (“Da Regeneração à República” – p.19), a pequena espessura social da burguesia portuguesa nos primeiros anos do séc. XIX, empurraram-na para sucessivos arranjos políticos com o clero e a nobreza.

Neste movimento europeu de transformação liberal, não se tratou apenas duma luta política, económica e militar contra os “miguelistas” e apoiantes do regime absolutista. Houve lutas sociais. E uma das ideias centrais a reter, para os dias de hoje, é que não basta aprovar leis, mesmo que feitas com boas intenções sociais e viradas para o progresso dum país. O que é mesmo necessário é a movimentação social para assegurar direitos e conquistas económicas e sociais. E a intervenção organizada das classes populares. Como a revolução inacabada de 1820 bem mostrou.

Sobre o/a autor(a)

Jurista. Membro da Concelhia do Porto do Bloco de Esquerda
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