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Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia foi a escritora portuguesa com mais obras censuradas pela PIDE: Comunicação, 1959; O Homúnculo, 1965; A Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1965; O vinho e a lira, 1966; A Pécora, 1967; O Encoberto, 1969.

A censura desempenhou um papel de relevo na vida da autora, nunca lhe tendo, contudo, enformado a acção ou até a produção literária (no sentido em que a autora nunca tentou amenizar os seus escritos de forma a ludibriar os serviços censórios). Apesar de ser proximamente vigiada, a autora continuou, de ambas as formas, a desafiar os valores que o regime defendia e até o próprio poder.

Numa nota informativa da PIDE, datada de 14 de Dezembro de 1962 (e que pertence ao seu processo nesta polícia política, armazenado na Torre do Tombo), podemos dar conta deste seguimento da PIDE e do seu conhecimento da actividade literária e política insubmissas:

NATÁLIA DE OLIVEIRA CORREIA – escritora

A escritora acima referida, desde há muito que se encontra referenciada como elemento adversário das Instituições.

Das diversas actividades que lhe têm sido assinaladas, há que salientar o facto do seu nome figurar na maioria das exposições que têm sido dirigidas ao Governo por indivíduos que se dizem intelectuais, mas que, na sua quase totalidade, são conhecidos pelas suas tendências comunistas, para pedirem a abolição da Censura, a extinção da P.I.D.E., etc...

Durante as campanhas eleitorais, tem apoiado sempre os candidatos da “oposição”, tendo desenvolvido a sua maior actividade quando da candidatura do dr. ARLINDO VICENTE à Presidência da República, evidenciando-se como “membro” da chamada “Comissão Cívica Eleitoral de Lisboa”, que foi criada sob a inspiração e orientação comunistas.”

Comunicação (1959)

Em 1959, Natália Correia publicou Comunicação, a obra que iniciaria a sua longa lista de obras censuradas. Censurada pela PIDE em Outubro do mesmo ano, viria a ser apreendida em Novembro.

O texto é uma peça teatral e um poema ao mesmo tempo. Talvez possamos chamar-lhe peça teatral em verso, talvez possamos chamar-lhe tragédia. A autora chama-lhe, numa carta endereçada ao director da PIDE, datada de Outubro de 1959, poema dramático, mas talvez a definição textual pouco importe. Assim como assim, ainda que o subtítulo Auto da Feiticeira Cotovia o remeta para o teatro escrito, o facto é que a autora veio a incluí-lo várias vezes na sua obra poética, como aconteceu nos casos de Poemas a Rebate (1975) e O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1992). Para mais, na bibliografia que aparece no início de vários dos livros da autora, Comunicação aparece listada enquanto poesia.

De qualquer forma, este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. O hibridismo das formas ser-lhe-á um tema caro ao longo da sua produção teatral, vindo a atingir o seu expoente máximo na obra O Encoberto (1969). Em Comunicação, a Feiticeira Cotovia, personagem à volta da qual a trama se erige, é uma feiticeira que é poeta, ficando por entender se a sua poesia é mágica ou se a sua magia é poética. De uma ou de outra forma, a poesia é usada enquanto conceito mágico, numa formulação muito típica do surrealismo, de que Natália quis desvincular-se tantas vezes. Sendo assim usada, a poesia era concebida enquanto forma de reivindicação, de alteração, de formação de alguma coisa. Desta forma, a poética colocava no centro do fenómeno artístico a relação do fazer – portanto, da poiesis –, revelando assim o seu potencial de força material.

No texto, Lusitânia obviamente metaforiza Portugal, aqui reduzido a uma cidade. Esta redução merecerá alguma atenção: numa altura em que Portugal acalentava a ideia de construir o seu império, apesar de o país ser iminentemente rural e de não acompanhar os progressos tecnológicos de outros Estados soberanos da Europa, a autora ridiculariza o projecto megalómano, reduzindo o país a uma cidade, não se referindo ao tamanho geográfico, mas àquela que seria uma pequenez mental e cultural. A reconfiguração do espaço passa, assim, por uma formulação política, manifestando-se uma subversão política contra a Lusitânia – e, portanto, contra Portugal. Assim, a autora expressa não só o zeitgeist, mas ainda a sua perspectiva sobre o zeitgeist, não se abstendo, assim, de se imiscuir no mundo através da literatura. Pelo contrário, em Natália Correia, a literatura é uma forma de intervenção política.

Na obra, os inquisidores que condenam a Feiticeira Cotovia metaforizam a repressão política do Estado Novo, denunciando-se a ligação da Igreja ao Estado. Esta ligação, aliás, era um tema caro a Natália, que o exploraria ainda em A Pécora (1967).

Num texto em que não passam ao lado as referências surrealistas, convém ainda referir a hibridez de estéticas literárias: ainda que a autora tente distanciar-se do surrealismo, várias vezes criticando-o ferozmente, é frequentemente conotada com o movimento.

Censura de Comunicação

Publicada em 1959, a obra contou, logo após a sua publicação, com uma crítica elogiosa no “Diário Ilustrado”, no dia 11 de Julho de 1959, em que não só se considerava a autora “um dos casos mais sérios da nossa poesia actual” como se elogiava o seu pendor satírico, acabando por considerar-se a obra percuciente.

A polícia política, no entanto, e como seria expectável, não esteve muito interessada nem no “sentido de toda a poesia autêntica” nem na percuciência ou na força que a obra pudesse ter. Assim, no dia 25 de Agosto de 1958, a linguagem foi considerada pornográfica e votou-se pela reprovação da peça, como pode ler-se num comunicado da PIDE encontrado nos arquivos da Torre do Tombo:

Decisão que se propõe:

O estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras, levam-me a votar reprovação da peça, pois atendendo à sua indispensável sequência nem sequer se torna possível sujeitá-la a quaisquer cortes de saneamento.

Decisão da Comissão, em sessão de 25 de Agosto de 1958

Distribuída para leitura dos órgãos da PIDE no dia 30 de Setembro, a obra viria a ser lida e censurada no dia 2 de Outubro de 1959. O parecer dizia o seguinte:

A Autora quer referir-se, julgo, à condenação da morte da Poesia, no País. O introito, a forma derrotista como apresenta o Poema (felizmente não na íntegra!) a sensualidade, a libertinagem e a falta de senso moral bem verificados, levam sem sombra de dúvida, a não autorizar a sua circulação

O LEITOR

Rodrigo de Freitas

Dias mais tarde, a 6 de Outubro de 1959, foi endereçada uma carta ao director da PIDE a informar da decisão pela proibição, solicitando-lhe ainda que fizesse os esforços necessários no sentido de apreender a edição:

Tenho a honra de comunicar a V.Exª. de que por estes Serviços, foi proibido de circular no País, o livro intitulado “COMUNICAÇÃO”, de autoria de Natália Correia.

Cumpre-me ainda solicitar de V.Exª. se digne providenciar para que o livro acima citado seja apreendido caso se encontre à venda.

No dia 26 de Outubro do mesmo ano, Natália Correia escreveu uma carta para o director da PIDE, dizendo não haver recebido qualquer notificação que a informasse do que havia motivado a apreensão da sua obra. Querendo interpor recurso de forma a poder reverter o processo de apreensão, requereu essa informação, como pode verificar-se de seguida:

No corrente mês de Outubro foram apreendidos por essa Polícia os exemplares do meu livro “COMUNICAÇÃO” que se encontravam no m/ distribuidor “Editorial Inquérito, Ltda.” e nas livrarias de Lisboa e Porto.

Nem na minha qualidade de autora nem na de editora daquele poema dramático recebi qualquer comunicação da P.I.D.E. informando-me das razões explicativas da apreensão, com a qual se ofendeu pela forma mais flagrante possível a liberdade criadora do artista.

Ora, desejando interpôr recurso para o Senhor Ministro do Interior da actuação dessa Polícia e a fim de poder contrariar as razões pretensamente justificativas da apreensão, requeiro a V. Exª. me sejam as mesmas comunicadas por escrito, quer para a minha casa quer para o advogado que constituirei meu mandatário, Snr. Dr. Manuel Sertório, com escritório na Rua do Crucifixo, Nº 31-s/loja.

A bem da nação

Natália Correia

Não se consegue, através dos arquivos da Torre do Tombo, saber se a carta de Natália Correia teve resposta. Sabe-se, no entanto, que não surtiu qualquer efeito. No dia 29 de Abril do mesmo ano, foi publicado um auto de busca e apreensão que informava acerca da apreensão de mais três exemplares da obra.

AUTO DE BUSCA E APREENSÃO

Aos vinte e nove dias do mês de Outubro do ano de mil novecentos e cinquenta e nove, neste estabelecimento, ADRIANO G. DE FIGUEIREDO (HERDEIROS), sito na Rua de Lisboa, número cento e sessenta e cinco,, traço A, desta cidade, de Angra do Heroísmo, estando presente Gil Pinto Moraais, agente de segunda classe da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, e eu, Fernando da Costa Pereira, agente da mesma Polícia, acompanhados do gerente Senhor José Teixeira de Borba, no cumprimento de ordem superior, realizei uma busca a fim de apreender livros ou revistas proibidas de circular, tendo em resultado da mesma busca apreendido tres exemplares do folheto “COMUNICAÇÃO”

No dia 6 de Novembro de 1959, voltou a haver nova apreensão, dando entrada nos Serviços de Segurança, Secção Central, mais três exemplares. A obra acabaria por não vir a conhecer nenhuma outra edição (para além das colectâneas em que figura, como O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1999), preparada ainda em vida da autora e por ela revista em grande parte, embora publicada postumamente e contando com a revisão final de Dórdio Guimarães), estando o texto original microfilmado na Biblioteca Nacional de Portugal.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
(...)

Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.