O Sector da Saúde na Luta de Libertação da Guiné-Bissau

Não se pode deixar de valorizar, e com vénia, a dedicação, o empenho e a solidariedade de todos quantos se prestaram a esse esforço, sem salários nem qualquer tipo de compensação! Que pena não poder citar os nomes de todos eles. Por Manuel Boal.

13 de outubro 2019 - 17:48
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Socorristas num posto sanitário simples e descartável aquando de ameaças de bombardeamento aéreo.
Socorristas num posto sanitário simples e descartável aquando de ameaças de bombardeamento aéreo.

Gostava mesmo muito de poder incluir um texto seu, sobre a sua experiência pessoal durante a guerra, o seu percurso, o que viu, viveu, sentiu” Mariana Carneiro.

Não sei, não gosto e não queria falar de mim, sobre o que fiz ou não fiz na luta de libertação das colónias portuguesas. Resisti sistematicamente às propostas que me foram feitas nesse sentido. Não é falsa modéstia nem pudor falacioso. As minhas “memórias de guerra” não têm interesse para ninguém.

Hoje não vou abrir excepção. Não vou falar do meu percurso, da minha experiência pessoal durante a guerra nem dizer o que senti. Decidi aceitar o convite, resumindo o que vi, só para prestar homenagem àqueles, anónimos ou conhecidos e celebrados, que se integraram no projecto de Amílcar Cabral para mudar o que era inaceitável, na África em geral e nas colónias portuguesas mais especificamente.

Para quem o conheceu, não era difícil seguir Amílcar Cabral, tomar parte na realização do seu sonho, apesar das dificuldades presumíveis e, como africano, acompanhá-lo para “... cumprir o meu dever no meu próprio pais no contexto do nosso tempo”, o seu projecto de vida.

Cabral fundou com um grupo de Cabo-verdianos e de Guineenses o PAIGCi e conseguiu mobilizar homens e mulheres de todas as origens e classes sociais, incluindo nas zonas rurais da Guiné dita portuguesa, para preparar e levar a bom termo a luta de libertação da Guiné e de Cabo Verde, contra o colonialismo português - e não contra os portugueses -, como ele tinha o cuidado de sublinhar; conseguiu o apoio dos países socialistas para a formação de quadros, incluindo militares, e para o fornecimento de armas, dada a surdez do regime de Salazar à proposta de uma independência negociada das colónias. O Partido conseguiu libertar regularmente vastas zonas na Guiné onde se foram instalando, com igual regularidade, as instituições de um Estado, incluindo as de comercio com as comunidades libertadas, por troca de produtos necessários ao progresso das regiões, à manutenção e segurança das escolas e das unidades sanitárias e ao sucesso da guerrilha, tambémii.

É nesse contexto e, face ao impasse a que se chegou na guerra, consequente do domínio do espaço aéreo pela tropa colonial e do controlo absoluto pelo PAIGC , das deslocações no terreno e da flagelação dos quarteis pela guerrilha, que Amílcar Cabral tomou a genial iniciativa de convidar a Organização das Nações Unidas a visitar as Zonas libertadas da Guiné para certificar a situação, que aí prevalecia, “comparável a de um pais invadido por tropas estrangeiras”, procurando, por outro lado, os meios necessários para pôr fim ao domínio aéreo atrás indicado.

O sucesso da missão das Nações Unidas às zonas libertadas da Guiné durante a primeira semana de abril de 1972, deu legitimidade às eleições dos Deputados à Assembleia Nacional Popular que viria a proclamar, nas colinas de Boé, a independência da Guiné-Bissau a 24 de setembro de 1973.

A posse pela guerrilha do PAIGC dos misseis terra-ar, Strela-2M portáteis de fabrico soviético, a partir de março 1973 – três meses após o assassinato de Amílcar Cabral – , pôs termo, definitivamente, ao controlo do espaço aéreo da Guiné-Bissau pelos portugueses: dois caças Fiat 91 são abatidos, o primeiro a 25 de março e o segundo a 28 do mesmo mês, prenunciando o fim da guerra.

O Sector da Saúde durante a luta

As infraestruturas

No princípio da luta armada, o verbo era “prestar os primeiros socorros”, com a qualidade possível, aos combatentes feridos nas frentes da guerra, por socorristas formados em tempo útil entre os jovens integrados nos “Bigrupos” da guerrilha e capazes de assumir, com responsabilidade, essas funções.

Com o surgimento das zonas libertadas e a presença de cirurgiões militares cubanos apareceram, sucessivamente, os Postos de Saude e os Hospitais de Campanha – estes com cirurgiões em permanência –, instituições avançadas na prestação dos primeiros cuidados de saúde, incluindo intervenções cirúrgicas, garantidos não só para os guerrilheiros como para todos aqueles que deles precisassem, entre os quais os alunos e professores das escolas e a população em geral.

Na rectaguarda, a rede de instituições de assistência médica e cirúrgica do PAIGC , era completada por dois hospitais, um em Kundara e outro em Boké, junto das fronteiras leste e sul  respectivamente, com a República da Guiné (Conakry); um Centro de Assistência médica aos feridos e outros doentes, em Ziguinchor no Senegal, junto da fronteira norte.

No Centro de Ziguinchor, além de médicos do PAIGC , apenas médicos de países ocidentais aí prestaram serviço – sempre voluntário –, na assistência aos feridos da frente norte da Guiné (Bissau).

De assinalar entre eles, a presença do Dr. Mário Moutinho de Pádua, português; dois médicos holandeses entre os quais a Dra. Tó Van Albada, e um traumatologista francês, Dr. Richard de quem não me lembro o apelido. Todos os pacientes cujos estados de saúde precisassem de cuidados mais diferenciados do que aqueles disponíveis no Centro, eram tratados no Hospital senegalês local ou transferidos para o Hospital Universitário Aristides Le-Dantec em Dakar, a capital do Senegal.

Junto da fronteira leste, em Kundara, o PAIGC dispunha de um pequeno hospital, montado em grandes barracões e tendas cobertas de lona, sob a orientação técnica de médicos da Alemanha de leste e da União Soviética. O médico cabo-verdiano Dr. Francisco Fragoso integrou a equipa técnica do Hospital de Kundara durante cerca de um ano, antes de abandonar o Partido.

É no Hospital de Boké, cidade da Guiné (Conakry) do mesmo nome, a cerca de 30 kms da fronteira sul da Guiné (Bissau), que o PAIGC dispunha da melhor instituição de assistência medica e cirúrgica de toda a sua rede. Construído em material pré-fabricado, à base de madeira e papel prensados, pela República Federativa da Jugoslávia, o Hospital de Boké dispunha de um bloco operatório, de laboratórios de análises clínicas e de radiologia, muito bem equipados, além de um grupo eletrogéneo próprio. Era dotado de uma equipa técnica jugoslava integrada por um cirurgião experimentado, uma instrumentista e técnicos de análises clínicas e de radiologia.

Nele também trabalhou uma equipa de profissionais de saúde do Partidoiii, com médicos e enfermeiros guineenses e cabo-verdianos formados na Bulgária, Portugal, União Soviética e outros países, alguns deles em transição para a pós-graduação em especialidades designadamente cirúrgicas em países socialistas ou na Suécia, para um deles. Durante o meu exercício de funções de Comissário político do Hospital de Boké entre 1970 e 1973, um Cirurgião cubano integrou o staff da instituição.

Além da prestação de cuidados de saúde, o Hospital de Boké desempenhou um papel fundamental na formação teórica e prática de enfermeiros e de auxiliares de enfermagem, alem de estágios pontuais de socorristas formados nos Hospitais de Campanha, nas zonas libertadas.

O seu abastecimento

O apoio logístico para o conjunto da rede de estruturas de saúde atrás indicada, dependia de Conakry, para as frentes sul e leste da Guiné, e de Ziguinchor para a frente norte. O “Depósito” principal de medicamentos, equipamentos e outros artigos necessários ao funcionamento dos postos de saúde e dos hospitais das diferentes categorias estava em Conakry, junto do Secretariado do PAIGC. O essencial era constituído de artigos doados, provenientes de governos dos países socialistas ou enviados por organizações e grupos de simpatizantes da nossa luta, nos países ocidentais, designadamente Bélgica, Estados Unidos da América, França, Holanda, Inglaterra e Suécia, entre outros.

Antes de assumir as funções de Comissário político do Hospital de Boké, procedi no referido Depósito de Conakry, à classificação e arrumação dos medicamentos e equipamentos aí armazenados, para uma melhor gestão dos mesmos e sua distribuição mais racional entre as diferentes estruturas de saúde do Partido. Perante os meus comentários sobre a inutilidade de certos artigos porque de validade ultrapassada ou porque muitos deles estavam já encetados ou mesmo com conteúdos quase esgotados, designadamente no que se referia a frascos de fármacos líquidos ou a bisnagas de cremes e pomadas, Amílcar Cabral fez-me lembrar que muito do que ali estava era o resultado de um trabalho voluntário, por vezes penoso, de amigos e simpatizantes da luta de libertação das colónias portuguesas, junto de cidadãos de países ocidentais, e que, ainda que só por isso, devíamos apreciar e valorizar!

Os produtos para o apoio logístico em medicamentos para as frentes do norte da Guiné, eram na sua maioria comprados em Ziguinchor ou em Dakar. Os restantes artigos eram enviados para o Centro de Assistência pelo “Depósito” de Conakry, em camiões que levavam tempo incontável a percorrer estradas difíceis, muitas vezes intransitáveis durante as longas estações das chuvas.

O abastecimento dos postos de saúde e dos socorristas nos bigrupos, era feito em sacos – impermeáveis sempre que possível -, com conteúdos padronizados: antibióticos – essencialmente Penicilina e Estreptomicina –; colírios de nitrato de prata e pomadas oftálmicas; Álcool e Tintura de iodo; Pomadas para a pele; Ligaduras; Compressas de gaze; Pacotes de algodão hidrófilo; Seringas de plástico e agulhas; Sabão azul; Sal de cozinhaiv. Os sacos eram levados à cabeça durante horas de marcha, muitas vezes em terreno lamacento e escorregadio, em que era preciso também saber evitar minas, serpentes e “malilas”, lianas que facilmente se prendiam aos bolsos, fivelas, ou outros penduricalhos.

O abastecimento dos diversos hospitais era feito em obediência – tanto quanto possível – a requisições estabelecidas com a devida antecedência pelos seus responsáveis. É de assinalar que, por iniciativa de um jovem médico parisiense, Dr. Gil Tchernia – que trabalhara no Hospital Aristides Le-Dantec, em Dakar –, o Hospital de Boké passou a receber regularmente, sangue enviado de avião a partir de Paris, via Conakry até Boké, utilizado nas intervenções cirúrgicas de urgência.

O transporte dos feridos e dos outros doentes

No interior da Guiné, durante a guerra de libertação, todas as deslocações se faziam a pé exceptuando-se as raras oportunidades de viajar de canoa, sobretudo durante a noite, ou usar os pequenos carros todo terreno, os “Pentenkle” como lhes chamavam o povo, que apareceram nas regiões libertadas durante os últimos meses da guerra. A tentativa de utilização de burros para o transporte de cargas foi uma experiência que teve que ser abandonada muito cedo, por exigir cuidados difíceis de garantir.

Portanto a evacuação sanitária de feridos e de doentes graves era feita em macas rudimentares levadas ao ombro; na falta deles improvisava-se com macas feitas de ramos de árvore. Essa operação era difícil, nada confortável para os doentes e para os transportadores, sobretudo durante as chuvas. É nesse quadro que não se pode deixar de valorizar, e com vénia, a dedicação, o empenho e a solidariedade de todos quantos se prestaram a esse esforço, sem salários nem qualquer tipo de compensação!

O processo de assistência aos feridos implicava os primeiros cuidados, in loco, por socorristas e auxiliares de enfermagem nas frentes de combate ou nos postos de saúde das regiões libertadas e o transporte imediato para os hospitais de campanha onde eram internados, em barracas dispersas, feitas de troncos e ramos de arvores e “camas” do mesmo material. Tudo facilmente abandonável em caso de bombardeamento ou de incursão da tropa colonial. A roupa e outros objectos pessoais estavam sempre em mochilas prontas para uma retirada rápida de emergência.

As intervenções cirúrgicas, de urgência ou programadas – hérnias, hidrocelos e outras –, eram feitas a céu aberto, seguindo-se os protocolos exigidos normalmente, em termos de desinfecção cuidada das mãos dos operadores e ajudantes; máscaras, luvas e material esterilizado por ebulição, o único meio possível naquelas condições.

Intervenção cirúrgica no Hospital de Campanha Guerra Mendes na região de Tombali. Frente sul. Notar que tudo se passa a céu aberto. O cenário ao fundo é a copa de uma arvore frondosa inundada pela luz do sol.

A acção dos Hospitais de campanha permitiu salvar muitas vidas e filtrar as evacuações sanitárias até à fronteira de onde os pacientes eram transportados em ambulâncias para os Hospitais de rectaguarda. Essas instituições também participaram na formação de socorristas e auxiliares de enfermagem.

Os cursos de formação de socorristas e de auxiliares de enfermagem foram ocasiões extraordinárias de convívio amigável entre jovens provenientes de diversas comunidades e etnias. De lembrar que as relações entre jovens de etnia ou mesmo de classes sociais diferentes nem sempre foi harmoniosa. É paradigmática, entre os militantes do PAIGC, a seguinte frase da autoria de uma jovem reagindo a não se sabe que tipo de provocação: “Eh Camarada! A nós é ka djuntu dé! Luta son ki djuntanu!” que se poderia traduzir assim: “Olha que não somos iguais! É só por causa da luta que estamos juntos”!

Fotografia de família de participantes a um curso de formação no Hospital Guerra Mendes na Região de Tombali, em 1971/72. No centro o cirurgião cubano Dr. Lutcho Robles. Notar a numerosa presença feminina e a do bebé de uma delas.

Considerações finais

Imagine-se o tempo durante o qual um ferido ou um doente grave terá sido transportado em maca aos ombros, entre um posto de saúde situado nos confins da frente sul até ao posto fronteiriço de Kandjáfara e daí, em ambulância até ao hospital de Boké. Imagine-se o desconforto, o sofrimento de uns e de outros! Uns terão morrido pelo caminho; mas a maioria chegou ao Hospital.

O cirurgião Jugoslavo, Dr. Petrovitch, admirava-se sempre perante a resistência dos doentes que observava e operava e que poucos dias depois pareciam outros, perfeitamente recuperados.

É de se presumir que a selecção natural ligada às elevadas taxas de mortalidade infantil verificadas nos nossos países em desenvolvimento como era o caso da Guiné, possam explicar essa capacidade de aguentar, resistir ao sofrimento e às infeções. Só os melhores, os mais fortes sobreviviam e atingiam a idade adulta, prontos para tudo!

As guerras de libertação das colónias portuguesas poderiam ter sido evitadas, como sucedeu na esmagadora maioria dos países africanos que se tornaram independentes. Ter-se-ia evitado a memória de imagens insuportáveis e de acontecimentos revoltantes.

Esperemos que o Homem do século XXI aceite mudar a tempo o comportamento ganancioso e egoísta que nos está a levar à tragédia ambiental anunciada desde há anos.

Oxalá!

(Escrito em obediência à antiga ortografia da língua portuguesa)

Manuel Rodrigues Boal

27 de setembro de 2019


iPartido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde de cunho unitário, projectado com vista à Unidade dos dois Países, a decidir oportunamente pelos respectivos parlamentos. Dos movimentos de libertação da Guiné, o PAIGC foi o único que teve sucesso.

iiNos Armazéns do Povo das zonas libertadas da Guiné encontravam-se artigos de todo tipo e das mais diversas origens, incluindo cobertores, cigarros e latas de conservas idos da Suécia; tecidos e vestuário de países ocidentais, como EUA, Holanda e outros. As populações trocavam-nas com os produtos da sua lavoura, mormente arroz e animais domésticos.

iiiDrs. Gaudêncio de Sousa Carvalho (Xito), Paulo Medina, Venâncio Furtado, Fernando Cabral e Sabino Dias (guineenses), Arcelinda Barreto (cabo-verdiana); Enfermeiras Paula Fortes e Rosário de Melo Spencer (cabo-verdianas).

ivO envio sistemático de sal foi decidido quando se descobriu que muitos socorristas usavam a cinza de certos arbustos para “temperar” as refeições, já de si irregulares e pouco abundantes.

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