Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo (neste caso, o pensamento patriarcal). Ao mesmo tempo, o seu conteúdo é subvertido. Nas cantigas de amigo medievais, escritas por homens, a voz era feminina e versava quase sempre o sofrimento por amor, regra geral devido à ausência do “amigo”, descrevendo-se as mulheres num estado de absoluta dependência. Contudo, na obra de Maria Teresa Horta, a mulher é o centro da narrativa dos poemas, sendo ainda o centro do desejo sexual. Não raras vezes, o sujeito poético usa o modo imperativo, comanda a relação heterossexual, não só rejeita a submissão como submete.
A novidade não está apenas em dar-se voz à sexualidade das mulheres, mas no tom imperativo que é usado nos poemas, pondo-se a mulher a comandar a acção, dizendo ao homem o que deve fazer para agradar-lhe. Para além disso, é a mulher quem toma a iniciativa e chega a descrever como agradar ao parceiro. O sexo torna-se numa busca pelo prazer, esvazia-se do seu carácter procriador ou, ao reclamar o prazer para a mulher, de uma relação de poder do homem sobre a mulher.
Censura de Minha Senhora de Mim
Minha Senhora de Mim foi o nono livro de poesia que Maria Teresa Horta publicou. À época da sua publicação, a autora já contava com o olhar atento da PIDE. Aliás, na ficha desta polícia política, que se encontra na Torre do Tombo, já se encontra um documento em que se pede informações sobre a autora, que data do início de 1967:
RELATÓRIO
ASSUNTO: – Interessa obter a identidade completa de MARIA TERESA HORTA que consta ser escritora. Sugere-se a consulta à Conservatória da Propriedade Literária – Biblioteca Nacional de Lisboa. Número do Bilhete de Identidade se possível.
Trata-se de MARIA TERESA DE MASCARENHAS HORTA BARROS, casada, escritora, natural da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, nascida a 20 de Maio de 1937, filha de Jorge Augusto da Silva horta e de Carlota Maria de Mascarenhas Horta, residente na Avenida Marconi, n16-5º Lisboa.
A MARIA TERESA é titular do Bilhete de Identidade número 1364329, emitido pelo Arquivo de Identificação de Lisboa, em 11/10/61.
Lisboa, 31 de Janeiro de 1967
BRIGADA DA SECÇÃO CENTRAL
Anos mais tarde, quando Minha Senhora de Mim foi publicada, na colecção “Cadernos de Poesia”, das Publicações Dom Quixote, dirigidas por Snu Abecassis, a polícia política apreendeu-a, acusando-a de ofensa “da moral tradicional da nação”. Moreira Baptista, a quem já aqui nos referimos, esteve ao leme deste processo, mandando chamar Snu Abecassis e ameaçando-a com o encerramento da editora caso voltasse a publicar algum texto da autora. Para além disso, Maria Teresa Horta foi pessoalmente perseguida, tendo sido, devido ao livro, espancada por três homens na rua.
Depois de proibida, a obra contou com vários actos de apreensão, estando alguns dos autos respeitantes acessíveis no processo de Maria Teresa Horta, na Torre do Tombo. O auto do dia 14 de Junho de 1971 informa sobre a apreensão da obra numa livraria em Setúbal, tendo ainda uma nota à mão que diz “Devolveram 75 exemplares e os outros venderam-nos”:
AUTO DE APREENSÃO
Aos catorze dias do mês de Junho do ano de mil novecentos e setenta e um, na LIVRARIA ANTECIPAÇÃO, sita na Rua Augusto Cardoso, número oito, desta cidade de Setúbal, propriedade de Joaquim Hipólito Clemente, solteiro, gerente comercial, nascido a treze de Setembro de mil novecentos e quarenta e seis, em Socorro, Lisboa, filho de Cândido Clemente e de Maria Salete Clemente, residente na Travessa de Santa Maria, número cinco, segundo andar, nesta cidade, comigo, José Cláudio Conceição Foz, agente da Direcção-Geral de Segurança, que em cumprimento de ordem superior aqui os deslocou a fim de apreender a obra “MINHA SENHORA DE MIM”, de Maria Teresa Horta.
Foram encontrados somente dois exemplares da obra em referência, os quais apreendi e conduzo ao Posto desta Direcção-Geral em Setúbal.
E, para constar, se lavrou o presente auto que, depois de lido em voz alta, vai ser assinado pelo proprietário do estabelecimento de por mim, agente apreensor, que o dactilografei e revi.
O auto é acompanhado por uma nota que, para além da apreensão ocorrida na Livraria Antecipação, informa que os exemplares que estavam à venda na Livraria Nuno Álvares e na Galeria Coldex já tinham sido vendidos:
Excelentíssimo Senhor
Em referência ao rádio nº 129/71-CI(1), de 14 do corrente mês, junto envio a V. Exª um Auto de Apreensão, dois exemplares do livro “MINHA SENHORA MIM”, de Maria Teresa Horta, apreendidos na LIVRARIA ANTECIPAÇÃO tendo a mesma devolvido 75 e vendido os restantes.
Na Livraria Nuno Alvares e Galeria Coldex, já haviam sido vendidos.
A BEM DA NAÇÃO
Setúbal, Posto de Vigilância da D.G.S., 14 de Junho de 1971
Ao Excelentíssimo Senhor DIRECTOR-GERAL DE SEGURANÇA
LISBOA
O CHEFE DO POSTO,
Fernando José Waldeman do Canto e Silva
Chefe de Brigada
No dia seguinte, outra nota dá conta da mesma situação:
INFORMAÇÃO
Excelentíssimo Senhor
Encarregado superiormente da apreensão de 113 exemplares da obra intitulada “MINHA MULHER MINHA” da autoria de MARIA TERESA HORTA, na livraria “ANTECIPAÇÃO”, cumpre-me informar V. Exª. que somente foram apreendidos 2 exemplares, em virtude de 75 dos quais haverem sido devolvidos à editora e vendidos os restantes 36.
Setúbal, Posto de Vigilância da D.G.S., 15 de Junho de 1971-
O Agente de 2ª cl.
José Cláudio Conceição Foz
Como pode constatar-se, a PIDE vigiava a actividade literária de Maria Teresa Horta, tendo sido implacável na censura desta obra. O facto de a autora ter sido espancada por ter escrito a obra é paradigmático e reflecte o quão transgressora a obra se afigurava. A autora havia-se aventurado num tema proibido e havia assumido um papel proibido.
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