Em Gaza, até o direito à sobrevivência foi eliminado

Em entrevista sobre o massacre em curso na Faixa de Gaza, Marisa Matias critica a "posição envergonhada" do Governo, as declarações de Marcelo que "envergonharam o país" e o "duplo padrão" da posição da União Europeia no que respeita a israelitas e palestinianos.

12 de novembro 2023 - 12:24
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Marisa Matias.
Marisa Matias. Foto The Left/Flickr

A agressão israelita já matou milhares de pessoas na Faixa de Gaza, na sua maioria crianças e mulheres. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem apelado ao cessar fogo. Como explicas que a União Europeia e os governos dos maiores países europeus se recusem a acompanhar essa posição?
 
Nenhum país isolado pode ser uma força ocupante ao longo de tantos anos. Israel só ocupa este lugar de exceção porque os seus governos têm tido a conivência sistemática da comunidade internacional, em particular da Europa e dos Estados Unidos, e mais recentemente da União Europeia. Nas últimas semanas morreram mais crianças em Gaza do que em todos os conflitos dos últimos quatro anos. Em quatro semanas, caíram mais bombas em Gaza do que nos quase dois anos de guerra na Ucrânia. Estamos a assistir ao genocídio de um povo.

Tudo isto bastaria para que houvesse um apelo unânime de cessar fogo à semelhança do que foi feito por Guterres, mas isso não está a acontecer. A posição da presidente da Comissão Europeia é o melhor exemplo dessa posição insustentável. A Israel tudo é permitido. Existe um acordo de associação que exige o respeito pelos direitos humanos, mas o acordo mantém-se ao longo de todos estes anos de ocupação sem que o Estado de Israel tenha sequer sido advertido pelo seu incumprimento. A posição da Alemanha e a culpa do Holocausto jogam um papel importante aqui, mas esse argumento cai por terra quando se está a sacrificar uma população inteira. A União Europeia vê Israel como um parceiro, como a “democracia mais desenvolvida” da região. Creio que não podemos ter medo das palavras, para a União Europeia a Palestina e os palestinianos não têm o mesmo valor. Há um posicionamento permanente de duplo padrão. Israel continua a ser um dos parceiros favoritos para os negócios, em particular o do armamento, e isso vale mais do que muitas vidas palestinianas.
 
Um documento secreto do Governo israelita, divulgado pela comunicação social, prevê a expulsão de todos os palestinianos da Faixa de Gaza e a sua ocupação por Israel. É esse o objetivo do governo de extrema-direita liderado por Benjamin Netanyahu quando ataca repetidamente alvos civis, como hospitais e campos de refugiados?

A estratégia do governo israelita para isolar Gaza não é de hoje. Em 2005, Israel decidiu retirar os oito mil colonos que tinha na Faixa de Gaza para concentrar-se na Cisjordânia, mas também para ter em Gaza um território que poderia atacar sem nenhum tipo de bloqueio. É isso, aliás, que vem fazendo, sendo que agora atingiu níveis de limpeza étnica. Israel quer aquele território livre de palestinianos e está agora finalmente a pôr o plano em prática com o beneplácito da comunidade internacional. O objetivo é claramente o de tornar aquele território impossível para viver.

Já estive em Gaza duas vezes. É uma prisão a céu aberto, ali não se vive, sobrevive-se. E, agora, até o direito à sobrevivência foi eliminado. Milhares de pessoas mortas, mais de um milhão e meio de pessoas deslocadas de forma forçada, cortes no abastecimento de alimentos, água, medicamentos e bombardeamentos de escolas e hospitais. Não há uma réstia de humanidade.
 
O que deve ser feito para acabar com esta guerra? É possível uma solução duradoura para a paz no Médio Oriente?
 
Não haverá solução possível com um Estado ocupante. O fim da ocupação é a base para qualquer início de conversação. Na Cisjordânia, contra o direito internacional, o território palestiniano foi encolhendo e são hoje 700 mil colonos. Na Cisjordânia não governa o Hamas e as vítimas civis acumulam-se todos os anos. Os acordos de Oslo e a solução dos dois Estados tornaram-se obsoletos, a não ser que haja uma reviravolta no entendimento do direito internacional. O genocídio que está acontecer em Gaza não é apenas a destruição de um país e de um povo, é também a uma facada profunda no direito internacional, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Nações Unidas como organização. Os custos desta destruição são incomensuráveis.
 
Como avalias o posicionamento do Governo português e do Presidente da República?

As declarações do Presidente da República envergonharam o país, ignorando décadas de história e legitimando a punição coletiva de um povo. O governo português tem tido uma posição envergonhada. Este é momento de defender a liberdade do povo palestiniano e o seu direito à autodeterminação. Este é o momento de não hesitar, à semelhança de Guterres. Um primeiro passo fundamental seria o reconhecimento do Estado Palestiniano por parte do governo português. Nenhuma destas posições é contraditória com a condenação dos ataques perpetrados pelo Hamas em território israelita.

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