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Que escritoras portuguesas censurou o Estado Novo?

Ao longo de vinte semanas, o Esquerda.net publicará análises das censuras feitas às obras das autoras portuguesas no decorrer do Estado Novo. Aqui, pesarão os motivos que levaram à proibição da circulação das obras e ainda a recepção, ou falta dela, que tiveram. Num caso, a proibição por parte da PIDE motivou um protesto internacional. Houve editoras fechadas, penas, ameaças. Houve obras que ficaram perdidas para sempre, outras que voltaram a ver as prateleiras depois do término da ditadura, outras que se canonizaram.
Tentaremos aqui entender se a censura foi determinante no apagamento de obras literárias, se a única recepção que as obras tiveram foi a leitura da PIDE ou se, pelo contrário, estas conseguiram sobreviver para além das proibições, ultrapassar os mecanismos repressivos, ter público (durante ou após a ditadura), influir na sociedade portuguesa e/ou na estética literária. Ao mesmo tempo, pretende-se reinscrever estas obras, que passaram por uma tentativa de ocultação/apagamento por parte do regime, na história, recuperando as suas autoras enquanto sujeitos históricos.
O objectivo deste trabalho é, assim, trazer à luz o que o Estado Novo tentou apagar. Através dos serviços censórios, o regime tentava limitar, anular a recepção das obras: censurando-as, vedava-as, apagava-as da vida pública.
Neste sentido, proceder-se-á aqui ao resgate da memória de obras literárias, quase todas elas caídas no esquecimento, resgatando ainda autoras que, mais do que da história da literatura, fazem parte da história de Portugal. Assim, poder-se-á saber quais das obras se edificaram no património literário português, e porquê, e, ao mesmo tempo, por que razão caíram algumas no esquecimento. Para isso, será analisado o papel que a ditadura desempenhou no silenciamento de artistas/activistas e na canonização literária.
Para se chegar ao total de obras – 21, escritas por 9 autoras –, foram usados os serviços de arquivo da Torre do Tombo, localizada em Lisboa, onde se encontra o arquivo da PIDE/DGS. Através deste, pode aceder-se não apenas à lista das obras censuradas, mas também aos relatórios escritos pelos censores literários e às fichas que as autoras tinham na polícia política. O próprio arquivo desmascara o que havia para desmascarar. Os censores não tinham qualquer pudor nos seus intentos, cortavam as ervas daninhas, e por vezes não entendiam sequer o texto. Não eram literatos, não eram leitores, apenas testas de ferro de um regime.
Mas mulheres escritoras porquê?
O interesse desta lista reside na condição de partida transversal no decorrer do Estado Novo. Confinadas ao espaço doméstico pelo regime, as mulheres não eram vistas como agentes históricos ou sociais, estando dificultado o acesso que teriam à produção simbólica. Recuperar para o presente obras literárias que o Estado Novo tentou apagar da memória colectiva, proibindo-as e não raras vezes perseguindo as suas autoras, partindo da ideia de que o acto de escrita era já um acto performativo de desconstrução de uma ordem social politicamente imposta, passa por trocar as voltas a quem quis instrumentalizar a literatura.
As escritoras que aqui serão tratadas não são um grupo homogéneo ou estático. Nas próximas semanas, escreveremos sobre: A Campanha (Fiama H. P. Brandão), Casa Sem Pão, Ida e volta duma caixa de cigarros (Maria Archer), Antologia de Poesia Portuguesa Erótica, Comunicação, O Encoberto, O Vinho e a Lira, O Homúnculo, A Pécora (Natália Correia), O Testamento, O Museu, A Campanha, O Golpe de Estado, Diálogos dos Pastores e Auto da Família e Quem move as árvores (Fiama H. P. Brandão), Falsos Preconceitos, Pigalle, O adolescente (Nita Clímaco), Famintos, Vinte Anos de Manicómio! (Carmen Figueiredo), A Magrizela (Maria da Glória), Minha Senhora de Mim (Maria Teresa Horta), Novas Cartas Portuguesas (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa).
A escrita literária por parte das mulheres, num contexto político de menorização política e social das mesmas, significava a reivindicação do acesso à produção simbólica e a um aparelho conceptual criado por homens. Ao mesmo tempo, significava a ressignificação de si mesmas enquanto sujeitos históricos ou mesmo literários: ao invés de serem apenas objectos literários, passavam a ser agentes literárias, conquistando a palavra e libertando-se do espaço doméstico e das imposições do Estado Novo. Ao dar-se voz à experiência das mulheres, deixada em branco pela cultura dominante, permitia-se ainda um maior alcance à criação literária.
A História não é um registo neutro do passado. Cabe-nos, por isso, trazer para a discussão e para a crítica literária aquilo que dela se quis apagar: as mulheres enquanto agentes sociais com acesso à produção simbólica e as próprias obras que o regime considerou atentatórias do seu desejo de perpetuar-se.
Será difícil destrinçar exactamente qual era o papel que a censura literária desempenhava na canonização literária. O seu objectivo era calar a diversidade e havia circulação livre de literatura que não fosse julgada pelos censores literários como atentória do regime, ou da sua moral. Veremos que a PIDE censurou obras muito diversas, cujas autoras tiveram percursos e intenções muito diferentes, assim como valores literários. A selecção deste corpus permite não olhar a hierarquias ou ao cânone e dar a todas as autoras, caídas no esquecimento ou não, estudadas ou não, um tratamento por igual.
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