A alegoria da caverna digital

porPedro Celestino

As redes socais assumem não o papel da aldeia global, mas o papel editorial de narrativas, mundivisões e propaganda. As responsabilidades do algoritmo tornam-se, no mínimo as mesmas responsabilidades de um jornal ou qualquer outro meio de comunicação social.

15 de fevereiro 2025 - 9:55
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Alegoria da Caverna
Imagem de Sam Harrelson/CC

A realidade é iminentemente subjectiva, cada um constrói o seu mundo pessoal através daquilo que vê ou ouve. Tal ideia é bastante conhecida, pelo menos desde a Grécia clássica com a Alegoria da Caverna de Platão ou, recentemente, com o filme Matrix das irmãs Lilly e Lana Wachowski. Se só vemos o mundo a preto e branco perdemos não só todos os tons de cinzento, como também todas as cores e torna-se difícil de acreditar que existe o vermelho, o azul ou o verde. Tal como os prisioneiros da caverna não acreditavam haver o céu ou os da Matrix existirem robôs. Contudo ambos sugeriam ser possível ultrapassar esse estado epistémico primitivo de equivaler a subjetividade (natural ou forçada) com toda a realidade e a verdade, assegurando que é possível alcançar verdades maiores acerca da realidade. Apesar de não haver nenhum comprimido azul como o que Neo tomou para ver a verdade, Platão, toda a história da filosofia, da ciência e outras como o jornalismo ou até a investigação policial sempre nos mostraram métodos para melhor alcançar a verdade.

Esta pequena introdução é pertinente para os dias de hoje, pois estamos permanentemente ligados ao mundo digital, especialmente às redes sociais e às IA generativas. Estas são das maiores criadoras dos nossos mundos pessoais, tal como as sobras o eram para os prisioneiros da cave platónica ou da Matrix, que só podiam observar as sombras ou a realidade virtual que lhes apresentavam. Nós estamos numa situação semelhante e, fora do alcance imediato dos nossos olhos, praticamente só vemos aquilo que nos é dado a ver pelos algoritmos das redes sociais e afins. O agente Smith (da Matrix) teria orgulho num mundo em que grande parte das nossas experiências e, mais importante, das nossas informações e emoções são manipuláveis por mãos invisíveis que adaptam e personalizam constantemente um algoritmo para criar uma mundivisão e uma narrativa para cada pessoa, algoritmo esse que favorece imensamente a concentração de riqueza, poder e das ideologias correspondentes.

No entanto, a Internet, a IA e até as redes sociais surgiram com a promessa de um mundo novo, em que se democratizaria a sabedoria e o debate público, se quebrariam as barreiras do espaço e entre os povos, permitindo fazer do mundo uma aldeia global. Esta ideia é realmente importante e útil para as pessoas. Nós gostamos de manter contacto e saber novidades de amigos e conhecidos. Tal como de ter acesso a comunidades e grupos onde podemos pôr em prática os nossos interesses pessoais que não poderiam ser satisfeitos numa comunidade local. Queremos saber uma variedade de novidades, músicas novas, espetáculos, eventos e até produtos. Tal como valorizamos muito a facilidade de comunicação entre pessoas tão diversas. Sem falar na imensidão de conhecimento verdadeiro que está disponível na Internet (mas que cada vez mais raramente é-nos apresentado pelos algoritmos). Além de poderem ser um mecanismo económico onde, especialmente pequenas empresas, podem ter a oportunidade de vingar num mercado global.

Nós não devemos ser obrigados a abdicar destas possibilidades, realmente importantes e beneficamente impactantes, para ter acesso a tudo isto, contudo, vemos diariamente que as principais redes sociais e meios digitais, estão armadilhadas. Hoje não são um local de conexão, florescimento cultural e autonomia, como a Internet já foi. As redes sociais e a Internet corporativa no geral tornaram-se um meio de assalto total à nossa privacidade1, do ataque ideológico para favorecer imensamente os mais ricos na luta de classes, dividindo todas as classes abaixo desta por via da xenofobia, machismo, racismo e outros “ismos” que se parecem com fascismo. Isto, pois as grandes plataformas são praticamente todas controladas por empresas gigantes cujo lucro privado é o principal objeto e utilizam algoritmos que não são neutrais, pelo contrário, são completamente partidários a escolher a informação que nos é dada e modelada a partir da invasão da nossa mais íntima privacidade.2

Assim as redes socais assumem não o papel da aldeia global, mas o papel editorial de narrativas, mundivisões e propaganda. As responsabilidades do algoritmo tornam-se, no mínimo as mesmas responsabilidades de um jornal ou qualquer outro meio de comunicação social (e como tal deveria estar submetido a regras semelhantes) a nível global3. Mas observamos pela associação entre as gigantes tecnológicas e o reemergente imperialismo, as redes sociais podem muito bem tornar-se na mais poderosa e eficiente máquina de propaganda alguma vez criada. Não nos iludamos, as redes sociais mais usadas são detidas por bilionários ou pelo capital anónimo e pretendem-nos levar de novo à “idade das cavernas” sem conhecimento dos factos, sem espírito crítico e com comportamentos tribais relativamente ao que devia ser bem pensado e discutido de forma democrática e civilizada.

Para a Internet, a IA e as redes sociais poderem cumprir as promessas que em tempos idos prometeu, como o da união de comunidades ou a democratização do conhecimento, têm de passar por um processo de transformação.

Hannah Arendt que viveu, testemunhou e pensou os piores momentos do fascismo e do nazismo do século XX, diz-nos que a vida pode facilmente ser separada em duas partes, a vida contemplativa e a vida ativa. A vida ativa, a qual ela relevava em A Condição Humana, é a possibilidade de cada pessoa ser um elemento participante na criação da sociedade democrática, a qual necessita de real participação e das condições para essa mesma participação, entre as quais, informação factual, real e relevante, sistemas de educação que elevem o pensamento crítico e a liberdade de expressão correspondente (delimitada apenas pelos limites da intolerância). Precisamos do debate sério conduzido em meios eficazes.

A Internet, a IA generativa e as redes sociais prometeram-nos a liberdade e a possibilidade de termos uma vida politicamente mais ativa. No entanto, as gigantes tecnológicas criaram um jogo de sombras, onde parecemos debater muito, mas o debate existente é o debate que nos é permitido, enviesado, manipulado sem sentido. Parecemos ter muita informação, mas temos quase nenhuns factos e menos ainda sabedoria. Parecemos estar no controlo, mas somos permanentemente manipulados pelos desígnios da mão invisível da plataforma. Alguém acredita mesmo que o debate político se faz, maioritariamente, em menos de duzentos caracteres ou num meme? Claro que não, mas a ilusão permanece. Byung-Chul Han no Vita Contemplativa alerta-nos, bem, para os perigos da hiperatividade de uma vida maioritariamente ativa descuidando a contemplação do mundo como uma parte essencial da vida, contudo, a actual hiperatividade é apenas desgaste artificial onde quase só interagimos com as sombras na caverna ou os algorítmos e bots da Internet.

Se no brilhante 1984 de George Orwell ele afirmava “O Partido dizia às pessoas para rejeitarem a evidência dos seus olhos e dos seus ouvidos. Este era o derradeiro e o mais essencial dos seus mandamentos.”4 Hoje a tecno-oligarquia e o imperialismo em que se alojam, já não precisam de mandar rejeitar a evidência, pois esta é servida no formato de um ecrã e fabricada e pelos interesses instalados5, dispensado a cumplicidade consciente e penosa a que as personagens do livro estavam sujeitas e constituía o primeiro passo para rejeitar o partido6. Mas se não for necessário rejeitar a evidência dos nossos olhos de onde virá essa evidencia. E ainda assim é muitas vezes complementada por um exército de bots que teima em (tentar) tornar a teoria da Internet morta numa realidade. Longe vai o tempo em que a evidência era primeiramente servida pela filosofia, pela ciência ou pelo jornalismo sério e degustada com pensamento crítico. Já não há tempo para isso, só para tentar sobreviver ao bombardeamento permanente de informações, falsas ou verdadeiras. As câmaras de eco não foram criadas com o digital7, mas tornaram-se ensurdecedoras nele, afinal esse tem sido o mantra tecnológico dos nossos tempos mais rápido, mais poderoso e mais lucrativo, não interessa quem fica pelo caminho.

No entanto, acredito ser possível alcançar os desígnios que o progresso tecnológico-digital prometeu-nos. Para tal temos de seguir as melhores normas éticas para o debate político e a partir daí modelar as regras que a Internet deve seguir. Não é a primeira vez que o fazemos enquanto sociedade, por exemplo, as normas do debate político de uma assembleia democrática ou as da comunicação social já passaram pelo mesmo. É imperativo que a Internet seja um local digital onde as normas éticas da democracia se aplicam. Talvez com desafios tecnológicos extras, como a garantia de certas formas de privacidade, garantir a interoperacionalidade entre plataformas, a demonstração das fontes e o raciocínio da IA, a demonstração das decisões e preferências por detrás das opções que nos são dadas numa busca num motor de pesquisa, ou como lidar com a imensidão de bots. Isto sem nunca esquecer a possibilidade de cada indivíduo poder tomar a iniciativa.

Espero que este pequeno ensaio contribua para o diagnóstico da situação política atual e para o início do debate público sobre como enfrentar os desafios impostos pela tecno-oligarquia contemporânea, pois certamente os mecanismos existentes à data não são suficientes.

Um mundo melhor é possível, lutemos por ele.

Nota: Escrito em programas livres (LibreOffice e Linux)


1. Consultar, por exemplo, A Era do Capitalismo da Vigilância de Shoshana Zuboff. Desde a publicação só piorou.

2. Aliás, é bastante questionável se poderá haver algoritmos neutrais, por outro lado, é perfeitamente plausível que consigamos construir algoritmos que beneficiem a sociedade, mesmo sem serem neutrais, mas seguido princípios éticos.

3. Meios de comunicação social e jornalístico que deviam, pelo menos, estar mais protegidos dos interesses económicos e afins.

4. Tradução livre.

5. Um pequeno exemplo é como os mapas da Google demonstram diferentes nomes conforme o país de visualização, independentemente do real nome reconhecido internacionalmente, um caso mais recente é o Golfo do México que aparece como Golfo da América no EUA, mas o caso repete-se por esse mundo fora, especialmente em regimes autoritários https://www.bbc.com/news/articles/c8634nwxd46o

6. Lembremo-nos das fogueiras de livros na Alemanha nazi ou da rescrita constante da História na União Soviética, com o objectivo de afastar qualquer evidência dos olhos desses povos e afastar da mente qualquer dúvida de que o mundo era do que lhes diziam ser.

7. Confrontar, por exemplo, com o Nexus de Yuval Noah Harari.

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