Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

30 de novembro 2019 - 10:48
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Ao longo de semanas, fomos publicando no Esquerda.net análises às obras literárias de autoras portuguesas censuradas pela PIDE, assim como as condições e os processos de recepção dessas obras. A proposta inicial foi cumprida: analisar os percursos de 21 obras escritas por 9 autoras. O número salta à vista, curiosamente, por ser tão parco, principalmente se comparado às centenas de autores censurados.

E outra coisa salta vista: a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Algumas destas autoras caíram no esquecimento, outras canonizaram-se. Algumas usaram os elementos que levariam à sua censura como elementos internos da própria estrutura narrativa, outras usaram-nos como adereços, sem nenhuma função crucial ou política.

É difícil delinear o papel que a censura literária desempenha na canonização literária ou na criação de um panorama artístico, já que não existem só os livros censurados, mas também os que foram modificados para passarem pelas mãos da censura e os que nem sequer foram escritos.

A censura servia para apagar da vida pública aquilo que fosse uma erva daninha para o Estado Novo, impedindo que os leitores fossem contaminados com ideias que corrompessem o que a política oficial impunha. Sendo a família um campo de batalha ideológico, também servia para impedir que as mulheres fossem encaradas como agentes sociais com acesso à produção simbólica. Sobre isto, há dois pontos a relevar: de facto, era também o próprio mecanismo censório, nas mãos dos agentes da PIDE, que o fazia, daí que se tenha dito que a obra Maria Archer não a “dignifica” na sua “qualidade de senhora”; o número de obras escritas por mulheres censurado pela PIDE, ou seja, que afrontaram o Estado Novo de forma inequívoca, era tão exageradamente reduzido que, tendo já em conta tudo o que foi dito sobre a domesticação das mulheres, só se pode concluir pela eficácia do mecanismo censório social que as afastava da escrita literária e mais ainda da crítica política.

Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?

Os nomes das mulheres que conheceram o crivo da PIDE são estes: Maria Archer, Carmen de Figueiredo, Maria da Glória, Nita Clímaco, Natália Correia, Fiama H. P. Brandão, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno. Nesta pequena amostra, encontra-se o cânone, encontra-se gente apagada pela história, encontra-se quem não poderia nunca pertencer-lhe, quem não poderia nunca sobreviver ao tempo, quem nunca passaria pela PIDE e quem não passou pela PIDE graças a uma ninharia, quem incluía na sua formulação literária propostas do mundo e quem o decalcava, quem usava a sublevação como um elemento literário interno, denunciando e exigindo, e quem a tratava sem qualquer conteúdo político. Encontram-se autoras conhecidas pelo grande público português, estudadas e conhecidas, e autoras que passaram ilesas pelos tempos, sem que as suas biografias tenham chegado até nós. Expusemos aqui um trabalho que nos permitiu estudá-las sem olharmos a essas hierarquias, recuperando quem foi apagado pela PIDE, quem foi apagado pelos mecanismos da história e dos processos de canonização. Recapitulemos, concluindo, uma a uma.

Maria Archer

 

A censura de Casa sem pão

 

No caso de Maria Archer, parece-nos que a acção da censura teve um peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo de viver mais de duas décadas fora de Portugal. Para além disso, enformou-lhe a criação, já que teve de alterar a sua obra de forma a que esta pudesse passar ilesa pela mão dos agentes censórios. Tem havido algumas tentativas de recuperação da sua obra – e, consequentemente, do seu lugar na história literária –, mas estas têm sido insuficientes para que seja conhecida pelo grande público.

Carmen de Figueiredo

A censura de Famintos

 

Carmen de Figueiredo foi censurada pela inclusão, na estrutura da narrativa, de descrições sexuais. Estes são elementos secundários da narrativa: possibilitam-na, mas não são um elemento interno, não clamam, não acicatam. Não havendo, assim, nada de particularmente subversivo na sua obra, não nos parece que esta autora pudesse alguma vez ter-se canonizado, já que não só não fez dos seus elementos internos elementos sociais como não foi pródiga em termos de criação linguística e/ou estética.

Assim, não tem um papel de relevo na história da literatura/estética e não desempenha nenhum papel em relação ao que é social e político do seu tempo de actividade.

Nita Clímaco

A censura de Pigalle

 

Nita Clímaco também se encontra ausente do cânone, contando apenas, ao longo de toda a sua carreira literária, com uma segunda edição (fora do país). O nome da autora figura apenas em (poucos) estudos sobre emigração, tema central da sua obra ficcional. Neste caso, ao contrário do anterior, é evidente que as obras trazem elementos históricos na sua constituição, que falam directamente com os seus leitores coevos, que a ficção marca o ponto da história. A autora faz contrastar Portugal, pobre, iminentemente rural, culturalmente tacanho, a França, moderna, culturalmente viva. No entanto, essa modernidade acaba por ser apresentada como uma devassidão moral.

A matiz crítica das obras de Clímaco é difusa. Por um lado, pode encontrar-se um certo pessimismo em relação à emigração, já que quem sai de Portugal fica psíquica e emocionalmente abalado ou encara péssimas condições materiais de vida. Por outro, é feita uma crítica à realidade social e cultural portuguesas, menorizadas em relação a França.

A verdade é que, com a primeira, as obras de Nita Clímaco poderiam ser favoráveis ao Estado Novo, já que poderiam abonar em prol das suas políticas anti-emigração. No entanto, nem o seu conteúdo político/social é particularmente relevante nem a autora contribui para a renovação da linguagem literária, razões pelas quais nos parece que, mesmo sem a acção da PIDE, a autora não teria, enquanto escritora, sobrevivido até aos dias de hoje.

Natália Correia

A censura de O Encoberto

 

A acção censória da PIDE contra Natália Correia teve pouco efeito na sua vida literária pós-ditadura. Se lhe censurou várias obras, impedindo a autora de ser lida, a verdade é que esta veio não só a reeditar algumas delas após o 25 de Abril mas também a tornar-se num dos nomes mais proeminentes da cultura portuguesa nas décadas seguintes.

Correia é lida e estudada, foi premiada e a sua obra foi reeditada várias vezes. Parece-nos que a ineficácia da acção da PIDE se deveu à profundidade intelectual da obra da autora. Para além disso, claro, cabe mencionar que esta viveu muito para lá da ditadura. As obras de Natália têm uma ligação histórica com a realidade, tendo ainda um grande alcance no quadro do seu subtexto. Exigem do leitor o contacto com o mundo e uma capacidade de análise atenta, respondendo ao que lhes é ofertado no texto. Sem isto, não será possível alcançar a significância do subtexto.

É uma obra que mescla arte e cidadania, questionando e confrontando, pondo em xeque dogmas religiosos, os mitos da portugalidade, as imposições do Estado Novo, as suas próprias figuras. Através da sátira, torna-se numa forma de fazer política, obrigando à responsabilização dos leitores no quadro da relação dialógica. Imbuída da vontade da autora de agir sobre o mundo, para além de ser rica em recursos estilísticos, a obra de Natália Correia canonizou-se, apesar das tentativas dos serviços censórios de a apagarem da vida pública e da história do Portugal.

Fiama Hasse Pais Brandão

A censura de O testamento

 

A obra de Fiama aqui estudada prima pelas relações dialógicas. A autora estabeleceu paralelismos com alcance no passado, fez com se confundissem vida e peça. Destas formas, mostrou casos em que o poder é imposto. Assim, vimos casos em que a religião exerce um poder brutal, que se baseia na imposição do medo como ferramenta de controlo. A obra teatral da autora é militância, uma produção política e ideológica. Por estes motivos, os alarmes dos censores literários soaram e Fiama viu obras suas serem proibidas.

Contudo, a autora não foi apagada da história. Após o término da ditadura, seria levada a palco e contou ainda com uma longa carreira poética. Mesmo antes do 25 de Abril, já havia garantido um espaço de grande importância na história literária portuguesa. Com Poesia 61, marcava um lugar na história da estética, reagindo ao neo-realismo e criando uma linguagem rigorosa, diferente da expressividade discursiva que marcara o neo-realismo.

Maria Teresa Horta

A censura de Minha Senhora de Mim

 

Maria Teresa Horta é uma das mais proeminentes figuras da cultura portuguesa do século XX e do início do século XXI. Em Minha Senhora de Mim, a autora fez exactamente o contrário do que fez Carmen de Figueiredo ao incorporar, nas suas narrativas, descrições sexuais: são um elemento central, interno, da formulação literária, significam a reclamação de um direito, rejeitam uma moral imposta pelo regime político. O discurso da obra incomodou o poder instituído, que teve necessidade de vilipendiá-la: perseguiu a autora, intimidou quem a publicara, tentou boicotar-lhe a carreira.

Apesar disso, a autora viria ainda a ser uma das escritoras de Novas Cartas Portuguesas, a que já voltaremos, e contaria ainda uma longa carreira literária pós-ditadura. Hoje, esta obra é estudada nas escolas, fazendo parte do Plano Nacional de Leitura. A autora continua com uma produção literária intensa, tendo sido agraciada com vários prémios literários. As tentativas de boicote da sua obra por parte da PIDE foram, assim, infrutíferas. A obra literária de Maria Teresa Horta, para além da sua riqueza em recursos estilísticos, inclui propostas de mundo, olha para o mundo e tenta alterá-lo, formula uma nova proposta social.

Três Marias

A censura de Novas Cartas Portuguesas

 

Novas Cartas Portuguesas, escrito por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, tem um papel de destaque na história literária e na história portuguesa. Em primeiro lugar, é uma obra intertextual, dialoga com outras, conseguindo alcance no passado. Ao mesmo tempo, foi escrita a seis mãos, acção rara em literatura, desafiando as noções de autoria. De resto, incluía na sua proposta de génese uma proposta de desafio ao que o regime político tentava impor.

Ainda que o livro, também devido à sua censura pela PIDE, não tenha sido muito lido, teve um papel político ímpar dentro daqueles que aqui tratámos, contando com solidariedade internacional e manifestações e levando à criação do primeiro grupo do Movimento de Libertação das Mulheres. Sendo a única obra claramente feminista da história literária portuguesa, chamou a atenção para a relação de subalternidade em que as mulheres viviam, denunciando-a como construção social e rejeitando a naturalização que o Estado Novo tentava fazer passar.

Claro, uma vez publicada, teve o destino adivinhável no que à censura diz respeito, embora o alcance da sua recepção fosse inimaginável. Afinal, nunca ocorrera uma onda de solidariedade tão forte pela proibição de uma obra literária em Portugal. Com uma recepção tão intensa e combativa, a importância de Novas Cartas Portuguesas supera, e muito, o seu valor literário, ainda que este não deva ser ignorado. Aqui, foi analisada enquanto ataque que constitui ao poder instituído e é principalmente como forma de luta e denúncia que é ainda hoje lida e estudada.

Conclusões

Posto isto, concluímos que nem todas as obras estudadas foram capazes de expressar o zeitgeist em que foram concebidas, nem todas tinham imbuída a proposta de um mundo diferente, nem todas fizeram daquilo que as fez ser censuradas elementos internos das estruturas narrativas. Se nuns exemplos é claro que se procura a relação dialógica autora-obra-púbico, noutras há elementos que não parecem exigir uma resposta do leitor, que não parecem responsabilizá-lo no processo de comunicação ou mesmo na vida pública. Se numas a estruturação das obras foi norteada por um claro controlo crítico, noutras esse controlo não parece sequer ter existido.

Assim, como nos parece que as autoras que caíram no esquecimento foram aquelas que não questionaram o mundo nem quiseram intervir sobre ele de forma inequívoca, que não desempenharam qualquer papel na estética linguística, não se adentraram nas entranhas da sociedade portuguesa ou nas construções psicológicas das personagens, concluímos que essa ausência do cânone se deveu mais aos vários processos de canonização de autores do que à acção dos serviços censórios.

Não queremos com isto dizer que o primeiro é independente do segundo, queremos apenas sugerir que, mesmo sem a censura imediata dessas obras, elas não teriam nem o deslumbramento estético nem a reflexão sociológica nem a capacidade interventiva necessárias para poderem sobreviver dentro da história literária ou da história do país.

As autoras aqui tratadas que caíram no esquecimento não tiveram qualquer impacto nos movimentos literários do século XX nem na sociedade portuguesa. As que, mesmo apesar da ditadura, conseguiram o seu lugar fizeram-no graças à capacidade interventiva das suas obras e ao seu olhar atento ao zeitgeist, assim como à sua vontade de alterá-lo. Exigiam do leitor; iniciavam relações dialógicas e não discursos unilaterais.

As linhas de censura da PIDE eram quase sempre previsíveis: foram censuradas as obras de cariz erótico e aquelas que, de alguma forma, incentivavam à sublevação. Se uma mexia com a moral católica do Estado Novo, altamente repressiva, a outra ameaçavam a prossecução imperturbável do regime. No primeiro caso, o ser-se mulher era particularmente problemático, e os agentes da PIDE consideravam sempre que o cariz erótico, para além de imoral ou pecaminoso, era indigno de mulheres. Tal está de acordo com essa moral referida, que impelia a dessexualização das mulheres.

As escritoras que aqui tratámos, de um modo geral, têm muito pouco em comum entre si. Ou melhor, podemos reuni-las em dois grupos. Se é certo que podem partir de um lugar social com algumas semelhanças (por exemplo, fazerem parte de uma maioria social tratada como minoria, estarem às mãos de um regime que tenta domesticá-las e diminuí-las intelectualmente e diferirem de grande parte das outras mulheres do país, já que tinham acesso à escolarização e, por isso, de alguma forma, podiam já estar enquadradas em alguma elite intelectual do país), também é certo que tratámos aqui obras muitíssimo diferentes.

Assim, se Maria Archer, Carmen de Figueiredo, Maria da Glória e Nita Clímaco não fizeram das suas obras uma busca constante pelo diálogo com o leitor, se dele não exigiram respostas e acção, se não tentaram acicatá-lo e provocá-lo, se não fizeram das suas criações literárias inequívocas acções políticas, o mesmo não se poderá dizer de Natália Correia, Fiama H. P. Brandão, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, que olharam para o seu tempo e quiseram alterá-lo, fazendo da criação artística uma ferramenta política e social.

As conclusões que fomos publicando aqui ao longo destas semanas são parte da tese de doutoramento “Escritoras portuguesas – as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública” (Ana Bárbara Pedrosa, 2017) , publicada na Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. A investigação foi feita com uma bolsa Fellow Mundus.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.