Entender o tecno-imperialismo

Sem sombra de dúvida, hoje a tecnologia digital é das principais ferramentas e aliadas dos imperialistas, sejam eles estados, empresas ou pessoas individuais, como Elon Musk, que através da tecnologia e de uma acumulação de riqueza e desigualdade económica sem precedentes, dispõem de um poder semelhante ao de estados, mas não se contentam com isso.

15 de fevereiro 2025 - 9:52
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J.D. Vance
J. D. Vance falou recentemente ao mundo sobre as perspetivas do governo americano para a IA. Fotografia de Gage Skidmore/Flickr

Existe um novo tipo de imperialismo, alimentado pela tecnologia digital das redes sociais, da inteligência artificial e, provavelmente num futuro próximo, pela massiva automação e robótica na indústria de armas. Neste ensaio proponho explicar a relação entre as novas tecnologias digitais e o imperialismo.

Podemos definir de forma geral o imperialismo como uma política de domínio expansionista, normalmente a partir de um Estado, com o objetivo de ter influência e controlo sobre política, recursos, territórios, culturas e economias de outras populações. Autoras como Rosa Luxemburgo ou Vladimir Lenine já vaticinaram que a necessidade de crescimento constante e infinito do capitalismo leva a que no final o capitalismo tenha de se expandir através do imperialismo. O imperialismo não é exclusivo ao sistema capitalista, mas é certamente uma consequência inevitável do capitalismo.

As novas tecnologias digitais são agora a maior e mais nova arma do capitalismo e da sua necessidade de expansão futura. Que futuro é esse? A resposta recente mais vezes avançada é a que regrediremos para uma forma de tecno-feudalismo, defendida por Yanis Varoufakis (mas não só). O que é o tecno-feudalismo? Resumidamente é a ideia de que os espaço digitais se tornaram de tal forma essenciais na vida contemporânea que se tornaram imprescindíveis, no entanto, estes estão sob controlo total de poucas pessoas, uma elite composta por pessoas como Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg entre poucos outros. Neste espaço digital já não existem condições para haver sequer um mercado livre de caráter capitalista. Estes espaços digitais são de tal forma manipulados pelos seus detentores que os mecanismo normais de comércio capitalista deixam de funcionar. Por exemplo, vimos nos últimos tempos mecanismos de preços dinâmicos a terem uso crescente no mercado, os quais adaptam continuamente e em tempo real o preço de um produto, conforme as condições de mercado, de forma a maximizar o lucro da empresa (não para garantir um serviço e preço mais justo para todas as partes). Um exemplo destes é a Uber, que conforme as condições de mercado estabelece o preço de cada viagem, se a procura for relativamente pouca então o preço baixa, se a procura for alta então o preço aumenta bastante (surge pricing, em inglês).

No entanto, com a recolha total de dados pessoais que invadem a privacidade das pessoas, começa a surgir um novo modelo de preços personalizados (personalized pricing, em inglês), isto é um preço diferente para cada pessoa diferente. Nem sequer é apenas baseado na oferta e procura geral, mas sim em dados individuais e privados processados por formas de “inteligência artificial”. Estas IAs identificam qual o preço máximo que aquela pessoa em particular, nas suas condições singulares atuais estará disposta ou capaz de pagar por determinado produto ou serviço, naquele momento. Usando dados e IA/machine learning o preço pode ser ajustado para qualquer pessoa em particular de forma a maximizar o lucro da empresa. Por exemplo, se a pessoa tem um salário de Y surge-lhe um preço Z, mas se tiver um preço de 2Y então terá o preço personalizado superior a Z. O mesmo acontecerá com a comida, se a última refeição da pessoa tiver sido à meia hora atrás, quando comprar comida o preço será Z, mas se tiver comido às várias horas atrás o preço será, mais uma vez, superior a Z. Se isto é difícil fazer num supermercado físico onde os preços estão etiquetados a papel, numa loja digital em que cada pessoa vê uma coisa diferente no seu ecrã pessoal isso é a coisa mais fácil do mundo. Um dos casos mais badalados será o da cadeia de retalho dos Estados Unidos da America, Kroger1, tendo chegado ao Senado americano, mas é uma prática cada vez mais comum entre as lojas digitais, como a Amazon2.

O problema não é a tecnologia em si, esta poderia ser usada para dar cuidados personalizados nas várias facetas da vida de uma pessoa ou para tentar criar um equilíbrio económico e/ou social entre as diversas classes sociais. No entanto, existe uma escolha deliberada dos donos destas empresas e plataformas em extrair mais recursos das classes trabalhadoras e explorar ainda mais os trabalhadores.

Aliás, a tecnologia digital é usada como uma forma de monitorização, controlo e exploração dos trabalhadores sem precedentes, controlando segundo a segundo o tempo que cada trabalhador leva em cada tarefa ou até o tempo passado na casa de banho, o exemplo mais óbvio é o da Amazon. Esta tecnologia seria alvo de absoluta inveja dos colonialistas e esclavagistas que surgiram após a época feudal da Europa.

Por outro lado, a tecnologia digital tende a minar a sociedade democrática, isto é, utiliza-se a tecnologia digital para retirar o poder à população e concentrá-lo numa elite económica. Vejamos, por exemplo, as criptomoedas, para além de muito serem muito frequentemente associadas a fraudes ou pagamentos ilícitos, ou criminais, são um mecanismo de concentração de riqueza e poder. De mecanismos monetários como o euro ou o dólar que são institucionais, centralizados e eventualmente (dependendo da vontade dos governos e de quem os elege) controlados3, passamos às criptomoedas. O sonho dos anarco-capitalistas, uma “moeda” sem controlo central de um qualquer governo ou instituição, unicamente seguindo as leis da oferta e da procura, isto tem impactos na vida real das pessoas, há quem lhe chame cripto-colonialismo.

Em São Salvador, país até recentemente de grande instabilidade política, além de ter prendido dezenas de milhares de pessoas sem um processo judicial justo, caminha para uma ditadura encabeçada por Nayib Bukele onde os direitos humanos são ignorados. Foi também o primeiro pais do mundo a adotar a famosa criptomoeda, Bitcoin, como moeda oficial e a fazer leis de atração de cripto-investidores e tecnologias semelhantes, chegando ao ponto de propor a construção de “cidades Bitcoin”, que eventualmente se interligariam com outros projetos semelhantes formando um “Estado em Rede” (tradução livre). Isto faz lembrar as ideias de Ayn Rand (uma das grandes inspirações do anarco-capitalismo), este é para já um projeto aparentemente falhado, ou pelo menos adiado, apesar de a Prospera City ainda resistir numa zona económica especial das Honduras com leis próprias. A ideia de tentar recriar Silicon Valley e as suas políticas em todos os locais é ela própria sintomática deste imperialismo de ideais neoliberais4.

A ideia de que viveríamos numa sociedade dominada pela informação é ainda mais antiga, uma Infocracia como lhe chamou o filosofo da informação Luciano Floridi, ou mais recentemente o ensaísta Byung-Chul Han. Contudo, onde a tecnologia digital das redes sociais, IA, bots e algorítmicas revelam o seu máximo potencial dominador é no ataque à psique. Estamos na era que Byung-Chul Han chama da psicopolítica. Antes desta infocracia a política de dominação ocupava-se principalmente em moldar e castigar os corpos da classe trabalhadora e outras minorias descriminadas, só de uma forma relativamente muito primitiva é que tentava dominar a mente5.

Mas com as atuais tecnologias digitais, tentar moldar a mente de um sujeito, torna-se algo personalizado. Mostrar o anúncio certo no momento certo para se obter uma venda, espalhar a desinformação por quem tem mais propensão a acreditar nela. Criar imagens que reforçam crenças falsas para dividir a classe trabalhadora ou classes discriminadas. Convencer qualquer pessoa que todos os seus males são pessoais e nenhum é de origem socioeconómica, que se não “vences-te na vida” foi porque não te esforças-te o suficiente e mesmo que o tenhas feito, então houve uma qualquer minoria que te roubou os louros do teu esforço. Infelizmente estando presos a ecrãs como muitos de nós somos obrigados a estar, o mundo virtual fornecido pelas gigantes tecnológicas e pelos tecno-oligarcas é modelado para favorecer os seus interesses em todos os domínios.

As tecnologias digitais são uma das principais fontes de domínio pela influência que tem na psique coletiva da população, hoje são elas que moldam o conhecimento, que moldam a disposição e as emoções das pessoas. São câmaras de eco de tal forma potentes que podem radicalizar uma imensidão de indivíduos num curto espaço de tempo, especialmente se forem particularmente suscetíveis ou pouco literatos. Talvez o exemplo mais óbvio seja a mudança profunda entre os republicanos dos Estados Unidos da América, que durante décadas discorreram uma narrativa anti-Rússia, contudo, em poucos anos passaram a apoiar Trump, um candidato assumidamente pró-Russia. Décadas de uma cultura revertida em meros instantes.

Estas crenças chegam a tornar-se em crenças profundas de pessoas que raramente podem testemunhar o contrário ou o contraditório e enraízam-se de tal forma que talvez nem mesmo o ver a verdade com os próprios olhos seja o suficiente para as convencer da falsidade em que acreditam.

A atual tecnologia digital está a ser usada para obter um domínio imperial sobre o pensamento das pessoas individuais e de camadas da população inteira.

Note-se que é fácil corresponder episódios históricos de desenvolvimento tecnológico a vagas imperialistas. O (infame) império português que escravizou milhões de pessoas, só foi possível devido ao avanço tecnológico na navegação e nas armas de fogo. Napoleão teve sucesso devido aos caminhos de ferro enquanto tecnologias de informação, tão primitivas quanto o telegrafo, facilitaram o controlo por parte de governos centrais de colónias afastadas ou manobras militares.

Tragicamente a esta forma de imperialismo aliam-se as formas mais tradicionais, o imperialismo de caráter militar como o exercido pela Rússia na Ucrânia, ou por Israel e os EUA em Gaza, e o imperialismo económico com a ameaça de uma guerra comercial de larga escala iniciada pelos EUA.

Esta malfada aliança é uma na qual a tecnologia digital começa por roubar recursos tecnológicos, dados pessoais, estatais, empresariais e sociais6 e utiliza-os para interferir politicamente sobre populações soberanas. Não existem dúvidas nesta aliança quando o vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, ameaça com a retirada dos EUA da NATO (OTAN) se a União Europeia tentar reagir a ataques algoritmos do ex-Twitter (a rede X). Ou quando o dono da Meta, Mark Zuckerberg, pede ao presidente dos Estados Unidos para pressionar politicamente os supostos aliados para desregular a regras que regem as suas plataformas no espaço europeu, para lucrar ainda mais e aumentar a sua influência. Enquanto Putin e Netanyahu continuam as suas práticas genocidas em busca de mais território, Trump junta-se à demanda com a ameaça da anexação do Canadá, da Gronelândia, do Panamá e até de Gaza, militarmente se for necessário, tudo em nome de território, recursos naturais, riqueza poder e domínio.

As redes sociais destas empresas providenciam a interferência política, a mentira e a manipulação que sustêm este clima político. Ainda recentemente a Meta, segundo os próprios por uma “falha técnica”, bloqueou uma série de contas de políticos progressistas. Este erro não é mais do que a provável ante-visão do que os reemergentes impérios querem.

É aterrorizante, mas estas tecnologias já são usadas para a guerra e para o genocídio, substituindo-se aos humanos na escolha de alvos e no potencial letal de novos armamentos. Israel é um caso particularmente claro, mas também na invasão russa. As gigantes tecnológicas como a Google ou a Microsoft já esfregam as mãos com o lucro que podem retirar deste imenso sofrimento humano.

Contudo nem sempre foi assim, inicialmente, antes de se terem apercebido do potencial de domínio que disponham, estas tecnologias permitiram aos povos lutar pelos seus direitos, movimentos como o Occupy Wall Street, Que se Lixe a Troika ou a Primavera Árabe são exemplos disso. Infelizmente os detentores destas plataformas aprenderam rapidamente a controlar os algoritmos, tal como as fábricas de trolls e bots a interferir e a impedir a possibilidade de que se formarem novos movimentos democráticos ou de origem popular.

Acredito que com as regras certas é possível recuperar estas tecnologias para o progresso social e material da população. Fazer delas um benefício para a sociedade e para as pessoas. Mas primeiro têm de ser refeitas com preceitos democráticos, socialistas e progressistas, não podem estar nas mãos nem do capital, nem de forças imperialistas.
O imperialismo não depende de nenhum sistema económico em particular e convive bem com demasiadas formas de regime, especialmente os totalitários. O que realmente o carateriza é necessidade de expansão e domínio sem olhar a meios e admitindo qualquer nível de violência, física, social ou psicológica. Sem sombra de dúvida, hoje a tecnologia digital é das principais ferramentas e aliadas dos imperialistas, sejam eles estados, empresas ou pessoas individuais, como Elon Musk, que através da tecnologia e de uma acumulação de riqueza e desigualdade económica sem precedentes, dispõem de um poder semelhante ao de estados, mas não se contentam com isso.

Combatamos este tecno-imperialismo com um socialismo tecnológico.

Nota: Este texto foi escrito com software livre.


 

1. https://www.rawstory.com/kroger-pricing-strategy/ (contém a carta da senadora Elizabeth Warren para o senado) ou https://www.grocerydive.com/news/grocery--krogers-analytics-and-personalized-pricing-keep-it-a-step-ahead-of-its-comp/534926/

2. Uma simples pesquisa por “Personalized Pricing” resultará em muito resultados bastante interessantes, a maioria do ponto de vista neo-liberal, mas dos quais é facílimo deduzir uma posição de esquerda.

3. Não se pode dizer que moedas como o dólar ou o euro o sejam, pois apesar de de institucionais e centrais (nomeadamente pela Reserva do Tesouro Norte Americana e pelo Banco central Europeu), os respectivos governos, tal como a maioria deles, inibiram-se de controlar as próprias moedas, dando mandatos tão pouco expressivos como o de apenas controlar a inflação no Banco Central Europeu) e/ou o desemprego (no caso da Reserva Federal Norte Americana).

4. Veja-se por exemplo o livro Silicon Valley Imperialism-Techno Fantasies and Frictions in Postsocialist Times de Erin McElroy.

5. Segundo as ideias de Michel Foucault, através da escola, prisões e outras instituições semelhantes. Mas apesar de relativamente primitivas eram ainda assim bastante eficazes, lentas mas eficazes o suficiente para permitir todos os regimes totalitários do século XX.

6. É bastante plausível que a grande maioria dos países da UE, os serviços públicos que prestam e as empresas privadas, se encontrem na mesma situação, visto que usam bastante e estão dependentes dos produtos da Microsoft e de outras companhias americanas.

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