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Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.
Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Composto por quatro novelas – Ida e volta duma caixa de cigarros (1937), Cai no mar a gota de água (1936), Entre duas viagens (1938) e Uma mulher como as outras (1938) –, este volume foi publicado em Portugal, pela Editorial O Século, em 1938. Como a censura da obra se deveu às duas primeiras novelas, trataremos aqui apenas essa.

- Ida e volta duma caixa de cigarros (1937)

Em Ida e volta duma caixa de cigarros, a acção gira em torno de Marietta, que tem uma relação com Manuel, e posteriormente uma com Vitor. No caso do segundo, Marietta deseja aproveitar a oportunidade para fazê-lo sofrer: “Gostaria de o torturar. Era como se, apossando-se dum papel, incarnasse em si a Mulher, simbolizasse a Mulher, e desforrasse nêle, no Homem, no inimigo de sempre, momentaneamente encadeado, a milenária sujeição da fêmea e a os gemidos milenários da fêmea ecoando em todo o passado” (p. 44). Aqui, percebe-se a intenção da autora em fazer com que confluam os processos históricos na construção das personagens, tornando-se claro que quer torná-los parte da estrutura interna da narrativa.

Ao lado da possibilidade de uma vingança individual, de orgulho ferido, existe a possibilidade de uma vingança histórica, individualizada num e noutro, estando um e outro a simbolizar os papéis de uma relação opressiva, secular. E por isso Marietta quer fazer-se amar sem esperança, quer enciumar sem razão, excitar sem desejo. Sente prazer na burla, na consciência de que os homens sofrerão se se souberem enganados, trava aqui a sua desforra individual.

- Cai no mar a gota de água (1936)

Nesta novela, existe uma relação fora de um casamento que funciona como mote para um cenário sobre mal e culpa. É um caso em que a desonra cai sobre a mãe solteira e em que é imposto um casamento.

O fatalismo inerente à narrativa parece existir de forma excessivamente dramática, talvez até estereotipada: a indiferença do homem para com a mulher parece estar somente a servir um propósito prévio de evidenciar o lugar de vítima da segunda, o que nos pode levar a crer que Maria Archer não disfarçou que queria conduzir a narrativa pela sua mão de autora e não de narradora.

Por um certo simplismo na criação das personagens, podemos crer que Maria Archer queria ainda conduzir as conclusões dos leitores: é que a mulher é indisfarçavelmente a vítima, tanto do colectivo como do individual. A autora não deixa margem para grandes interpretações ou para mistério: a mulher aparece como vítima, submissa, incapaz de regenerar-se.

 

Recepção/censura

Os arquivos da Torre do Tombo incluem apenas os relatórios sobre livros feitos a partir de 1942, razão pela qual não há informação directa sobre a primeira obra a que aqui nos referimos. Contudo, Casa sem pão, de Maria Archer, foi publicado em 1947, e foi alvo de um processo de censura longo e meticuloso. Nele, podemos encontrar um documento que faz referência a este Ida e volta duma caixa de cigarros, que nos indica o parecer da PIDE sobre a obra:

 

INFORMAÇÃO

 

Do respectivo processo consta:

Que a autora publicou, em novembro de 1938, o seu livro “Ida e volta de uma caixa de cigarros”, sendo muito desfavorável o acolhimento que lhe dispensaram a “Voz” e “Novidades”, chegando aquêle jornal a qualifica-lo de “livro pornográfico”.

A Censura intervém, requisita um exemplar e verificando que “nas duas primeiras novelas de caracter acentuadamente erótico, a autora compraz-se na volupia do promenor sensual, que parece ser o único objectivo” proíbe o livro e pede á Policia a sua apreensão.

A autora reclama, em Fevereiro de 1939, junto de Sua Excelencia o Ministro do Interior da decisão do Serviço de Censura, filiando ataque das Novidades no facto do prémio da Literatura infantil, do S.P.N. lhe ter sido atribuido e não a uma empregada do “Papagaio”, que é pertença das Novidades e que igualmente concorrera aquêle prémio, e não tem pejo de afirmar ainda nessa reclamação que à Voz e Novidades não deve ter sido dificil influir na Direcção de Serviços de Censura porque, pelo menos, um oficial desse serviço, já fez parte da Redacção da “Voz” ou foi revisor das “Novidades”.

Por êstes torpes e ignobeis insinuações se poderá aquilatar o caracter desta mulher.

Sua Excelencia o Ministro do Interior confirmou a resolução do S. de Censura.

Decorridos mais de cinco anos, renovou a autora a sua reclamação, pois em 1939 a Censura apreendeu-lhe o livro, “de que não atingiu o alcance moral”.

O despacho dos S. de Censura traduziu apenas “um critério que se julga de conveniencia pública fundada principalmente na intenção de preservar leitores de formação incorrupta ou imperfeita, de leituras que seriam perniciosas”.

Indidam-se algumas passagens, inicialmente assinaladas, e que, me parece, justificaram a decisão tomada:

Pag. 18 – 22 – 26 – 99 – 110 – 111 (?) - 123

 

Este relatório aponta para o seria já expectável: o carácter erótico das novelas seria o mote para que fossem proibidas. Contudo, a análise da PIDE vai além disso, e considera-o o único ponto dos textos. Tal poderá dever-se a um fraco alcance de percepção por parte do censor literário, incapaz de analisar a fusão orgânica em que se torna uma construção ficcional, ou simplesmente a vontade premeditada de, pela existência do supracitado erotismo, diminuir, menosprezar, difamar a autora da obra. Não excluindo o primeiro, deverá ter-se em conta que o mesmo relatório inclui, como se vê, uma consideração sobre o carácter da autora e que a apreensão do livro se deveu a ter-se considerado que este não havia atingido “o alcance moral”.

Para saber mais sobre as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE, clique aqui.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
(...)

Neste dossier:

As obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE

Nas últimas semanas, estivemos a olhar para a história da censura literária em Portugal, focando-nos nas obras das autoras que a PIDE censurou. Neste dossier, podemos ver análises de todas essas obras - um total de 21, escritas por 9 autoras. Dossier organizado por Ana Bárbara Pedrosa.

Escritoras portuguesas e Estado Novo: 9 autoras e 21 obras censuradas

No decorrer do Estado Novo, foram censuradas 21 obras de 9 autoras portuguesas. Salta à vista o número reduzido e a variedade de percursos destas obras, que têm ainda valores literários muito diferentes. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Três Marias: a censura de “Novas Cartas Portuguesas”

"Algumas das passagens são francamente chocantes por imorais (...) Sou do parecer que se proíba a circulação no País do livro em referencia, enviando-se o mesmo à Polícia Judiciária para efeitos de instrução do processo-crime." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “Minha Senhora de Mim” (1971)

"Minha Senhora de Mim (1971) compõe-se de 59 poemas. Neles, a autora usa a forma poética das cantigas de amigo medievais, usando a literatura canónica – e, portanto, a tradição literária – para desafiar um status quo." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria Teresa Horta: a censura de “O delator”

"É uma peça nitidamente marxista, sem ponta por onde se lhe pegue: se fizesse cortes seria da primeira à última linha. Por isso reprovo.", pode ler-se num parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de "Quem move as árvores" (1970)

"As relações dialógicas são constantes na obra de Fiama: se em O Testamento vimos que vida e peça se confundem, dialogando, em Quem move as árvores há um paralelismo temporal com alcance no passado, entre a época da monarquia e o Estado Novo. Em nenhum dos casos o povo escolhe, o poder é imposto." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de três peças num volume

"Auto da Família, consiste numa versão ou visão desprimorosa e desrespeitosa do Natal de Cristo, apresentando Maria e José como dois criminosos que, depois de terem morto, para os comerem, a vaca e a mula do presépio, abandonam o filho à porta do lavrador, proprietário da estrebaria onde os deixara alojar." Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Museu”

O tom absurdista da peça dificulta a sua análise, na medida em que, para além de não haver grandes relações dialógicas até nos próprios diálogos, se torna difícil descortinar as intenções da autora. No entanto, são mostrados dois grupos numa relação conflitual, em que um está submisso ao outro, recebendo acriticamente as suas instruções, viabilizando acontecimentos que servem os interesses do segundo. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fiama Hasse Pais Brandão: a censura de “O Testamento”

"A peça de Pais Brandão sugere que não pode haver espectadores na vida, que toda a gente tem de intervir em tudo o que à vida pública diz respeito, e é por isso que peça e vida se confundem, mostrando a autora que em tudo há relações dialógicas". Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O Encoberto”

"Trata-se do desenvolvimento em estilo de 'paródia' de assunto histórico, com não poucas pinceladas pornográficas, à maneira de 'Natália Correia', com alusões ao povo português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara intenção de ridicularizar", pode ler-se no relatório da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A Pécora”

Nesta peça, Natália Correia denunciou os poderes da Igreja e a relação estabelecida entre esta e o Estado, assim como o comércio religioso. Ao mesmo tempo, o povo tem consciência do seu poder colectivo. O Estado Novo não gostou. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “O vinho e a lira”

"Como a função destes Serviços não é de índole literária não cabe aqui a apreciação do valor literário desta obra que me parece nulo. Todavia há que assinalar as suas intenções e expressões que considero muito más.", pode ler-se no parecer da PIDE. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de "O Homúnculo"

O Homúnculo contaria com a rápida censura, sendo de imediato apreendida, e, pasme-se, com a admiração de Salazar. No cenário, a autora denuncia ainda os pactos implícitos e explícitos entre os vários poderes que estruturavam a ditadura salazarista. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “O adolescente”

As orelhas da capa do livro faziam propaganda a dois livros proibidos. Assim, a PIDE proibiu também a circulação deste romance. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Natália Correia: a censura de “A comunicação”

Este é um texto em que a autora apresenta uma ambiguidade entre poesia e teatro. A PIDE considerou que “o estilo irreverente e por vezes pornográfico da linguagem em frequentes passagens de algumas das quadras” obrigava à “reprovação da peça”, já que a sua “Indispensável sequência” impossibilitava “quaisquer cortes de saneamento”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Pigalle”

Como em "Falsos Preconceitos", o romance parece inicialmente querer contrastar uma moral retrógrada portuguesa com uma França livre e moderna. Acaba por mostrar uma França imoral, perversa, desta vez palco de negócios de tráfico e redes de prostituição. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Nita Clímaco: a proibição de “Falsos preconceitos”

A PIDE considerou que “dada a imoralidade que o livro revela”, “não é de molde a ser autorizada a sua circulação no País”, e isto apesar de a obra ser de tal forma reaccionária que, afinal, se colocaria ao serviço do que o regime apregoava. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Maria da Glória: a proibição de “A Magrizela”

Nesta obra, não apenas há muitas situações sexuais como há muitas variantes que hão-de ter sido ainda mais problemáticas para os censores: sexualidade infantil, necrofilia (praticada por crianças), atracção sexual de uma criança pelo pai adoptivo, relações eróticas homossexuais, relações eróticas grupais, várias relações extra-conjugais. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Vinte anos de manicómio!”

O romance não foi censurado assim que foi publicado. É que, "como era feito por uma escritora”, os censores da PIDE nunca supuseram “que esta tivesse escrito com tanta realidade”.  O livro tem “um realismo tão cru e descrições de tal basévia e lubricidade que custa a crer terem sido escritas por uma mulher”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Carmen de Figueiredo: a proibição de “Famintos”

A PIDE censurou a obra “Famintos”, de Carmen de Figueiredo, considerando que esta se “refere a uma vida familiar romanceada, com descrição de acidentes trágicos, revelando caracteres mórbidos, aberrações sexuais e outras taras”. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: ephemerajpp.com

Maria Archer: a proibição de "Casa sem pão"

"Casa sem pão" (1957) foi o segundo livro de Maria Archer proibido pela PIDE e deu azo não apenas ao processo mais longo sobre qualquer uma das suas obras, mas também ao processo mais longo que tratamos neste dossier. Por Ana Bárbara Pedrosa.

Fotografia: cvc.instituto-camoes.pt

Maria Archer: a proibição de "Ida e volta duma caixa de cigarros"

A PIDE censurou a obra "Ida e volta duma caixa de cigarros", de Maria Archer, considerando que este “não atingiu o alcance moral” e que a autora “compraz-se na volúpia do pormenor sensual”. Por Ana Bárbara Pedrosa.