Moçambique, final dos anos cinquenta

Era estranha esta invisibilidade dos indígenas, a sua quase não humanidade. Uma imensa maioria, 98 % da população, e eram como que inexistentes, surgiam silenciosamente quando necessários e desapareciam quando desnecessários. Por Helena Cabeçadas.

13 de outubro 2019 - 17:46
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Lourenço Marques, atual Maputo, nos anos 50: Uma cidade colonial. Foto publicada em https://delagoabayworld.wordpress.com
Lourenço Marques, atual Maputo, nos anos 50: Uma cidade colonial. Foto publicada em https://delagoabayworld.wordpress.com

Uma África Imaginada

Moçambique fez sempre parte de mim, embora na realidade só lá tenha vivido durante dois anos, no final da minha infância. No entanto, desde que nasci ouvi falar desse país distante, num continente longínquo, para onde o meu pai, engenheiro da Missão Geográfica de Moçambique, partia todos os anos, em Maio, regressando seis meses depois, em Novembro, terminada a campanha de trabalho, sempre com grande regularidade. Assim vivi a minha infância e a minha adolescência rodeada de mapas, a ouvir falar de África, a ver filmes e fotografias de animais selvagens, de rios imensos, de misteriosos rituais indígenas, pacíficas aldeias de palhotas, recebendo cartas em envelopes com selos de uma fauna e flora exóticas, nas quais eram relatados acontecimentos passados nesses locais estranhos e que se me tornaram familiares, povoando os meus sonhos infantis. Na minha casa, no pacato Bairro da Madre de Deus, em Lisboa, havia dentes de elefante, peles de zebra e de gazela a fazerem de tapetes, ainda com os furos dos tiros mortíferos, sapatos e carteiras de crocodilo (todos caçados pelo meu pai), máscaras inquietantes, colares e pulseiras de missangas e de sementes coloridas, ovos e penas de avestruz, pássaros empalhados de cores intensas. Na nossa garagem havia sacos de serapilheira cheios de castanhas de caju e de açúcar, que eu comia às escondidas até ficar enjoada. Nada disto era comum em Lisboa, naqueles longínquos anos cinquenta. E os nossos primos e vizinhos arregalavam os olhos perante tais exotismos. Eu e as minhas irmãs achávamos normal movermo-nos no meio destes objectos, faziam parte de nós desde sempre.

Importa perceber que nessa época, anos 40/50 do séc. XX, ainda não havia uma consciência ecológica, nem tão pouco a percepção de que era necessário proteger a vida selvagem, ou as espécies em extinção. O Clube de Roma ainda não tinha surgido, só seria constituído muitos anos mais tarde, em 1968, chamando a atenção para estas questões. Não havia, pois, nada a reprovar, pelo contrário, na exibição destes artefactos/despojos. 

A Missão Geográfica de Moçambique (M.G.M.) tinha por objectivo definir e actualizar as fronteiras da colónia nos seus mais recônditos limites, estudar a sua geografia da forma mais detalhada e, na sequência destes estudos, elaborar mapas tanto quanto possível rigorosos das suas regiões. É bom recordar que, naquela época (e estou a falar dos anos 40/50/60/70 do séc. XX), não havia GPSi, nem computadores, nem satélites, tudo tinha que ser feito em trabalho de campo, por observação directa, o que exigia elaborada preparação e meses de estadia no terreno, tarefa que, pela sua vastidão, exigia dos geógrafos uma total dedicação ao trabalho, que era árduo e extremamente exigente em termos físicos e psicológicos. Ficavam afastados da família, dos amigos, da civilização – houve locais em que o meu pai foi o primeiro branco a aparecer às populações nativas.

E os engenheiros da M.G.M. nem sequer ficavam na companhia uns dos outros. A partir de Lourenço Marquesii cada um deles seguia em expedição exploratória e científica para um local diferente, afastados muitas vezes centenas de quilómetros uns dos outros. Quando muito seguia com cada um deles um auxiliar de geodesia. Juntavam-se-lhes umas centenas de indígenas (cerca de uma centena por cada geógrafo) que eram contratados no início da campanha, ainda em Lourenço Marques. Muitos deles vinham de aldeias diferentes, por vezes longínquas, e eram já velhos conhecidos dos engenheiros. Sabiam que a Missão contratava trabalhadores no final de Maio, numa data precisa e lá vinham eles, ano após ano, deixando as famílias e as aldeias durante vários meses e assim ganhavam algum dinheiro, de uma forma que não lhes desagradava. Guiavam os camiões e os jipes, ajudavam no transporte dos materiais necessários, dos instrumentos científicos, das armas para a caça e dos víveres indispensáveis à manutenção da expedição ao longo dos seis meses que durava a campanha.

Cada expedição era uma epopeia: faziam milhares e milhares de quilómetros através de selvas inexploradas, atravessavam rios tumultuosos, subiam montanhas, desciam vales profundos, contactavam populações quase totalmente ignoradas, de etnias variadas, falando línguas estranhas, desconhecidas dos próprios africanos que os acompanhavam. O recurso a um intérprete era quase sempre necessário mas não era fácil de encontrar. Pelo que me disse o meu pai, sempre foram bem recebidos pelas populações locais, curiosas certamente, mas gentis e hospitaleiras. Calculo o seu espanto ao vê-los erigir a imensa torre metálica (de trinta a quarenta metros) indispensável às observações astronómicas e, terminada a construção, verem-no a subir até lá acima, permanecendo horas, noites a fio a observar os astros. Que pensariam? Que imaginariam? Que se tratava de um grande feiticeiro branco? Talvez...

Pergunto-me hoje se a preocupação obsessiva do meu pai pela pontualidade no que diz respeito aos rituais do quotidiano – e expressa no rigor com que são apontadas as horas, os minutos e os segundos nos seus log books (diários de campo), não só das observações astronómicas e geodésicas essenciais ao seu trabalho, mas também do registo de todas as suas actividades desde o levantar ao deitar, incluindo as horas das refeições; isto em plena selva, afastado centenas/milhares de quilómetros do mundo civilizado, rodeado de populações para quem o relógio não existia – se não seria a sua reacção à ameaça de perda da razão – tal como o Robinson de Tournier nos limbos do Pacífico só consegue emergir da lama, da vida vegetativa e da loucura construindo uma ampulheta que lhe permite medir o tempoiii e começar a organizar-se de acordo com as suas referências culturais.

Há um filme extraordinário do meu paiiv em que ele está no acampamento, sentado numa cadeira, à mesa, que está coberta por uma toalha branca. Está sozinho, a comer num prato de louça, com talheres e a beber água num copo de vidro. À sua volta aglomeram-se dezenas de negros olhando estarrecidos, de olhos esbugalhados, para ele e para os objectos que o rodeavam. Era a primeira vez que assistiam a uma refeição destas em que viam um branco sentado a uma mesa, a comer com prato, copo e talheres. Tratava-se, pois, de um momento excepcional de encontro de culturas.

Dizia o meu pai que nunca viu bater numa criança ou numa mulher nas aldeias e regiões por onde passou ao longo de quatro décadas, quer na Guiné (onde tinha estado anteriormente), quer em Moçambique, e isso era verdade para qualquer etnia que tenha contactado - porque os geógrafos instalavam os seus acampamentos sempre que possível na proximidade de uma povoação, o que lhes facilitava a aquisição de comida para os acompanhantes da expedição e também informações sobre a região, sua geografia, clima, usos e costumes, locais de caça, eventualmente de pesca, etc.

Mas se as populações eram em geral amistosas, se algumas regiões eram relativamente amenas do ponto de vista geográfico e climático, havia, no entanto, zonas extremamente inóspitas, de calor e humidade extremas; outras de frio glacial, animais perigosos, nem sempre os de grande porte, como os leões ou os leopardos, mas sobretudo os insectos e os répteis venenosos que se intrometiam facilmente nas tendas e podiam matar sem apelo nem agravo. Era o caso da temível “matacanhav, que se introduzia na pele, em geral entre os dedos dos pés, provocando forte comichão e infecções, como o tétano, que podiam levar à amputação de membros. Desses perigos contava-nos o meu pai por vezes algumas histórias, mas muito por alto, sem dar importância, para não nos inquietar. Como por exemplo numa altura em que estava a calçar as botas e de lá de dentro saiu uma das serpentes mais venenosas, cuja mordedura matava em segundos ou quando uma outra cobra, de veneno mortal, mordeu o Lampião (um dos seus ajudantes) e o pai lhe deu a única injecção que tinha com o antídoto salvador, o que levou o Lampião a sentir que lhe devia a vida, ficando-lhe com uma devoção total e absoluta (esta do Lampião não nos contou o pai, mas sim o técnico auxiliar que presenciou o acontecimento).

Havia também os grandes medos das populações locais: do temível leão que já tinha devorado oito pessoas em diferentes aldeias ou do homem leopardo que aterrorizava uma determinada região. Estes seres assustadores, reais ou míticos, tinham que ser enfrentados pelos engenheiros, que tinham de ter a coragem de os matar (caso do leão) ou de lhes tentar compreender a lógica, o sentido oculto (caso do homem leopardo – tarefa difícil, para não dizer impossível).

O certo é que, no que me diz respeito, os nomes dos rios, das montanhas, das províncias e cidades de Moçambique me eram tão ou mais familiares do que as de Portugal, mesmo sem nunca lá ter estado. E isso porque o pai nos escrevia longas cartas dos locais por onde andava e que nós procurávamos nos seus detalhados mapas de Moçambique. Eram cartas sensíveis, afectuosas, escritas de acordo com as nossas idades respectivas e nelas descrevia uma África intensa e sedutora. Mas a sua forma privilegiada de transmitir o deslumbramento e as emoções fazia-se através das imagens: as fotografias e os filmes sempre, ao longo de décadas, e nas quais descobríamos uma natureza selvagem, de árvores espantosas, animais fabulosos – elefantes, girafas, leões, zebras, gazelas, leopardos e búfalos em liberdade, no seu ambiente natural - rios imensos onde se espanejavam preguiçosamente hipopótamos e crocodilos, cascatas e cataratas brutais, um lago infinito (o Niassa) como o mar, com marés, ondas, tempestades violentas…mulheres de seios nus, com bebés às costas, executando tranquilamente tarefas domésticas nas suas aldeias de palhotas simples e harmoniosas, crianças e homens de olhares afáveis, risos fáceis, tatuagens enigmáticas, danças e rituais misteriosos, batuques frenéticos, tão diferentes das danças populares portuguesas que nos eram familiares. Tudo isto dava asas à nossa imaginação (a mim e às minhas irmãs) e fazia-nos sonhar com uma terra primordial, um paraíso perdido no tempo e no espaço…

Quando o meu pai mostrava os seus filmes africanos – em nossa casa ou, por vezes, em Clubes ou Sociedades Recreativas como o Ateneu da Madre de Deus, por exemplo – gostava de os ir comentando. Explicava as circunstâncias e os locais em que as filmagens tinham tido lugar. Tudo estava sempre, aliás, cuidadosamente anotado nas bobinas que ele organizava com o rigor e a minúcia que o caracterizavam. Fazia ele mesmo a montagem dos filmes, já em Lisboa, na nossa casa, e com evidente satisfação reencontrava os espaços extraordinários que percorrera ao longo de meses, anos, décadas…

A minha mãe mostrava sempre um certo desagrado perante os seios nus das raparigas e mulheres africanas que, com a maior das naturalidades, se moviam nas suas aldeias, com os bebés às costas, nos seus afazeres agrícolas ou de preparação da comida, moendo os grãos com o pilão para fazer a farinha de milho, base da sua alimentação tradicional. Mas também eram filmadas em batuques frenéticos e sensuais, que a deviam incomodar particularmente.

Penso que a minha mãe tinha um certo ciúme do luar de liberdade e deslumbramento que vislumbrava no olhar do meu pai quando este apresentava os seus filmes e as suas fotografias de África – que ela muitas vezes coloria delicadamente, a lápis de cor, não sei se com o intuito ingénuo de as domesticar, de também as tornar um pouco suas.

Estou convencida que foi sobretudo a insistência da minha mãe que levou à decisão da partida de toda a família para Moçambique nesse ano longínquo de 1955. Ela era muito curiosa e devia intrigá-la esse mundo desconhecido e misterioso, esse “outro lado” da vida do marido do qual se sentia excluída, que lhe escapava completamente e sobre o qual não exercia o mínimo controlo. 

Talvez também houvesse uma certa pressão governamental no sentido de que os engenheiros das diferentes Missões Geográficas (Moçambique, Angola, Guiné e Timor) se estabelecessem definitivamente nas colónias com as suas famílias, a fim de aí fortalecer a presença portuguesa. Mas a verdade é que só o meu pai fez essa opção, os outros engenheiros mantiveram o seu ritmo semestral, permanecendo os seus familiares em Lisboa.

Seja como for, o certo é que os meus pais decidiram mesmo fazer as malas e embarcámos todos rumo a Moçambique, nesse ano de 1955: pai, mãe, eu (com 8 anos) e as minhas irmãs Graça (12 anos), Guida (10 anos) e Leonor, a mais pequenita, com apenas dois anos de idade. A ideia inicial dos meus pais era permanecermos em Moçambique durante cinco anos, até nós começarmos a ir para a Universidade. Na realidade, por contingências da vida, acabámos por ficar apenas dois anos.

Fomos de barco, no paquete “Pátria”, da Companhia Colonial de Navegação. Uma viagem que se prolongava por cerca de vinte dias, contornando o continente africano, com escala nas diferentes colónias portuguesas (Madeira, S. Tomé e Príncipe, Angola) e na África do Sul, na Cidade do Cabo.

Recordo vagamente o dia da partida: uma multidão de tios, primos e amigos no Cais de Alcântara a despedirem-se de nós; o barco, que me surgia como uma pequena cidade flutuante; a sensação de aventura. Nessa altura eu andava a ler entusiasmada os livros de Emílio Salgari e Sandokan, o tigre da Malásia, era o meu herói. Imaginava que, durante a viagem, o barco de Sandokan surgiria no horizonte e os seus piratas, belos nas suas vestes de seda colorida e sabres retorcidos (Kriss), cravejados de pedrarias, invadiriam o “Pátria”, transportando-me para extraordinárias aventuras nas exóticas selvas da Malásia – ou de África, tanto fazia. Recordo ainda hoje com extraordinária nitidez os sonhos que então tinha com os piratas de Sandokan, a sua agilidade, o brilho das pedras preciosas e o luxo das suas vestimentas. Subsistiu assim sempre, ao longo da viagem, uma certa decepção pela ausência destes heróis. Nem mesmo Gastão, o pirata português amigo de Sandokan, se dignou aparecer... 

Lourenço Marques, uma Cidade Colonial

Após uma viagem monótona, que me pareceu interminável, e que decorreu sem aventuras de maior, chegámos finalmente a Lourenço Marques, que recordo como uma cidade agradável, situada numa bela baía, a Baía do Espírito Santo, de largas avenidas ladeadas de árvores frondosas, jacarandás e acácias rubras, de vivendas e prédios modernos. Não teria a beleza espectacular da Cidade do Cabo, mas era bonita, na sua escala colonial portuguesa, mais caseira.

Instalámo-nos numa casa situada no centro da cidade, na Avenida Duquesa de Connaught. Lembro-me bem do nome da rua porque era esquisito. Nunca soube quem eram esses duques de Connaught, nem porque lhes foi dada a honra de darem o seu nome a duas  das mais belas avenidas do centro de Lourenço Marques. Influências inglesas, certamentevi

A influência sul africana fazia-se sentir de forma muito forte em Moçambique. Havia, entre os colonos moçambicanos brancos um acentuado desprezo pela Metrópole, por eles considerada como atrasada, pobretanas e mesquinha. Não manifestavam abertamente esse desprezo frente a nós, que éramos de lá, mas estava latente no seu discurso racista. E eram impiedosos nas sua relações com os indígenas.

A África do Sul era o seu modelo de organização política e social, dentro da perspectiva de uma independência branca com o seu sistema de apartheid. Modelo, ao que parecia, bastante eficaz na contenção da plebe negra (e colorida em geral) e de garantia de manutenção dos privilégios da minoria branca. As prósperas cidades do Cabo, de Joanesburgo e de Pretória, entre outras, com os seus modernos arranha céus, grandes armazéns como o John Orr, excelentes hospitais, boas universidades e hotéis luxuosos, alimentavam essa ilusão. Muitos dos colonos moçambicanos aí se deslocavam com frequência, para compras, actividades de lazer ou questões de saúde – os hospitais da África do Sul sendo conhecidos pelos seus bons médicos e eficácia do seu sistema de saúde.

Adoptavam-se assim, em Lourenço Marques, muitos hábitos sul africanos/ingleses como, por exemplo, guiar à esquerda, pequeno almoço à inglesa (bifes com batatas fritas ou bacon com ovos), frequência de clubes de equitação, de golfe ou de ténis, organização de safaris, o chá das cinco entre as damas da elite colonial. O inglês era a língua mais falada depois do português, enquanto que em Portugal a segunda língua era o francês.

Esta influência sul africana reflectia-se também, claro, num racismo agressivo e ainda sem disfarces nesses anos cinquenta, anteriores à guerra de libertação. Não era oficialmente um sistema de apartheid mas pouco faltava. Numa população total de cerca de seis milhões e meio (em 1960), os portugueses europeus e seus descendentes não chegavam aos 100.000, na maior parte funcionários do Governo ou de grande companhias e grupos económicos nacionais ou internacionais. Os negros constituíam cerca de 98% dos habitantes. A população mestiça representava somente 0,5% do totalvii, o que era bem elucidativo da segregação racial vigente.

De acordo com o recentemente aprovado Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambiqueviii, eram estabelecidos três grupos populacionais: os indígenas, os “assimilados” e os brancos. Para um indígena conseguir obter o estatuto de “assimilado” e poder usufruir de direitos vedados aos indígenas não assimilados era necessário demonstrar possuir um conjunto de requisitos, como saber ler e escrever português, vestir e professar a mesma religião dos portugueses e manter padrões de vida e costumes semelhantes aos europeusix, etc. Até à introdução deste estatuto os indígenas não tinham nenhuns direitos civis, ou jurídicos, nem cidadania. E mesmo após a aprovação deste estatuto os seus direitos eram na prática inexistentes. O estatuto foi abolido em 1961 com as reformas introduzidas por Adriano Moreira quando foi ministro do Ultramar, já sob forte pressão internacional e na iminência da eclosão das guerras de libertação.

Havia leis e regulamentos distintos para cada um destes grupos, formas diferentes de aplicar a justiça e uma diferente aplicação das leis do trabalho, se é que se podia falar em direito do trabalho no que diz respeito às populações indígenas – que eram enviados aos milhares e compulsivamente para as minas de ouro, carvão e diamantes, do Transval e da África do Sul, ou para as plantações de cacau e café de S. Tomé e Príncipe, onde subsistiam em condições miseráveis, próximas da escravatura. Quanto aos camponeses que permaneciam nas suas terras, estavam igualmente sujeitos a uma lei de trabalho forçado. Em qualquer altura o Governo podia retirar-lhes as terras, enviá-los para outra zona qualquer de Moçambique ou obrigá-los a alterar por completo a sua agricultura tradicional, em favor das monoculturas impostas pelas grandes empresas, que lhes pagavam uma miséria, reduzindo-os à fome. 

Eu estava habituada, em Lisboa, à separação de classes, bastante rígida no Portugal de então. Não conhecia a discriminação étnica, de extrema violência em Lourenço Marques. “Entrada proibida a pretos e a cães” – lia-se com frequência à entrada dos jardins e espaços públicos, cafés e cinemas. Depois das 22 horas os negros não podiam circular livremente na cidade a não ser que tivessem com eles a autorização expressa do patrãox. Caso contrário, se fossem apanhados pela polícia, eram deportados para S. Tomé e Príncipe, para as plantações de cacau ou café ou para as minas de ouro do Transval e de diamantes da África do Sul. Eram assim brutalmente afastados da família, dos amigos, do seu universo cultural. 

As senhoras brancas, enquanto tomavam chá com as amigas, diziam naturalmente que tinham mandado ou iam mandar açoitar os seus criados à Administração, por qualquer insignificância que elas referiam entre risadas despreocupadas, enquanto provavam bolinhos e discutiam as toilettes umas das outras. Eu, apesar de criança ainda, sentia-me chocada com o à vontade com que se falava do espancamento de seres humanos. Esta atitude não seria talvez generalizada entre os colonos, mas era considerada banal. Sentia também na minha mãe (e no meu pai) um profundo mal estar perante estas situações. Quando em casa questionava o meu pai sobre o porquê destes comportamentos, percebia-lhe um olhar sombrio, mas evitava responder-me.

Nos anos anteriores, quando vinha sozinho, sem a família, e dado o seu estatuto ambíguo, de outsider, entre cá e lá, não se sentia obrigado a frequentar estes locais de sociabilidade feminina e daí tê-los evitado. O que não significa que não se confrontasse com a violência racista, também forte, no universo masculino, talvez mesmo de uma forma mais brutal, mais directa, sem ter que ser mediada pela Administração. Eu percebia, no entanto, que isso o revoltava, que os seus valores e princípios eram outros e que procurava disfarçar a sua revolta iludindo as minhas questões e a minha curiosidade infantil.

Esta ambiguidade de estatuto dos engenheiros dava-lhes uma certa margem de liberdade, permitindo-lhes escapar quer às rígidas hierarquias do poder colonial quer às não menos rígidas hierarquias da Metrópole. Eram respeitados, mas como não se inseriam de modo regular num ou noutro espaço acabavam por ter uma certa independência relativamente às vivências dos respectivos códigos sociais, entre os quais os da aplicação das leis e costumes racistas.

A relação do meu pai com os indígenas era de grande afabilidade, amizade profunda mesmo, com aqueles que, ao longo dos anos, eram os seus únicos companheiros durante os meses de afastamento total “do mundo civilizado” que durava a campanha, nos locais mais recônditos de Moçambique. Eram quase sempre os mesmos os que o acompanhavam, ao longo de décadas. Viviam nas suas aldeias durante seis meses, de Novembro a Maio, mas quando chegavam as datas do início do recrutamento para as campanhas da Missão Geográfica lá vinham eles até à Matola, sede da Missão, e onde se processava o recrutamento dos nativos, todos os anos na mesma data.

Já sabiam bem em que consistia o trabalho: conduzir camiões em picadas perigosas e estradas inexistentes, travessia de rios, por vezes tumultuosos, construção de jangadas e pontes rudimentares, subida de montanhas, reparação dos camiões tantas vezes danificados, montagem e desmontagem das torres metálicas para as observações astronómicas, construção de marcos geodésicos, transporte dos materiais indispensáveis a uma campanha de seis meses no mato - comida, tendas, instrumentos científicos, armas para a caça, etc. 

Durante o período de estadia de seis meses em Lisboa era feito o estudo e análise dos dados recolhidos durante a campanha anterior e elaborado o respectivo relatório, após o que era delineada, de forma minuciosa, a próxima campanha. Tratava-se de expedições complexas que exigiam uma cuidadosa preparação.

Entre estes companheiros de já muitas expedições, o Lampião e o Sabonete eram dos mais antigos e os mais queridos do meu pai. Lampião era grande, musculoso, de um negro carvão, luzidio, de lábios muito grossos, orelhas grandes, tipo argolas, descarnadas no interior, de acordo com os rituais próprios da sua tribo, o que lhe dava um aspecto assustador. Sabonete era mais delicado, de um negro mais suave, magrizela. Cozinhava umas maravilhosas batatas fritas quase transparentes e conseguia retirar as peles das laranjas (fora as cascas, claro) de forma que os gomos surgiam como uma flor. Era um encanto vê-lo fazer isso, dir-se-ia um passe de magia.

A nossa ida, da mulher e das filhas, baralhou e complicou o esquema montado ao longo dos anos pelo meu pai. Qualquer família branca que se prezasse tinha de ter pelo menos três criados negros: o cozinheiro, o mainato e o moleque. O cozinheiro só cozinhava mesmo, não se ocupava de mais nada. O mainato ocupava-se das limpezas e arrumações. O moleque, em geral um rapazinho de dez ou onze anos, fazia recados e tomava conta das crianças. Foi o moleque, por exemplo, que era pouco mais velho do que eu, quem me ensinou a andar de bicicleta. Por razões culturais, não era habitual as mulheres nativas trabalharem em casa dos brancos.

A enorme confiança que o meu pai tinha no Lampião e no Sabonete levou-o a decidir prescindir deles na sua campanha desse ano de modo a que eles ficassem a servir na nossa casa, o Lampião como mainato e o Sabonete como cozinheiro. Estes acataram a sua decisão, mas não sem profunda contrariedade, que mal conseguiam disfarçar. Ficarem enfiados numa casa de mulheres, a ter que lavar roupa de meninas, quase sem poderem sair, comparado com a liberdade dos grandes espaços quando acompanhavam o meu pai nas expedições, nas caçadas, na travessia dos grandes rios e lagos, na ascensão de montanhas, era para eles uma horrível despromoção e uma enorme infelicidade. Como gostavam muito do meu pai não ousaram desobedecer-lhe e acataram a sua decisão, ou acederam ao seu pedido, não sei bem – mas profundamente contrariados.

Quanto à minha mãe, ver entrar aqueles matulões negros dentro de casa, obrigando-nos a partilhar com eles a nossa intimidade, causava-lhe um enorme desagrado e desconfiança, que ela também não conseguia disfarçar. Não descansou enquanto não se viu livre do Lampião, queria à força uma mulher. O meu pai, depois de muito procurar, lá conseguiu arranjar uma negra muito gorda, vinda directamente do mato e que nunca tinha visto mesas, nem cadeiras, nem toalhas, muito menos talheres ou copos. Desmanchava-se a rir ao ver estes extraordinários objectos e quando a minha mãe lhe explicava para que serviam e como dispô-los sobre a mesa, o riso era devastador, até se rebolava no chão à gargalhada. Acabou por fugir com o cozinheiro passado pouco tempo.

Vivências Africanas 

Creio que o que mais me impressionou na vivência africana foi a força selvagem da natureza. Era um forte contraste com a natureza muito mais domesticada da Europa que eu conhecia. Tudo em Moçambique era grandioso: as árvores com as suas raízes fabulosas que irrompiam do solo como répteis torturados e gigantescos, macacos a saltarem nas árvores e jardins, o clima quente e húmido, pegajoso, um excessivo fervilhar de vida, a tortura dos mosquitos, a intensidade dos cheiros, os pássaros e os répteis de cores intensas e brilhantes, as trovoadas violentas, por vezes acompanhadas de chuvas brutais, por vezes secas e coincidindo com um pôr de sol de fogo, as grandes queimadas que se estendiam pelo mato fora – tudo se iluminava em som e fúria, aterrador e fascinante. Não havia estações do ano, o que era estranho, parecia sempre Verão, e a noite caía de repente, sem crepúsculo. Tudo se passava a uma outra escala, a uma outra dimensão, infinitamente mais vasta do que a de Portugal e do Bairro. 

As praias eram belas, imensas, a perder de vista, mas esquisitas. A água era um caldo quente que não refrescava, tínhamos de andar quilómetros até chegar ao mar, em cima de milhões de pequenos caranguejos que esborrachávamos a andar – eu só conseguia ir de ténis, tal era o nojo e a aflição que isso me provocava. E quando, enfim, alcançávamos o mar, não podíamos ir com a água acima dos joelhos pois havia o perigo de os tubarões nos abocanharem. 

Agradável era a piscina do Hotel Polana, e era para lá que acabávamos por ir com mais frequência. Tratava-se de um Hotel elegante e sóbrio, num estilo colonial clássico e que ainda hoje existe. Aí se encontrava a elite branca da cidade, não só na piscina como no salão ou no restaurante e no bar. Não tenho ideia de alguma vez ter lá visto, como cliente, um negro, nem sequer um mulato ou um indiano.

Havia também o Clube Hípico, onde começámos a fazer equitação. Nunca fui muito dada ao desporto mas adorei a equitação. Gostava dos cavalos, achava-os animais lindíssimos, admirava a sua elegância nervosa. Foi para mim um enorme prazer aprender a lidar com eles, a conhecê-los e a cavalgá-los. Tal como no Hotel Polana, no Clube Hípico, os negros só se viam como criados. 

Íamos por vezes passear até à Namaacha, uma espécie de Sintra africana, que ficava a cerca de 80 quilómetros de Lourenço Marques, já perto da fronteira com a Suazilândia. Tratava-se de uma zona arejada, de vegetação luxuriante, cascatas, lagoas. Era muito agradável passar lá o dia, com um bom piquenique e tomar banho sem receio nas suas águas frescas. Um dos locais preferidos de turismo dos laurentinosxi, sem dúvida. Mais uma vez, era exclusivamente frequentada pelos colonos brancos. Nada de negros ou mulatos, a não ser como criados.

Era estranha esta invisibilidade dos indígenas, a sua quase não humanidade. Uma imensa maioria, 98% da população, e eram como que inexistentes, surgiam silenciosamente quando necessários e desapareciam quando desnecessários. Estavam lá só, única e exclusivamente, para servir, para serem criados dos colonos brancos. Os mestiços eram igualmente invisíveis, tal como os indianos, recolhidos no seu pequeno comércio e desprezivelmente designados por “monhés”, palavra que tinha uma conotação claramente pejorativa. Uma “coisa monhé” ou “amonhesada” era algo de má qualidade, piroso e ordinário.

Ainda hoje me interrogo sobre a ausência de recordações minhas dos indígenas. Porque é que não me recordo de nenhum nativo? Como é isso possível? Fora os olhares desconsolados do Sabonete e do Lampião, não me ficou ninguém. E estes provavelmente persistiram na minha memória só porque já existiam para mim através das descrições do pai, das histórias por ele contadas.

Quando não ficavam demasiado longe de Lourenço Marques íamos visitar os acampamentos do pai. Isso era engraçado, uma sensação de aventura e descoberta. As grandes tendas armadas, as refeições de caça ao ar livre e, sobretudo, a exploração de uma selva misteriosa, cheia de perigosos animais selvagens. Aí sim, reencontrava a África imaginada da minha infância lisboeta: os jacarés e os hipopótamos preguiçosos a refrescarem-se nos grandes rios, as zebras e as gazelas saltando à frente do nosso jipe, as girafas olhando-nos interrogativas, os búfalos pachorrentos. Só nunca vi leões, nem elefantes, com muita pena minha. Comíamos os bichos caçados pelo pai, carnes de sabor intenso, demasiado forte para o nosso gosto de crianças, acompanhadas de batatinhas fritas deliciosas, o que mais apreciávamos. Observávamos os lagartos de cores brilhantes, os pássaros esplêndidos, brincávamos com os macacos, ouvíamos e tentávamos ver as mil e uma criaturinhas desconhecidas e fascinantes que nos rodeavam. E, finalmente, falávamos com os indígenas que estavam no acampamento, que tinham nomes, eram pessoas, brincavam connosco e ajudavam-nos a decifrar um pouco daquela natureza sumptuosa e enigmática.

Eram sempre exaltantes esta idas aos acampamentos do meu pai, por todas as razões: contacto com uma natureza selvagem e exótica - árvores, plantas e bichos fabulosos, histórias de leopardos e leões ferozes que aterrorizavam as populações nativas, de elefantes solitários inquietantes destruidores da floresta - uma selva povoada de fantasmas, de criaturas misteriosas, de cheiros, sons e forças invisíveis, mas também um local de instrumentos científicos rigorosos (entre os quais o telescópio, o mais fascinante), que permitiam decifrar enigmas. Os acampamentos do pai eram, para mim, locais de descobertas e deslumbramentos!

***

Poucos meses depois da nossa chegada a minha irmã Guida, na altura com onze anos, adoeceu. Ainda se pensou que fosse poliomielite, muito comum então naquela zona de África, mas o diagnóstico cruel não se fez esperar: uma leucemia aguda. 

Foi um período doloroso, que me é difícil recordar, o da sua doença e morte. Eu tinha nove anos quando a Guida morreu, em Março de 1957. Situo nesses meses/anos de sofrimento, de embate brutal com a doença e a morte, a consciência da minha irredutível solidão, o final da minha infância. É a partir dessa altura que descubro nos livros o refúgio possível do drama familiar em que estava mergulhada. Sim, porque não há nada mais devastador para uma relação conjugal e para o equilíbrio de uma família do que a doença prolongada e a morte de uma criança. Tudo fica abalado, de forma brutal. Um peso imenso abateu-se sobre nós, uma sensação de queda no abismo, de afogamento – os livros, a literatura foram um pouco a boia de salvação que me permitiu sobreviver.

Os livros, mas também a escola, que tinha um ambiente radicalmente diferente da escola primária no Bairro da Madre de Deus, em Lisboa, cujas condições eram miseráveis, dado que era frequentada sobretudo por crianças dos bairros de lata circundantes. Esta, em Lourenço Marques, situava-se num edifício amplo, moderno, luminoso, com recreios interiores e exteriores, onde podíamos correr e brincar à vontade. Eram só meninas brancas, quase todas do mesmo estrato social, filhas da burguesia colonial. Não me lembro de ver uma única menina negra ou mesmo mestiça ou indiana. Na altura não me questionava sobre isso, achava normal.

A ideologia fascista era, no entanto, pesada. Todas as manhãs, antes do início das aulas, tínhamos de ir “para a forma” e cantar o hino da Mocidade Portuguesa, fazendo a saudação fascista. A minha professora, uma senhora grande e forte, fazia-nos prelecções exaltadas em louvor de Salazar e contra os comunistas e os maçons que, segundo ela, praticavam os mais hediondos crimes. Mostrava-nos o mapa da Europa, assinalava a Rússia, imensa e ameaçadora, face ao pequeno país que era Portugal. Excitava-se, enquanto gritava, e ficava muito vermelha, cheia de urticária. Nós ficávamos aterradas, as lágrimas corriam-nos perante as descrições de tamanhas atrocidades e ameaças. Depois rezávamos para que a Rússia comunista fosse destruída e o adorado chefe Salazar vencesse todos os seus inimigos.

Era estranho, mas quando acalmava e começava a ensinar-nos, esta senhora era uma excelente professora, apaixonada pela sua profissão, cuidadosa e atenta às dificuldades das alunas, incutindo-lhes confiança nas suas capacidades. Curiosamente, embora eu gostasse muito dela como professora e como pessoa, a sua ideologia extremista e absurda não exerceu em mim qualquer influência, a não ser no exacto momento em que debitava as suas diatribes. Dois anos mais tarde, em Lisboa, já eu apoiava entusiasticamente as candidaturas do General Humberto Delgado e até de Arlindo Vicente (o candidato do PCP). Em contrapartida, a sua atenção e o seu carinho foram para mim um apoio fundamental durante a fase tão dolorosa da minha vida familiar, da doença e da morte da Guida. Ainda hoje recordo esta professora com muita amizade e gratidão. O facto é que, para além das matérias escolares, ela me ensinou algo que considero importante: que o mundo não é a preto e branco, que não podemos ter uma visão maniqueísta das pessoas, que os “bons” e os “maus” não se definem só pelas suas ideologias, há outras dimensões significativas, e que a natureza humana é complexa.

No começo do ano lectivo seguinte entrei no Liceu Salazar, onde ainda permaneci durante o primeiro trimestre. O ambiente do Liceu era informal e simpático. Ouvia-se música, organizavam-se festas com as alunas, as professoras eram jovens, afáveis e não eram mesquinhas com as notas, davam um vinte se merecido. Claro que continuava a não haver raparigas negras no Liceu, nem mestiças ou indianas, que me lembre. Mas era um ambiente alegre, descontraído e eu tive notas excelentes. Deixou-me boas recordações e custou-me deixá-lo, quando partimos definitivamente de Lourenço Marques.

***

Tinham-se passado exactamente dois anos desde a nossa partida no “Pátria”. Pareceram-me uma eternidade. Ainda hoje, quando recordo a minha estadia em Moçambique, me parece que foi longa, de muitos anos, de tal modo intensas e dolorosas foram as emoções vividas nesse afinal curto espaço de tempo. O confronto violento com a doença e a morte determinou o final precoce da minha infância. Ainda era criança, com dez anos apenas, mas sentia-me muito mais velha do que as outras meninas da minha idade. 

Desde então, a África Negra ficou para sempre em mim associada às ideias de doença e de morte. Sei que é injusto, que tal se deve a circunstâncias individuais/familiares, mas não consigo evitá-lo.

A partir dessa altura dir-se-ia que um manto espesso de silêncio caiu sobre Moçambique. Nunca mais em nossa casa se viram filmes ou fotografias ou se falou sequer de África. Dir-se-ia que nunca lá tínhamos estado. E, no entanto, o pai continuava a ir para Moçambique de seis em seis meses, como dantes. Continuava a escrever-nos cartas afectuosas e frequentes, a fotografar e a filmar. Mas já não suscitava em nós entusiasmo nem sonhos de exotismo. Penso que esse quase desinteresse nosso terá sido para ele doloroso e difícil, acentuando a clivagem entre as suas duas vidas, a de cá e a de lá. Mas era uma defesa nossa. Talvez ele compreendesse isso, não sei.

Não deixa de ser curioso que as minhas memórias da África imaginada na minha infância, através das cartas, fotografias e filmes do meu pai, permaneçam em mim muito mais nítidas do que as da África real e por mim vivida de facto, ao longo dos dois anos em que lá vivi. 

Questiono-me, no entanto se, quando sete anos mais tarde, na Universidade Livre de Bruxelas, fiz a opção pela Licenciatura em Antropologia, entre tantas outras possíveis e igualmente apaixonantes, não terei sido influenciada pelo desejo de desvendar enigmas e mistérios relacionados com as culturas africanas, de tentar ultrapassar pelo conhecimento o misto de repulsa e fascínio que a vivência africana me suscitou.

Fascínio pela natureza magnífica, sumptuosa; repulsa pela sociedade colonial racista que aí conheci, com as suas hierarquias rígidas e segregação étnica violenta. Embora garota, foi para mim extremamente chocante observar a forma desumana como eram tratados os nativos, a arrogância dos colonos brancos, a sua brutalidade. Certamente nem todos seriam racistas mas o sistema colonial, de uma extrema violência, era de molde a provocar situações permanentes de injustiça e desigualdade, das quais os próprios colonos não estavam muitas vezes conscientes. Para eles era normal, era banal. Estamos perante a banalidade do mal denunciada por Hannah Arendtxii, de um sistema totalitário que o torna normal, e de tal modo que as pessoas não se questionam, é assim. A sensação de normalidade acentuava-se por não haver sequer ainda uma guerra de libertação nas colónias portuguesas que questionasse, de forma violenta, o status quo. Isso só veio a acontecer uns anos mais tarde. A minoria branca dominante tinha assim a ilusão de que os dominados estavam satisfeitos com a sua condição e até mesmo gratos pelas migalhas de civilização ocidental que lhes eram lançadas. Tal era a propaganda do regime, que sustentava os interesses do estrato dominante. A vizinhança de uma África do Sul arrogante e poderosa, com o seu sistema de apartheid, mais força e segurança dava a estas convicções. 

Só anos mais tarde, em 1961, sob forte pressão internacional e da eminente eclosão das lutas de libertação em Angola, Guiné e Cabo Verde e Moçambique, a legislação sobre o estatuto do indígena foi alterada. É o jovem ministro do ultramar Adriano Moreira quem introduz estas reformas, com a cobertura do ditador Salazar. É assim revogado o Estatuto que proibia o acesso à cidadania portuguesa dos nativos, substituído o Código do Trabalho Indígena Rural que estabelecia formas de labor compulsivo, extinguido o regime das culturas obrigatórias, abolidas certas regras e práticas discriminatórias e intensificada a escolarização. Estava assim posta em marcha a máquina de propaganda tendo em vista suavizar a imagem do colonialismo português, realçando a sua dimensão “multirracial” e a sua “diferença” relativamente aos outros colonialismos e ao apartheid sul africano – na perspectiva luso tropicalista de Gilberto Freyre, amável para com a ditadura de Salazar. 

Porém, durante o período em que vivi em Moçambique (de 1955 a 1957) o sistema colonial português estava ainda no seu apogeu, vivendo a colónia uma época de desenvolvimento económico e modernização nunca antes experimentada. Daí um ambiente geral de optimismo e de confiança no futuro por parte dos colonos brancos, daí também a sua arrogância e convicção de que estavam do lado certo da História. O isolamento do regime ditatorial português na cena internacional era ignorado pela comunicação social, submetida a uma censura prévia feroz, e ainda mais implacável relativamente a tudo o que dissesse respeito à questão colonial. Daí a confiança no futuro e a ilusão de que o regime estava para durar, apesar das sublevações indígenas pontuais, e que eram pronta e cruelmente reprimidas. 

***

Perto do final da sua vida, o meu pai, impressionado com o rigor atingido pela Cartografia, graças aos satélites artificiais e ao G.P.S. concluiu que todo o seu trabalho, toda a sua vida, tinham sido inúteis. Tanto esforço vão, no seu entender, tantos e tantos ilhares de quilómetros percorridos a pé ou em carrinhas desconjuntadas, tantas picadas transpostas, tantos rios atravessados em jangadas improvisadas, tantas montanhas escaladas, com dificuldades inimagináveis, tanta solidão, tanta luta, levada ao extremo da resistência física e psicológica, para obtenção de um conhecimento científico tão rigoroso quanto possível, que agora estava apenas à distância de um clique no computador e podia ser obtidos em casa, sem se levantar da cadeira. E eu, na altura, não soube transmitir-lhe aquilo que sentia e sabia ser verdade: que era graças ao trabalho dele e dos colegas, levado a cabo em condições tão duras, que se tinha chegado aos sofisticados sistemas de posicionamento e navegação actuais  - e que, portanto, o seu trabalho não tinha sido, de modo algum, inútil. Nem tão pouco a sua vida, tão cheia de aventuras e de desafios e que, inclusive, tantas asas deu à nossa imaginação infantil e adolescente…

É, aliás, significativo que, durante os longos anos da guerra de libertação (de 1964 a 1974), a FRELIMOxiii protegeu sempre os geógrafos, nunca desenvolvendo acções de guerrilha onde eles se encontravam, porque percebeu quão importante era o seu trabalho numa perspectiva de desenvolvimento futuro do país. No caso concreto de Moçambique verificou-se, aliás, que os dados recolhidos pela antiga Missão Geográfica são facilmente integrados, e a baixo custo, nos novos sistemas G.P.S., revelando-se essenciais para qualquer projecto de desenvolvimento em curso na nova Nação. E certamente que o mesmo se passa nas outras ex-colónias.

Também achei comovente, ao consultar os relatórios de uma missão conjunta recente (2011) de geógrafos Portugueses e Moçambicanos, ver referida a profunda simpatia e saudade com que são recordados, pelas populações locais mais idosas, os geógrafos das antigas Missõesxiv. Eram homens da têmpera de Serpa Pinto, Richard Burton, David Livingstone, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens ou Gago Coutinho – simultaneamente exploradores, aventureiros e homens de ciência. Foi com prazer que mergulhei nos seus escritos, relatórios e cartas – que me proporcionaram empolgantes viagens no tempo e no espaço.

Helena Cabeçadas
Setembro de 2019

(Este artigo baseia-se, em grande parte, no livro “Moçambique. Sonhos, Vivências e Memórias”. Chiado Editora, 2015) 


Ficha Técnica
Fotografias de José Soares Cabeçada
Ilustrações de Letícia do Carmo

Dados Biográficos

* Helena Cabeçadas nasceu em Lisboa, em 1947. Frequentou os Liceus Salazar (na então Lourenço Marques), D. Filipa de Lencastre e Rainha D. Leonor, em Lisboa, tendo sido expulsa e impedida de terminar o último ano do Liceus, na sequência das revoltas estudantis contra a ditadura de Salazar. Foi assim obrigada a exilar-se aos 17 anos, na Bélgica, onde se Licenciou em Ciências Sociais e fez uma pós graduação em Psicossociologia do Trabalho, na Universidade Livre de Bruxelas. Mais tarde, já na Universidade Nova de Lisboa, fez o Mestrado em Antropologia Urbana, defendendo uma tese intitulada “Rituais Terapêuticos e Toxicodependência – uma abordagem antropológica”. Após o seu regresso a Portugal, em 1975, exerceu funções docentes em diferentes estabelecimentos de Ensino Superior (Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Instituto Superior do Serviço Social, Universidade Lusófona e Universidade Lusíada) e integrou o quadro do Centro de Estudos e Profilaxia da Droga, quando da sua formação, em 1977. Em 1982 obteve uma bolsa Fulbright para Filadélfia (EUA), onde trabalhou no Philadelphia Psychiatric Center (Drug Treatment Program) e frequentou Seminários de Cross Cultural Communication na Universidade de Pennsylvania. Em 1984 foi requisitada pelo Governo de Macau para desempenhar tarefas de estudo e investigação na área da toxicodependência e saúde mental. Aí foi também Professora na Escola Superior de Enfermagem e investigadora na Universidade Chinesa de Hong Kong. Coordenou projectos europeus sobre a temática das Drogas e Imigração, tendo sido redactora da Revista Europeia “Ítaca”. É membro do European Working Group on Drug Oriented Research (EWODOR), da European Federation of Therapeutic Communities (EFTC) e autora de vídeos e de dezenas de artigos científicos em revistas portuguesas e estrangeiras sobre a temática das drogas e cultura, prevenção das toxicodependências, comunidades terapêuticas e comunicação inter cultural. Apresentou conferências, nestas áreas, em Filadélfia, Washington, Hong Kong, Macau, Tokyo, Lisboa, Porto, Amesterdão, Copenhaga, Berlim, Oslo, Paris, Stirling e Montréal. Publicou os livros “Bruxelas, Cidade de Exílios” (2014), “Moçambique, Sonhos, Vivências e Memórias” (2015) e “Filadélfia a Preto e Branco” (2018), na Chiado Editora.


i Global Position System / Sistema Global de Posicionamento.

ii Actual Maputo. Optei por conservar, no decorrer deste texto, as designações da época colonial.

iii In “Vendredi ou les Limbes du Pacifique”. Michel Tournier, éditions Gallimard, Paris, 1967.

iv Desse filme, e de vários outros, foi realizado um vídeo, em colaboração com Benjamim Enes Pereira, do Museu Nacional de Etnologia, que procura elucidar sobre o trabalho efectuado pelos geógrafos em Moçambique.

v Espécie de pulga, também conhecida por “bicho-de-pé”. Vários exploradores da época colonial relataram as suas penosas experiências ao serem atacados pelo bicho-de-pé: os franceses F. Pyrard, de Laval, o naturalista Auguste de Saint Hilaire ou o escritor, geógrafo e agente secreto Sir Richard Burton, entre outros.

vi Vi recentemente que eram aparentados da família real britânica e que se tinham dignado, no início do séc. XX, a fazer uma escala de três dias em Lourenço Marques, o que levou a que o governo local, desvanecido com tal honra, decidisse homenageá-los com duas das mais belas e centrais avenidas da cidade: Avenidas do Duque e da Duquesa de Connaught (hoje, respectivamente, Avenida Friedrich Engels e Patrice Lumumba) e ainda uma terceira Avenida Princesa Patrícia, em homenagem à sua filha.

vii Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra.

viii Decreto Lei de 20 de Maio de 1954.

ix Era-lhes até mesmo exigido comer arroz em vez da tradicional farinha de milho (cf. “culinária tradicional de Moçambique”).

x Isto aconteceu com um dos nossos criados, o Lampião, que se esquecera de pedir a autorização expressa de saída ao meu pai. Este conseguiu resgatá-lo in extremis do posto de polícia.

xi Nome dado aos habitantes de Lourenço Marques.

xii Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal”. Ed. Tenacitas, Coimbra, 2013.

xiii Frente de Libertação de Moçambique

xiv De acordo com a comunicação apresentada pela Eng.ª Paula Cristina Santos: “Cem anos de Geodesia em Moçambique, da Missão Geodésica da Africa Orienta ao Protocolo de Cooperação Luso Moçambicano” in Actas do Congresso Internacional “Saber Tropical em Moçambique: História,Memória e Ciência”. IICT – Jardim Botânico tropical. Lisboa, 24-25 Outubro de 2012.

 

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