Neste dossier, o Esquerda.net mostra análises das censuras feitas às obras das autoras portuguesas no decorrer do Estado Novo. O objectivo é entender os motivos que levaram à proibição da circulação das obras e ainda a recepção, ou falta dela, que tiveram.
As recepções foi díspares. Num caso, a proibição da obra motivou um protesto internacional. Houve editoras fechadas, penas, ameaças. Houve obras que ficaram perdidas para sempre, outras que voltaram a ver as prateleiras depois do término da ditadura, outras que se canonizaram.
Com esta panóplia, cabe inicialmente perguntar se a censura foi determinante no apagamento de obras literárias ou se estas ultrapassaram os mecanismos repressivos, conguindo influir na sociedade portuguesa e/ou na estética literária.
Para se chegar ao total de obras – 21, escritas por 9 autoras –, foram usados os serviços de arquivo da Torre do Tombo, localizada em Lisboa, onde se encontra o arquivo da PIDE/DGS. Através deste, pode aceder-se não apenas à lista das obras censuradas, mas também aos relatórios escritos pelos censores literários e às fichas que as autoras tinham na polícia política.
Será difícil destrinçar exactamente qual era o papel que a censura literária desempenhava na canonização literária. O seu objectivo era calar a diversidade e havia circulação livre de literatura que não fosse julgada pelos censores literários como atentória do regime, ou da sua moral. Veremos que a PIDE censurou obras muito diversas, cujas autoras tiveram percursos e intenções muito diferentes, assim como valores literários. A selecção deste corpus permite não olhar a hierarquias ou ao cânone e dar a todas as autoras, caídas no esquecimento ou não, estudadas ou não, um tratamento por igual.
Mas mulheres escritoras porquê?
Os relatórios da Torre do Tombo mostram-nos que, devido à condição de partida transversal no decorrer do Estado Novo, que passava pela domesticação das mulheres – que, não sendo vistas como agentes históricos ou sociais, teriam um menor acesso à produção simbólica –, o acto de escrita era já um acto performativo de desconstrução de uma ordem social politicamente imposta.
Assim, a escrita literária por parte de mulheres, num contexto político de menorização política e social das mesmas, significava a reivindicação do acesso à produção simbólica. O trabalho de análise, por isso, passará por uma atenção particular a esta condição de produção, ainda que venha a focar-se nas condições de recepção da obra, de forma a avaliar o impacto da censura.
Que autoras foram estas?
Neste dossier, analisamos os percursos de 21 obras escritas por 9 autoras. O número salta à vista por ser tão parco, principalmente se comparado às centenas de autores censurados.
O outro ponto interessante deste conjunto de obras é a variedade de percursos que tiveram, assim como os valores literários diferentes. Se hoje nomes como os de Maria Teresa Horta ou Natália Correia são conhecidos e lidos, Nita Clímaco ou Maria da Glória caíram no esquecimento. Umas usaram os elementos que provocariam a censura como elementos internos da própria estrutura narrativa, outras usaram-nos como adereços. Será difícil delinear o que leva à canonização de uma obra, mas tentámos, neste dossier, perceber o potencial canónico de cada obra, assim como o sucesso da censura na neutralização da recepção.
Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?
Maria Archer
No caso de Maria Archer, parece-nos que a acção da censura teve um peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo de viver mais de duas décadas fora de Portugal. Para além disso, enformou-lhe a criação, já que teve de alterar a sua obra de forma a que esta pudesse passar ilesa pela mão dos agentes censórios. Tem havido algumas tentativas de recuperação da sua obra – e, consequentemente, do seu lugar na história literária –, mas estas têm sido insuficientes para que seja conhecida pelo grande público.
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Carmen de Figueiredo
Carmen de Figueiredo foi censurada pela inclusão, na estrutura da narrativa, de descrições sexuais. Estes são elementos secundários da narrativa: possibilitam-na, mas não são um elemento interno, não clamam, não acicatam. Não havendo, assim, nada de particularmente subversivo na sua obra, não nos parece que esta autora pudesse alguma vez ter-se canonizado, já que não só não fez dos seus elementos internos elementos sociais como não foi pródiga em termos de criação linguística e/ou estética.
Assim, não tem um papel de relevo na história da literatura/estética e não desempenha nenhum papel em relação ao que é social e político do seu tempo de actividade.
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Nita Clímaco
Nita Clímaco teve três obras censuradas pela PIDE. Ao longo de toda a sua carrreira literária, teve apenas uma segunda edição, fora do país.
O nome da autora figura apenas em alguns (poucos) estudos sobre emigração, tema central da sua obra, que marca o ponto da história. Nos seus romances, a autora fazia contrastar Portugal, pobre, iminentemente rural, culturalmente tacanho, a França, moderna, culturalmente viva. No entanto, a modernidade acabava por ser sempre apresentada como uma devassidão moral, permitindo uma matriz crítica difusa.
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Natália Correia
Natália Correia viu seis obras suas censuradas pela PIDE, mas essa tentativa de apagamento teve pouco efeito na sua vida literária pós-ditadura em termos de recepção. Não só algumas dessas obras foram editadas após o 25 de Abril, como a autora atingiu mesmo tornar-se num dos nomes mais proeminentes da cultura portuguesa nas décadas seguintes. Correia teve novos livros, milhares de leitores, prémios e reedições.
A ineficácia da acção da PIDE dever-se-á à profundidade intelectual da obra da autora, que se vê a relação histórica com a realidade e um grande alcance no quadro do subtexto. Assim, as obras exigem do leitor o contacto com o mundo e uma capacidade analítica suficiente para alcançar a significância da obra.
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Fiama Hasse Pais Brandão
As obras de Fiama censuradas pela PIDE primam pelas relações dialógicas, já que a autora estabelecue paralelismos com alcance no passando, fazendo com que se confundissem vida e peça. As suas obras são políticas e comprometidas, tendo feito soar os alarmes da censura.
Os intentos ditatoriais, contudo, não apagaram a autora da história literária, já que, mesmo após o 25 de Abril, foi a palco e teve uma longa carreira poética.
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Maria Teresa Horta
Maria Teresa Horta é uma das mais proeminentes figuras da cultura portuguesa do século XX e do início do século XXI. Em Minha Senhora de Mim, fez das descrições sexuais um elemento central, interno, da formulação literária, significando a reclamação de um direito, rejeitando uma moral imposta pelo regime político. O discurso da obra incomodou o poder instituído, que teve necessidade de vilipendiá-la: perseguiu a autora, intimidou quem a publicara, tentou boicotar-lhe a carreira.
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As três Marias
Novas Cartas Portuguesas, escrito por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, tem um papel de destaque na história literária e na história portuguesa. Obra intertextual, dialoga com outras, conseguindo alcance no passado. Ao mesmo tempo, foi escrita a seis mãos, acção rara em literatura, desafiando as noções de autoria.
No conjunto de livros aqui tratados, teve um papel político ímpar, já que a sua censura levou a um movimento de solidariedade internacional, manifestações e à criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres.
Sendo a única obra claramente feminista da história literária portuguesa, chamou a atenção para a relação de subalternidade em que as mulheres viviam, denunciando-a como construção social e rejeitando a naturalização que o Estado Novo tentava fazer passar.
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Resumo e conclusões
Nem todas as obras aqui tratadas foram capazes de expressar o zeitgeist em que foram concebidas. Se nuns exemplos é claro que se procura a relação dialógica autora-obra-púbico, noutras há elementos que não parecem exigir uma resposta do leitor, que não parecem responsabilizá-lo no processo de comunicação ou mesmo na vida pública. Se numas a estruturação das obras foi norteada por um claro controlo crítico, noutras esse controlo não parece sequer ter existido.
Para ler um resumo deste dossier, e respectivas conclusões, pode clicar na imagem seguinte:
Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas