A presença da guerra colonial na memória da democracia portuguesa constituiu, durante muito tempo, algo próximo daquilo que a Michael Taussig chamou de “segredo público”, ou seja, “algo que é comummente conhecido, mas que não pode ser articulado” (Taussig, 1999: 6). Embora matizado por uma crescente visibilidade em anos recentes, o lugar residual ou fantasmático que a guerra colonial ocupa no senso comum permanece. O silenciamento da guerra colonial, além das razões que têm que ver com as particularidades do regime que impôs a guerra e do processo de democratização que se lhe seguiu, permanece suportado por uma autorrepresentação benevolente da experiência ultramarina portuguesa. Perante uma guerra tão longa, animada politicamente por um nexo colonial-racista, marcada por elevados níveis de frustração e exaustão dos combatentes, a memória condenatória da guerra deteve-se, quer no espectro de um confronto coletivo com massacres e crimes de guerra, quer no difícil gesto de assunção de quota individual na violência imposta, em particular, às populações civis e aos prisioneiros de guerra
Como é bem sabido, a elisão da violência colonial da experiência colonizadora portuguesa concerta-se seja com as narrativas heroicas dos descobrimentos, seja com a apologia de pendor luso-tropicalista que o Estado Novo recolheu de Gilberto Freyre. Pensar no colonialismo de forma crítica, implica, pois, inscrever na história de violência colonial o outrora épico da gesta ultramarina, considerando, uma genealogia que recupera, por exemplo, o protagonismo de Portugal no tráfico atlântico de negros escravizados, o genocídio dos povos indígenas das américas, as campanhas de “pacificação”, o estatuto do indigenato, o trabalho forçado e a guerra colonial. Nesse sentido, falar da guerra, tomando-a como parte da empresa colonial racista, implica um gesto paradigmático de recusa à ideia dominante sobre Portugal e sobre a epopeia aventurosa do seu povo.
Com efeito, a guerra foi o último estertor de um Império já anacrónico e um acontecimento que, fazendo parte dos mais vastos movimentos tectónicos que abalaram o Sul naqueles anos, foi também uma peça na influência da guerra fria em África. No solo africano, e não obstante as diferenças históricas entre os territórios, as guerras de libertação foram a marca fundacional da criação das novas nações. Os novos Estados receberiam dessas lutas a sua legitimidade direta e tinham de lidar com a necessidade de desmobilizar sectores da população e pensar o lugar daqueles que tinham combatido nas fileiras do exército colonizador. Saídos do conflito, esses países mergulhariam em sangrentas e duradouras guerras civis ou em sucessões de golpes de Estado. Como pôs em evidência o historiador João Paulo Borges Coelho, é necessário integrar também na análise dos conflitos civis pós-independência o papel que aí teve o “potencial de violência” que a militarização dos espaços coloniais durante a guerra havia originado (Coelho, 2003).
Excetuando o caso da Guiné, cuja independência foi unilateralmente proclamada pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) em setembro de 1973, as restantes antigas colónias portuguesas em África formalizaram a sua independência em 1975. As próprias histórias da luta foram diversas. Em Angola, três movimentos se bateram em armas contra o colonialismo: MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), UPA/FNLA (União dos Povos de Angola e Frente Nacional de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola). A UPA/FNLA ficaria ligada à grande revolta ocorrida em março de 1961, na qual morreram milhares de brancos e trabalhadores negros nas fazendas no norte de Angola, desencadeando uma feroz reação por parte dos colonos. Surgida em 1966, a UNITA fará também vários ataques contra os portugueses, até fazer um pacto de não agressão com o Exército português a troco de informações sobre o MPLA e a UPA/FNLA. Saído da luta de libertação e dos conflitos que se seguiram, será o MPLA quem – ainda que movendo uma longa guerra com a UNITA, terminada apenas em 2002 – assumirá a governação do país até hoje e marcará o ritmo das políticas de memorialização da luta, autoconferindo um papel destacado – e até há algum tempo, e em alguns produtos memoriais – praticamente único no combate pela independência.
No caso de Moçambique, foi essencialmente a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) quem, a partir de 1964, desencadearia ações armadas contra o colonialismo português. Após a independência, teria um papel determinante na condução do Estado, enfrentando depois uma prolongada guerra com a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), até 1992. João Paulo Borges Coelho fala da existência de um “script da libertação” no qual, não apenas se faz coincidir a luta anticolonial moderna com a história do FRELIMO, como se constrói um “discurso estratégico situado na interseção das relações de poder e das relações de saber” que se constitui justamente como a base da sua autoridade política (Coelho, 2013).
Na outra frente de guerra, na Guiné, o PAIGC conduziu um combate que visava, na verdade, a dupla libertação da Guiné e de Cabo Verde. Dirigido pela carismática figura de Amílcar Cabral, foi porventura a luta mais bem-sucedida, não só por ter consigo controlar parte substancial do território, mas também pela vasta simpatia internacional que concitou. Após 1980, com o golpe de Estado em que Nino Vieira depôs Luís Cabral, terminaria a relação umbilical entre a Guiné e Cabo Verde, determinada pela ideia de ter dois Estados e o mesmo partido dirigente. O facto da luta se ter travado nas matas da Guiné faz com que ela tenha ainda uma forte inscrição na memória popular, ainda que – como nos outros contextos – a disputa de lealdades e a incorporação de contingentes africanos nas tropas portuguesas tenha deixado marcas subterrâneas. Na Guiné, em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe (onde não houve luta armada mas que conquistou a independência no mesmo contexto, com o MLSTP a partilhar o mesmo idioma dos seus congéneres africanos), a introdução do multipartidarismo e a abertura ao mercados, concretizadas na década de 1990, levariam a questionamentos, em determinados momentos, das elites oriundas da luta, em articulação com disputas sobre a fixação da narrativa historiográfica.
A constituição de Estados-nação cujas independências se afirmaram contra a dominação colonial produzirá um contexto marcado pela tensão entre a herança colonial –com as suas fronteiras, hierarquias e modos de administração – e a celebração das possibilidades para novos começos. Por terem decorrido da resistência anticolonial, os desenhos de novos começos são realizados em estreita relação com a legitimidade daqueles que fizeram a guerra. Percebe-se assim que – sobretudo num primeiro momento histórico – o “guerrilheiro” tenha assumido, em regra, primazia como figura-tipo da libertação, em detrimento da figura do preso político, do militante clandestino, das retaguardas logísticas asseguradas pelas populações, para não falar das resistências protagonizadas por incontáveis mulheres e homens, ao longo dos tempos, nas diversas arenas da vida colonial.
O modo como as heranças coloniais se enredam com as expectativas exaltantes trazidas com as independências define, em grande medida, o quadro da rememoração dos símbolos e datas da luta de libertação. Por um lado, temos a legitimidade forte conferida aos movimentos que emergem na genealogia entre a luta de libertação e a independência. Fundados do capital simbólico de uma luta que viu cumprido o objetivo da libertação colonial, esses movimentos – sobretudo o PAIGC, a FRELIMO e o MPLA – projetaram um quadro de expectativas fortemente animado pelas alianças do internacionalismo tricontinental, do pan-africanismo anticolonial e do socialismo. Por outro, temos o modo como os países nascentes foram sendo diferentemente confrontados com quadros de adversidade marcados pela transição de uma economia colonial, pelas ditas guerras civis – no caso de Angola e Moçambique - que seguiram e que mobilizaram conflitos em muito alimentados pelas contendas da Guerra Fria e pelas alianças brancas na África Austral (Rodésia e África do Sul) (Meneses, Rosa e Martins, 2013).
A estes fatores acresce ainda o modo como os países pós-coloniais foram confrontados com a vitória política do neoliberalismo à escala global, e com os consequentes ditames das instituições internacionais. Na verdade, o “ajustamento estrutural” em África determinou em grande medida que, nos horizontes de memória, a democracia surgisse como sinónimo de privatizações, de crescente relevância das ONGs de uma redução do papel do Estado (Comaroff e Comaroff, 2012). Num quadro marcado por partidos únicos nascidos dos movimentos de libertação, por guerras e/ou instabilidade política, e pela permeabilidade das realidades nacionais e elites locais às lógicas do capitalismo internacional, nos países africanos as evocações celebratórias das lutas de libertação tanto congregam uma narrativa nacional anticolonial como suscitam leituras ora desencantadas ora visando destituir do poder aqueles que politicamente foram reclamando a legitimidade da luta que criou a nação.
Com efeito, os termos da memorialização da guerra encontram-se fortemente definidos, em cada contexto, pelo modo como se articularam com as narrativas de formação da nação, ou da sua ressignificação, no caso português (Cardina e Martins, 2018). Poderíamos dizer que há, de certo modo, um fechamento constitutivo dos termos do debate pelos diferentes guiões de nação que vingaram no pós-guerra. Ou seja, as “ruínas do império” (Stoler, 2008) foram desde cedo mobilizadas para narrativas e memórias nacionais debilmente comunicantes entre si. Cria-se assim um curioso paradoxo. Se por um lado a guerra foi um fenómeno “partilhado”, na medida em que envolveu articulações de variada ordem entre movimentos e nações, suscitando alianças transnacionais e embates experimentados contiguamente, ainda que de diferentes lados, por outro, as memórias de guerra foram convocadas para a escrita de cada nação ao jeito de ramificações divergentes.
* Bruno Sena Martins é Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). É Co-coordenador do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary Societies e Co-coordenador no Programa de extensão académica "O Ces vai à Escola". É docente no Programa de Doutoramento "Pós-colonialismos e cidadania global". Entre 2016 e 2019 desempenhou no CES as funções de Vice-presidente Conselho Científico do CES/UC e entre 2013 e 2016 foi Co-coordenador do Núcleo "Democracia, Cidadania e Direito" (DECIDe) do CES/UC. É Licenciado em antropologia e doutorado em sociologia. Os seus temas de interesse preferenciais são o corpo, a deficiência, os direitos humanos e o colonialismo. No âmbito da sua pesquisa realizou trabalho de campo em Portugal, na Índia e em Moçambique, mantendo ainda estreitas ligações com a academia Brasileira. Realizou dois filmes documentais de divulgação científica. Em 2006, foi galardoado com Prémio do Centro de Estudos Sociais para Jovens Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa. Em 2007, esteve como Research Fellow no Centre for Disability Studies (CDS), na School of Sociology and Social Policy da Universidade de Leeds (Nota biográfica publicada no site do CES).
* Miguel Cardina é investigador do Centro de Estudos Sociais. Foi Presidente do Conselho Científico do CES (2017-2019) e membro da coordenação do Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP) (2013-2106). Recebeu em 2016 a bolsa Starting Grant do European Research Council (ERC - Conselho Europeu para a Investigação) na qualidade de coordenador do projeto de investigação «CROME - Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times» (2017-2022). É autor ou co-autor de vários livros, capítulos e artigos sobre colonialismo, anticolonialismo e guerra colonial; história das ideologias políticas nas décadas de 1960 e 1970; e dinâmicas entre história e memória (Nota biográfica publicada no site do CES).
Este texto foi desenvolvido no âmbito do projeto “CROME – Memórias cruzadas, políticas do silêncio: as guerras coloniais e de libertação em tempos pós-coloniais”, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), através do Programa – Quadro Comunitário de Investigação e Inovação ‘Horizonte 2020’ da União Europeia, com a referência 715593"
Bibliografia:
Cardina, Miguel e Martins, Bruno Sena, org. (2018), As Voltas do Passado. A guerra colonial e as lutas de libertação. Lisboa: Tinta-da-China.
Coelho, João Paulo Borges (2003), “Da violência colonial ordenada à ordem pós-colonial violenta. Sobre um legado das guerras coloniais nas ex-colónias portuguesas”, Lusotopie 2003, 175-193.
Comaroff, Jean; Comaroff, John (2012), "History On Trial: Memory, evidence, and the forensic production of the Past", in Jean Comaroff; John Comaroff (orgs.), Theory from the South: Or, How Euro-America is Evolving Toward Africa. Boulder-London: Paradigm Publishers.
Meneses, Maria Paula; Rosa, Celso Braga; Martins, Bruno Sena (2017), "Colonial Wars, Colonial Alliances: The Alcora Exercise in the Context of Southern Africa", Journal of Southern African Studies, 43, 2, 397-410.
Stoler, Ann Laura (2008), "Imperial Debris: Reflections on ruins and ruination", Cultural Anthropology, n.º 23 (2), pp. 191-219.
Taussig, Michael (1999), Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford: Stanford University Press.