Um final traduzido na emergência de dezenas de estados independentes que passaram a fazer parte do concerto das nações. Também vivi os problemas da pós-colonização e procuro dar a minha contribuição na procura das necessárias vias para o progresso de Angola e do continente africano.
A luta contra a dominação colonial e pela liberdade
Nasci em 1935 em Luanda e cresci observando a consolidação da dominação colonial portuguesa e a sua consequente violência.
No geral, a dominação colonial europeia no Mundo era caracterizada por:
- apropriação das terras dos autóctones
- imposição do trabalho obrigatório em fazendas, minas e obras públicas
- imposição do cultivo de produtos em favor das grandes companhias
- leis e práticas discriminatórias sobre os autóctones
- violência repressiva
- negação das culturas autóctones
- despersonalização do colonizado
Em Angola, tudo isto existia e materializava-se particularmente:
- num Estatuto dos Indígenas abrangendo a quase totalidade dos autóctones, negando-lhes a cidadania
- uso maciço do trabalho forçado em fazendas de café, sisal, minas de diamantes, caminhos de ferro e obras públicas
- obrigação do cultivo de algodão a favor da Cotonang
- castigos corporais generalizados para os ditos indígenas
No final da minha adolescência, tinha escolhido o campo para agir: lutar pela independência de Angola e pela liberdade do povo angolano. Assim, participei nas três fases que caracterizaram a luta nacionalista angolana contra o colonialismo português: combate cultural na afirmação da identidade angolana e dos seus valores africanos; combate político através de grupos clandestinos que mobilizavam as populações para a conquista da independência; por fim, dada a obstinação do governo fascista português e a sua feroz repressão, o necessário combate armado. Mas a luta pela liberdade não se limitou ao combate contra a dominação colonial. Realizou-se também dentro do movimento nacionalista contra poderes arbitrários e pela democracia.
Resumirei os principais momentos de toda essa luta que empreendi com muitos outros companheiros.
Desde finais dos anos 40 do passado século - através de actividades culturais: revista “Mensagem”, jornal “Cultura”, recitais de poesia, música angolana urbana (“N’Gola Ritmos”), recitais de poesia - assistia-se em Angola à afirmação duma identidade angolana e de valores africanos a contrapor à dominante cultura do colonizador.
Em meados dos anos 50 surgiram grupos políticos clandestinos que se multiplicaram a partir de 1958. Eram diversos na sua composição, ideologia e propósitos políticos - expressos nos panfletos difundidos - mas todos eles incitando à independência de Angola. A polícia política portuguesa, PIDE, recentemente instalada em Luanda, ia fazendo a sua investigação e, a partir de Março de 1959, desencadeou uma onda de detenções que, durante esse ano, levaram centenas e centenas de nacionalistas à cadeia de S. Paulo, acabada de construir para o efeito. Cerca de cinco dezenas viriam a ser julgados e condenados a vários anos de prisão. Mais tarde foram transferidos para o campo de concentração do Tarrafal.
Nesse combate cultural dos anos 50 e depois político, eu também estava empenhado. A partir de 1957, fui um dos dirigentes do Cineclube de Luanda e da Sociedade Cultural de Angola onde era membro do corpo redactorial do Jornal “Cultura”. Na luta política fui membro das organizações clandestinas: o segundo PCA (Partido Comunista Angolano) e o MLNA (Movimento de Libertação Nacional de Angola), tendo sido preso pela PIDE portuguesa em 1959. A partir de 1961 fui redactor do diário vespertino ABC, que, nessa época, era muito lido pela população africana e muito castigado pelo gabinete de censura governamental.
No início de 1961 começam as acções directas nacionalistas: em Janeiro, revolta dos camponeses da baixa de Cassanje; em 4 de Fevereiro, ataque armado às cadeias para libertar os nacionalistas aí encarcerados; Em 15 de Março, violenta rebelião armada no Norte de Angola que atingiu fundamentalmente os proprietários de fazendas de café e suas famílias e que fez desencadear a maciça repressão militar portuguesa, dando início à chamada guerra colonial. Dois movimentos nacionalistas, UPA e MPLA, conduziam as acções militares e travavam feroz disputa entre si para obter a primazia no terreno e na arena internacional.
No interior do país, nos anos seguintes, a PIDE continuaria a prender nacionalistas, torturá-los e enviá-los para os campos de concentração, entretanto criados no extremo sul de Angola: Missombo e S. Nicolau.
Parti para o exílio em 1962 para me juntar às forças nacionalistas. Em Janeiro de 1963, poucos meses depois da independência da Argélia, cheguei à capital desse país. Argel fervilhava de ideias e militantes revolucionários de todo o Mundo. Aí, em 1964, fui um dos fundadores do Centro de Estudos Angolanos, que forneceu ao MPLA documentação sobre o aparelho colonial em Angola, manuais de formação política, um Manual de Alfabetização e respectivo Manual do Alfabetizador, assim como uma História de Angola e um Manual de Geografia para o ensino primário.
Transferido, em 1969, para a Segunda Região Político-Militar do MPLA, dirigi a Rádio “Angola Combatente” e, temporariamente, o Departamento de Informação e Propaganda. Nas bases militares dessa Região, participei na formação política dos guerrilheiros.
Em 1974 participei na criação de uma tendência do MPLA, chamada “Revolta Activa”, que reivindicava a democratização do Movimento e novas estratégias, pois o Movimento tinha sofrido sérios revezes militares e estava profundamente desorganizado e enfraquecido. Quando se dá a revolução de 25 de Abril em Lisboa, que abre o caminho à descolonização por Portugal, o MPLA estava dividido em três facções: a da Direcção, a Revolta Activa e a Revolta do Leste. As tentativas de reunificação, através dum congresso em Lusaka, falharam. A partir daí a facção da Direcção presidida por Agostinho Neto encetou a sua caminhada para o poder na Angola independente; primeiro fazendo as tréguas com as Forças Armadas portuguesas; depois assinando os Acordos de Alvor que estabeleciam as vias e prazo para a outorga da Independência, acordos firmados em Janeiro de 1975 entre o governo português e os movimentos nacionalistas angolanos: o MPLA, a UPA-FNLA e a UNITA. Cedo os três movimentos se envolveram em luta armada que acabou com a vitória do MPLA o qual proclamou a independência, em Luanda.
Entretanto, o regime instalado em Angola com a independência era baseado no partido único e violentamente repressivo. Em 13 Abril de 1976, cinco meses depois da proclamação da Independência de Angola, a direcção do MPLA decidiu prender vários membros da Revolta Activa, entretanto extinta. Consegui esconder-me e viver quase três anos em clandestinidade, dos quais dois sozinho num pequeno apartamento, tendo tuberculizado. Após a amnistia presidencial, em Setembro de 1978, a minha mulher escreveu ao presidente informando-o que eu estava vivo. A polícia política do regime, a DISA, pôs-me em detenção domiciliária, guardado em permanência durante cerca de dois meses e submetido a interrogatórios. Depois, pôs-me alguns dias na Casa da Reclusão, no forte do Penedo. Para nós, nacionalistas, essa cadeia era um forte duplamente simbólico: nele estiveram encarcerados os nacionalistas presos pela PIDE portuguesa em 1959 e ele fora o alvo do ataque de 4 de Fevereiro de 1961 para libertar esses presos. Agora, o forte servia para combatentes da liberdade serem aí encarcerados pelos seus próprios companheiros, tornados dirigentes do país independente. Nessa cadeia conheci presos adeptos de Nito Alves que, depois do golpe de 27 de Maio de 1977, fora fuzilado com outros dirigentes, numa onda de repressão que durou dois anos e fez milhares de mortos.
Seguidamente fui metido num avião e expulso para Portugal, em finais de Janeiro de 1979. Neste país, com Gentil Viana e Mário de Andrade, formámos um Grupo de Reflexão que procurava vias para o fim da guerra civil em Angola e que fez vários contactos diplomáticos e políticos nesse sentido.
A guerra civil, iniciada ainda antes da independência, continuou pouco depois tendo como protagonistas o MPLA, instalado no poder, e a UNITA; uma guerra civil que durou até 2002 e que teve um breve interregno (1991 e 1992), entre a assinatura dos acordos de Bicesse e a realização das primeiras eleições em Angola.
Depois dos acordos de Bicesse entre o MPLA e a UNITA, voltei livremente a Angola, em fins de 1991 e Maio de 1992, acompanhando Gentil Viana na apresentação do seu plano de convivência nacional a partidos e personalidades, tendo sido recebidos pelo presidente da República.
Após o recomeço da guerra civil renunciei a qualquer iniciativa de carácter político e continuei a residir em Portugal, mas mantendo estreito contacto com Angola e sobre ela me debruçando continuamente. Forneci testemunhos para a série documental ”A Guerra” da RTP e para a recolha gravada em vídeo da Associação Tchyweka sobre a luta pela independência. Também meus testemunhos e análises foram publicados no livro ANGOLA NO PERCURSO DE UM NACIONALISTA – CONVERSAS COM ADOLFO MARIA, de Fernando Pimenta. Tenho participado em colóquios com comunicações sobre África e Angola; faço parte do painel de comentadores do programa radiofónico “Debate Africano” da RDP África e escrevo regularmente para o blog angolano “Vivências Press News” e esporadicamente para jornais angolanos.
Tudo isto se insere na continuação da minha luta pela liberdade e progresso do povo angolano. Do mesmo modo os livros que tenho publicado: Em 2014, ANGOLA – SONHO E PESADELO onde descrevo a terrível experiência vivida de 1976 a 1979, quando escondido da polícia política, DISA. Seguiu-se o romance NA TERRA DOS TTR, uma alegoria do país e do regime político naquele tempo. Publiquei em 2015, ANGOLA - CONTRIBUTOS À REFLEXÃO, compilação de textos sobre temas históricos, políticos, económicos, sociais, de cidadania e de cultura. Em Março de 2016, o romance NAQUELE DIA NAQUELE CAZENGA. Em Outubro desse ano editei ANGOLA NO TEMPO DA DITADURA DEMOCRÁTICA REVOLUCIONÁRIA - POEMAS DO AUTO-CÁRCERE, constituído pelos numerosos poemas que fizera no já referido período de clandestinidade, fugido da repressão do pós-independência. Em 2018 publiquei o livro de poemas feitos nos últimos anos, neste exílio em Portugal, e com o título O QUE FALTA. Em Março de 2019, publiquei ANGOLA, A HORA DA MUDANÇA, uma colectânea de textos sobre a realidade angolana nos seus vários aspectos, e temas de carácter histórico e cultural.
A luta pela liberdade no pós-colonial
A luta contra a dominação colonial e pela independência nacional é um elemento necessário e fundamental do combate pela liberdade dos povos e dos indivíduos, mas não é suficiente. Liberto do domínio estrangeiro, há que ser livre no próprio país.
Verifica-se muito frequentemente que, no após independências, as aspirações populares são goradas pela vertigem do poder das elites que capturam o Estado para enriquecer e, através de um poder hegemónico, recorrem muitas vezes a populismos, a apelos étnicos e raciais que chegam a conduzir a guerras civis com terríveis consequências políticas, económicas e sociais: desestruturação da economia, migrações, miséria, profunda exclusão social, perda de valores éticos, desmobilização dos espíritos e vontades, degradação da cidadania.
A luta pela liberdade implica, então, um combate multiforme para a emergência de sociedades civis mais exigentes; permanente afirmação dos direitos humanos; avanços para regimes democráticos; criação de condições económicas, sociais e políticas para eliminar as profundas desigualdades sociais.
Adolfo Maria, 2017.
Em conclusão, direi que:
- na minha vida, vi os malefícios da dominação colonial, lutei contra ela, pude assistir à emancipação política de mais de dois terços da população mundial da Ásia e de África. Entreguei-me inteiramente ao combate cultural, político e armado contra o colonialismo português, pela independência de Angola
- vivi e sofri com os erros políticos das elites que tomaram o poder nos novos países independentes, assisti e assisto à recuperação do tempo perdido, nos campos político e económico, e vou pugnando para que se passe à correcção das gritantes desigualdades sociais no meu país e em África
- em Angola e no exílio, em Portugal, pude verificar como é complexa a percepção do outro e quanto é necessário um incessante combate pela abolição de ideias racistas e xenófobas
- através de acções, atitudes, palestras, escritos (de que este é exemplo) dei e continuo a dar a minha contribuição para que se realize a plena democratização do meu país e, em toda a parte, se desenvolva a plena cidadania, a aceitação do outro, a eliminação de barreiras entre os povos.
Adolfo Maria
27-09-2019