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As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Neste dossier, o Esquerda.net mostra análises das censuras feitas às obras das autoras portuguesas no decorrer do Estado Novo. O objectivo é entender os motivos que levaram à proibição da circulação das obras e ainda a recepção, ou falta dela, que tiveram.

As recepções foi díspares. Num caso, a proibição da obra motivou um protesto internacional. Houve editoras fechadas, penas, ameaças. Houve obras que ficaram perdidas para sempre, outras que voltaram a ver as prateleiras depois do término da ditadura, outras que se canonizaram.

Com esta panóplia, cabe inicialmente perguntar se a censura foi determinante no apagamento de obras literárias ou se estas ultrapassaram os mecanismos repressivos, conguindo influir na sociedade portuguesa e/ou na estética literária.

Para se chegar ao total de obras – 21, escritas por 9 autoras –, foram usados os serviços de arquivo da Torre do Tombo, localizada em Lisboa, onde se encontra o arquivo da PIDE/DGS. Através deste, pode aceder-se não apenas à lista das obras censuradas, mas também aos relatórios escritos pelos censores literários e às fichas que as autoras tinham na polícia política.

Será difícil destrinçar exactamente qual era o papel que a censura literária desempenhava na canonização literária. O seu objectivo era calar a diversidade e havia circulação livre de literatura que não fosse julgada pelos censores literários como atentória do regime, ou da sua moral. Veremos que a PIDE censurou obras muito diversas, cujas autoras tiveram percursos e intenções muito diferentes, assim como valores literários. A selecção deste corpus permite não olhar a hierarquias ou ao cânone e dar a todas as autoras, caídas no esquecimento ou não, estudadas ou não, um tratamento por igual.

Mas mulheres escritoras porquê?

Os relatórios da Torre do Tombo mostram-nos que, devido à condição de partida transversal no decorrer do Estado Novo, que passava pela domesticação das mulheres – que, não sendo vistas como agentes históricos ou sociais, teriam um menor acesso à produção simbólica –, o acto de escrita era já um acto performativo de desconstrução de uma ordem social politicamente imposta.

Assim, a escrita literária por parte de mulheres, num contexto político de menorização política e social das mesmas, significava a reivindicação do acesso à produção simbólica. O trabalho de análise, por isso, passará por uma atenção particular a esta condição de produção, ainda que venha a focar-se nas condições de recepção da obra, de forma a avaliar o impacto da censura.

Que autoras foram estas?

Neste dossier, analisamos os percursos de 21 obras escritas por 9 autoras. O número salta à vista por ser tão parco, principalmente se comparado às centenas de autores censurados.

O outro ponto interessante deste conjunto de obras é a variedade de percursos que tiveram, assim como os valores literários diferentes. Se hoje nomes como os de Maria Teresa Horta ou Natália Correia são conhecidos e lidos, Nita Clímaco ou Maria da Glória caíram no esquecimento. Umas usaram os elementos que provocariam a censura como elementos internos da própria estrutura narrativa, outras usaram-nos como adereços. Será difícil delinear o que leva à canonização de uma obra, mas tentámos, neste dossier, perceber o potencial canónico de cada obra, assim como o sucesso da censura na neutralização da recepção.

Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?

 

Maria Archer

No caso de Maria Archer, parece-nos que a acção da censura teve um peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo de viver mais de duas décadas fora de Portugal. Para além disso, enformou-lhe a criação, já que teve de alterar a sua obra de forma a que esta pudesse passar ilesa pela mão dos agentes censórios. Tem havido algumas tentativas de recuperação da sua obra – e, consequentemente, do seu lugar na história literária –, mas estas têm sido insuficientes para que seja conhecida pelo grande público.

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Carmen de Figueiredo

Carmen de Figueiredo foi censurada pela inclusão, na estrutura da narrativa, de descrições sexuais. Estes são elementos secundários da narrativa: possibilitam-na, mas não são um elemento interno, não clamam, não acicatam. Não havendo, assim, nada de particularmente subversivo na sua obra, não nos parece que esta autora pudesse alguma vez ter-se canonizado, já que não só não fez dos seus elementos internos elementos sociais como não foi pródiga em termos de criação linguística e/ou estética.

Assim, não tem um papel de relevo na história da literatura/estética e não desempenha nenhum papel em relação ao que é social e político do seu tempo de actividade.

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Nita Clímaco

Nita Clímaco teve três obras censuradas pela PIDE. Ao longo de toda a sua carrreira literária, teve apenas uma segunda edição, fora do país.

O nome da autora figura apenas em alguns (poucos) estudos sobre emigração, tema central da sua obra, que marca o ponto da história. Nos seus romances, a autora fazia contrastar Portugal, pobre, iminentemente rural, culturalmente tacanho, a França, moderna, culturalmente viva. No entanto, a modernidade acabava por ser sempre apresentada como uma devassidão moral, permitindo uma matriz crítica difusa.

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Natália Correia

Natália Correia viu seis obras suas censuradas pela PIDE, mas essa tentativa de apagamento teve pouco efeito na sua vida literária pós-ditadura em termos de recepção. Não só algumas dessas obras foram editadas após o 25 de Abril, como a autora atingiu mesmo tornar-se num dos nomes mais proeminentes da cultura portuguesa nas décadas seguintes. Correia teve novos livros, milhares de leitores, prémios e reedições.

A ineficácia da acção da PIDE dever-se-á à profundidade intelectual da obra da autora, que se vê a relação histórica com a realidade e um grande alcance no quadro do subtexto. Assim, as obras exigem do leitor o contacto com o mundo e uma capacidade analítica suficiente para alcançar a significância da obra.

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Fiama Hasse Pais Brandão

As obras de Fiama censuradas pela PIDE primam pelas relações dialógicas, já que a autora estabelecue paralelismos com alcance no passando, fazendo com que se confundissem vida e peça. As suas obras são políticas e comprometidas, tendo feito soar os alarmes da censura.

Os intentos ditatoriais, contudo, não apagaram a autora da história literária, já que, mesmo após o 25 de Abril, foi a palco e teve uma longa carreira poética.

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Maria Teresa Horta

Maria Teresa Horta é uma das mais proeminentes figuras da cultura portuguesa do século XX e do início do século XXI. Em Minha Senhora de Mim, fez das descrições sexuais um elemento central, interno, da formulação literária, significando a reclamação de um direito, rejeitando uma moral imposta pelo regime político. O discurso da obra incomodou o poder instituído, que teve necessidade de vilipendiá-la: perseguiu a autora, intimidou quem a publicara, tentou boicotar-lhe a carreira.

Ler também: A censura de "Minha Senhora de Mim"

 

As três Marias

Novas Cartas Portuguesas, escrito por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, tem um papel de destaque na história literária e na história portuguesa. Obra intertextual, dialoga com outras, conseguindo alcance no passado. Ao mesmo tempo, foi escrita a seis mãos, acção rara em literatura, desafiando as noções de autoria.

No conjunto de livros aqui tratados, teve um papel político ímpar, já que a sua censura levou a um movimento de solidariedade internacional, manifestações e à criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres.

Sendo a única obra claramente feminista da história literária portuguesa, chamou a atenção para a relação de subalternidade em que as mulheres viviam, denunciando-a como construção social e rejeitando a naturalização que o Estado Novo tentava fazer passar.

Ler também: Três Marias: a censura de "Novas Cartas Portuguesas"

 

Resumo e conclusões

Nem todas as obras aqui tratadas foram capazes de expressar o zeitgeist em que foram concebidas. Se nuns exemplos é claro que se procura a relação dialógica autora-obra-púbico, noutras há elementos que não parecem exigir uma resposta do leitor, que não parecem responsabilizá-lo no processo de comunicação ou mesmo na vida pública. Se numas a estruturação das obras foi norteada por um claro controlo crítico, noutras esse controlo não parece sequer ter existido.

Para ler um resumo deste dossier, e respectivas conclusões, pode clicar na imagem seguinte:

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

 

 

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Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.