Já passou um mês desde o 7 de Outubro. As vidas de milhões de israelitas e palestinianos foram abaladas pelos massacres que o Hamas cometeu em Israel nesse dia e pelos massacres subsequentes e em curso que Israel está a cometer com o seu ataque em grande escala à Faixa de Gaza. Por vezes, pode ser difícil reconhecer um momento histórico enquanto o estamos a viver, mas desta vez é perfeitamente visível: o equilíbrio de poder mudou entre israelitas e palestinianos e vai mudar o curso dos acontecimentos daqui para a frente.
Um mês depois do início da guerra é uma boa altura para fazer um balanço do que sabemos que aconteceu aos israelitas, aos palestinianos e à esquerda neste país - e para fazer algumas avaliações cuidadosas sobre o que está para vir.
Massacres do Hamas em Israel
As nossas vidas aqui, enquanto israelitas, nunca mais serão as mesmas depois de 7 de outubro. Tanto se tem dito sobre as atrocidades que o Hamas cometeu no sul de Israel nesse terrível sábado, e tantas teorias da conspiração e notícias falsas têm proliferado, que vale a pena recordar alguns factos básicos. Estes factos foram corroborados por várias fontes e jornalistas independentes, incluindo membros das equipas do +972 e do Mekomit.
Numa operação meticulosa e sem precedentes, os militantes do Hamas saíram da Faixa de Gaza sitiada, superando o que era considerado um dos exércitos mais poderosos e sofisticados da região. Depois de destruírem partes da vedação que cercava Gaza, bem como de lançarem um ataque à Passagem de Erez, milhares de militantes tomaram as bases militares israelitas, mataram ou capturaram centenas de soldados e, em seguida, atacaram um festival de música e ocuparam vários kibutzim e povoações. Mataram cerca de 1300 pessoas, a maioria das quais civis.
A carnificina foi brutal. Centenas de festivaleiros desarmados foram mortos, incluindo alguns cidadãos palestinianos que se encontravam no local como socorristas, motoristas e trabalhadores. Famílias inteiras foram chacinadas nas suas casas, tendo alguns sobreviventes testemunhado o assassínio dos seus pais ou filhos. Em algumas comunidades, um em cada quatro residentes foi morto ou raptado. Os trabalhadores agrícolas tailandeses e nepaleses, bem como os cuidadores filipinos, também foram visados, tendo os militantes do Hamas disparado contra eles e, pelo menos num caso, lançado granadas contra uma barraca onde estavam escondidos.
Cerca de 240 soldados e civis de todas as idades, entre os 9 meses e os mais de 80 anos, foram raptados para Gaza, e a maior parte deles continua a ser mantida como refém, sem qualquer ligação ao mundo exterior e sem que as suas famílias façam ideia do seu estado. Durante todo este tempo, o Hamas continuou a disparar indiscriminadamente milhares de rockets de Gaza para as cidades e vilas israelitas.
Estes crimes de guerra, embora não sejam desprovidos de contexto, são totalmente injustificáveis. Abalaram muitos de nós, incluindo eu próprio, até ao nosso âmago. A falsa noção de que os israelitas podem viver em segurança enquanto os palestinianos são mortos rotineiramente ao abrigo de um sistema brutal de ocupação, cerco e apartheid - uma noção que o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu defendeu e incutiu em nós durante os seus longos anos no poder - desmoronou-se.
Este sentimento foi exacerbado pelos ventos da guerra regional e pelos ataques do Hezbollah contra soldados e civis israelitas no norte de Israel, aos quais Israel respondeu com a sua própria artilharia e ataques de drones no Líbano, matando combatentes e civis. Esta frente adicional aprofundou o nosso medo existencial e a sensação de que nós, israelitas e palestinianos, não passamos de peões em lutas regionais e globais mais vastas (e não é a primeira vez).
O colapso do nosso sentimento de segurança veio de mãos dadas com a constatação de que todo o Estado israelita não passa, de facto, de um holograma. O exército, os serviços de salvamento, os serviços de assistência social, entre outros, têm sido todos disfuncionais. Isto deixou os sobreviventes israelitas, os deslocados internos e as famílias dos reféns sem ninguém a quem recorrer, pressionando a sociedade civil a intervir para preencher o vazio onde o governo deveria ter estado. Anos de corrupção política deixaram-nos com uma casca vazia de um Estado e sem qualquer liderança que se veja. Para os israelitas, independentemente da forma como sairmos do outro lado da guerra, queremos garantir que nunca mais aconteça algo como o 7 de Outubro.
Os massacres de Israel em Gaza
Enquanto fracassava em todas as outras frentes, e antes mesmo de recuperar o controlo de todas as áreas ocupadas pelo Hamas no sul, a 7 de outubro, o exército israelita começou imediatamente a fazer o que melhor sabe fazer: massacrar Gaza. O justificado pesar, a dor, o choque e a raiva traduziram-se em mais um ataque militar injustificável e numa campanha de punição coletiva contra os indefesos 2,3 milhões de habitantes da maior prisão a céu aberto do mundo - o pior que alguma vez vimos.
A par dos primeiros ataques aéreos, Israel cortou o fornecimento de eletricidade, água e combustível a toda a população palestiniana de Gaza, transformando uma crise humanitária já existente numa catástrofe total. Depois vieram as ordens do exército para evacuar metade da população - cerca de 1 milhão de pessoas - do norte da Faixa para o sul, para além de uma segunda evacuação do leste para o oeste.
Os implacáveis bombardeamentos aéreos, tanto no Norte como no supostamente "seguro" Sul, já mataram mais de 10.000 palestinianos em apenas um mês - de longe a taxa mais elevada de mortes que este conflito alguma vez registou. A maioria destes são civis, entre os quais mais de 4.000 crianças. Centenas de famílias foram dizimadas, incluindo as de dois antigos colaboradores do +972 - um dos quais foi morto e outro que sobreviveu mas perdeu cinco membros da sua família. Um dos nossos colegas de "We Beyond the Fence", um projeto dedicado a partilhar histórias palestinianas de Gaza com israelitas e com o mundo, perdeu 20 membros da família.
Isto sem contar com as centenas ou talvez milhares de corpos, vivos ou mortos, enterrados sob os escombros, que ninguém consegue sequer começar a escavar. Os residentes palestinianos descrevem o fedor da morte a tomar conta do que resta de alguns bairros destruídos. Enquanto nós, israelitas, temos sirenes de rockets, interceptores Iron Dome e abrigos, o povo de Gaza não tem nada disso, nem qualquer forma de se proteger contra a chuva de bombas lançadas em todas as partes do enclave sitiado.
Segundo a ONU, mais de 45% das casas da Faixa de Gaza foram destruídas ou gravemente danificadas pelos ataques de Israel. Os hospitais estão a ficar sem materiais e os médicos estão a realizar operações críticas sem anestesia e utilizando apenas lanternas de telemóvel para ver. Centenas de milhares de pessoas não têm acesso seguro a água potável. Desde o início da invasão terrestre do exército, em finais de outubro, Israel impõe de vez em quando cortes de telefone e de Internet, impedindo que os feridos peçam ajuda, que as pessoas vejam como estão os seus entes queridos, que os paramédicos localizem os feridos ou que os jornalistas relatem o que se passa no terreno.
Até agora, os governos ocidentais têm dado carta branca a Israel para cometer estas atrocidades, demonstrando uma duplicidade de critérios entre o valor das vidas israelitas e das vidas palestinianas - o que, em parte, foi o que nos conduziu a esta situação. Não vemos qualquer remorso pelo papel que estes intervenientes têm desempenhado no silenciamento e marginalização dos palestinianos e dos seus aliados ao longo dos anos, e no encerramento de todas as vias diplomáticas e não violentas para a sua libertação - desde os boicotes, desinvestimento e sanções (BDS) até ao apelo à intervenção do Conselho de Segurança da ONU.
Enquanto as notícias e as imagens da destruição e da morte estão à vista de todo o mundo, o público israelita vê e pensa muito pouco sobre o assunto. Os principais meios de comunicação social israelitas concentram-se exclusivamente nos massacres de 7 de outubro, e não nos que estão a acontecer agora em nosso nome. Em vez disso, continuamos a ouvir intermináveis competições de retórica genocida, com comentadores e políticos israelitas a discutir "arrasar" Gaza, bombardear Gaza, limpar Gaza etnicamente, combater "animais humanos", etc.
A versão mais oficial é que Israel está "apenas" a tentar derrubar o Hamas. Mas sabemos por experiência que não há solução militar para a ameaça que os israelitas veem no Hamas, e que décadas de tentativas israelitas de escolher uma liderança palestiniana "conveniente" falharam sempre. A única forma de impedir os palestinianos de se revoltarem contra os seus opressores é Israel acabar com essa opressão e com a negação dos seus direitos. É a justiça, a segurança e um futuro decente para todos nós, ou para nenhum de nós.
Expulsões na Cisjordânia, perseguições em Israel
A guerra que está a ser travada contra os palestinianos não se limita a Gaza. Na Cisjordânia ocupada, os colonos, os soldados e um número crescente de milícias conjuntas - onde ambos se tornam indistinguíveis - aumentaram significativamente a sua campanha de limpeza étnica na Área C, os 60% do território ocupado onde estão localizados os colonatos israelitas e onde o exército detém o controlo total. Pelo menos 15 comunidades palestinianas foram totalmente desalojadas no último mês, e muitas outras estão a sofrer ameaças ainda maiores, sem ninguém para as defender. Os colonos e os funcionários do governo estão a trabalhar para expandir o território diretamente controlado pelos colonatos, o que significaria expulsar ainda mais palestinianos que vivem nessas áreas.
De acordo com a ONU, pelo menos 155 palestinianos foram mortos por soldados ou colonos na Cisjordânia desde 7 de outubro. Os agricultores estão a ser impedidos de colher as suas azeitonas na época anual da colheita e, em alguns casos, têm mesmo de ver os colonos roubarem as azeitonas mesmo à sua frente. O exército israelita prendeu mais de 1000 palestinianos sob a alegação de ligações ao Hamas, e milhares de trabalhadores palestinianos de Gaza, que tinham autorização para trabalhar em Israel ou na Cisjordânia, foram colocados em campos de internamento em condições graves antes de serem deportados de volta para Gaza no final da semana passada.
Entretanto, em Israel e na Jerusalém Oriental ocupada, os palestinianos estão a ser perseguidos tanto pelas autoridades como pelo conjunto da população judaica. Centenas de cidadãos palestinianos e alguns judeus de esquerda foram presos ou detidos por longos períodos de tempo, suspensos ou despedidos dos seus empregos, afastados das universidades que frequentam como estudantes e professores e ameaçados com a revogação da sua cidadania. Muitas destas medidas foram tomadas simplesmente por causa de publicações nas redes sociais, mesmo aquelas que são totalmente inócuas, incluindo apelos trilingues ao fim da guerra, versos do Corão ou demonstrações de simpatia e pesar pela morte de crianças em Gaza.
Em Jerusalém, a polícia israelita está a mandar parar palestinianos aleatoriamente na rua para verificar se há "incitamento" nas suas redes sociais. A polícia também anunciou que vai proibir todos os protestos que apelem a um cessar-fogo - uma regra que até agora tem sido aplicada quase exclusivamente contra cidadãos palestinianos e que foi confirmada pelo Supremo Tribunal em resposta a uma petição. "Qualquer pessoa que se queira identificar com Gaza pode fazê-lo. Vou metê-la nos autocarros que vão para lá agora", declarou o chefe da polícia israelita, Kobi Shabtai.
Em várias cidades israelitas, os locais de trabalho que empregam cidadãos palestinianos fecharam completamente, ou disseram a esses trabalhadores para não se apresentarem ao trabalho, ou colocaram guardas especiais à volta dos locais de trabalho para "proteger" a comunidade judaica circundante. Multidões violentas de direita atacaram estudantes árabes em dois campus universitários e trabalhadores de várias empresas, bem como a casa do jornalista judeu ultraortodoxo de esquerda Israel Frey; apenas quatro das centenas de agressores nestes diferentes incidentes foram detidos. Entretanto, o Ministro da Segurança Nacional kahanista, Itamar Ben Gvir, tem distribuído milhares de espingardas automáticas a equipas de segurança civis recém-formadas em dezenas de cidades e colonatos, algumas das quais compostas por conhecidos extremistas de direita.
Tudo isto criou um sentimento de medo sem precedentes entre os cidadãos palestinianos de Israel, muitos dos quais falam agora deste período como "o novo regime militar", referindo-se ao sistema draconiano que lhes foi imposto de 1948 a 1966. Muitos desativaram ou deixaram de usar os seus perfis nas redes sociais, e muitos estão simplesmente a evitar ir para o trabalho ou andar pelas zonas de maioria judaica. A estes juntam-se alguns cidadãos palestinianos mortos no ataque do Hamas de 7 de outubro ou nas rajadas de rockets a partir de Gaza que se seguiram, enquanto outros ainda são mantidos em cativeiro pelo Hamas em Gaza.
Existem algumas iniciativas verdadeiramente inspiradoras de cidadãos judeus e palestinianos que trabalham em conjunto, que se protegem mutuamente, que assinam petições comuns ou que se voluntariam em conjunto para ajudar as vítimas - mas, infelizmente, estes são pequenos raios de luz numa tempestade que, de resto, é sombria.
Uma esquerda destroçada
Como se tudo o que está a acontecer à nossa volta não fosse suficientemente mau, assistimos também a um momento doloroso para a esquerda em Israel-Palestina, levando muitos à nossa volta a sentirem-se ainda mais desanimados e sem esperança. Como Noam Shuster escreveu recentemente no +972, estamos a ver as duas comunidades nacionais que nos rodeiam a recolherem-se nas suas conchas separadas, com narrativas que se afastam rapidamente sobre os acontecimentos do mês passado e com cada vez menos fé uma na outra. Isto está a deixar muito sozinhos aqueles de entre nós que estão empenhados em espaços partilhados, resistência partilhada e um futuro partilhado assente na igualdade. Trata-se, em muitos aspetos, de um microcosmo condensado das clivagens que também surgiram no seio da esquerda a nível global durante o último mês.
Muitos judeus israelitas que se consideram da esquerda local e global, e que têm sido opositores ferrenhos da ocupação e apoiantes dos direitos humanos e da igualdade, ficaram completamente chocados com a violência do ataque do Hamas. Não foi fácil engolir o facto de ter como alvo tantos civis, muitos dos quais eram ativistas empenhados contra o cerco a Gaza e o apartheid israelita em geral.
O choque inicial e compreensível - que eu também partilho - foi intensificado por um sentimento de desilusão face ao que sentiram como falta de solidariedade dos líderes, amigos e colegas palestinianos perante este horror. Tendências mais amplas, verdadeiramente preocupantes, de negação ou justificação dos massacres em certos círculos palestinianos e na esquerda global, levaram alguns a começar a exigir que os seus amigos condenassem o Hamas e declarassem o seu compromisso com o direito dos judeus a viverem nesta terra, como prova de solidariedade mútua e de aliança.
Ao mesmo tempo, alguns desses israelitas têm estado a justificar o ataque a Gaza. Muitos reconhecem que não existe uma solução militar a longo prazo e sublinham que não desejam fazer mal aos civis palestinianos, mas insistem que "não há outra alternativa senão derrubar aquele regime". Embora alguns possam ainda rejeitar os ataques dos colonos na Cisjordânia, não parecem preocupados com a perseguição de cidadãos palestinianos, que está a ser justificada com a mesma lógica contra antigos amigos e aliados.
Do lado palestiniano, muitos têm optado pelo silêncio total, em grande parte por receio de que qualquer declaração que façam possa e seja provavelmente usada contra eles. Qualquer manifestação de pesar pelos massacres de 7 de outubro é manipulada pelos israelitas para justificar os horrores que estão a provocar em Gaza, e qualquer sinal de preocupação com os habitantes de Gaza é interpretado por grande parte da maioria judaica, incluindo os patrões e a polícia, como traição e conivência com o inimigo.
Entre os palestinianos que se atrevem a fazer declarações públicas, alguns tentam seguir uma linha ténue entre o reconhecimento do direito de um povo ocupado a resistir com a força, mas centrando-se em alvos estatais ou militares, justificando assim a "primeira fase" do ataque de 7 de outubro, mas rejeitando os massacres de civis que se seguiram. Outros procuram formas de negar que os massacres ocorreram - por exemplo, agarrando-se a teorias da conspiração sobre o facto de o exército israelita ter efetivamente matado civis quando tentava salvá-los ou impedir o seu rapto (o que pode ter acontecido em alguns casos, mas em muito menor número do que se insinua) - ou justificam-nos dizendo que a descolonização é "complicada" e "feia" porque inverte a opressão brutal original que está a combater.
Os cidadãos palestinianos de Israel, por seu lado, também olham para alguns líderes, colegas e amigos judeus da esquerda com grande desilusão. Desde a incapacidade de estar ao lado do povo de Gaza, que enfrenta os crimes de guerra cometidos pelo nosso governo, até à incapacidade de defender aqueles que são perseguidos por um regime cada vez mais autoritário, os cidadãos palestinianos sentem-se abandonados e traídos por muitos aliados judeus que, até há um mês, protestavam veementemente nas ruas em nome da "democracia".
Estas tendências florescem em duas comunidades que se encontram envoltas em sofrimento, medo e ansiedade muito reais, ambas recorrendo a traumas colectivos do passado - o Holocausto e a Nakba - cujas memórias estão a ser reavivadas pela retórica genocida dos líderes do Hamas e do governo israelita - e, no caso palestiniano, por expulsões reais e pelo debate de planos para ainda mais deslocações. Escusado será dizer que, ao refugiarem-se no calor e na proteção do seu grupo nacional ou étnico, cada um dos lados reafirma involuntariamente os medos e as desilusões do outro, criando uma dinâmica destrutiva de escalada da desconfiança e do desespero.
Horizontes em perspetiva
Ainda não sabemos como é que esta guerra vai acabar. Os líderes israelitas prometem-nos uma campanha "muito longa" que pode demorar "meses" ou "anos". No entanto, com a opinião pública mundial a mudar perante a carnificina e a catástrofe humanitária em Gaza, e com a exigência interna israelita de libertação dos mais de 200 prisioneiros detidos pelo Hamas, a desconfiança em relação ao governo e a tolerância limitada em relação aos custos humanos e económicos da guerra, creio que o mais provável é assistirmos a um cessar-fogo dentro de algumas semanas.
Também é impossível avaliar o alcance da nova era que vai começar depois desta guerra. Não se sabe quem irá governar Gaza - o Hamas, a Autoridade Palestiniana, uma força internacional ou o próprio Israel. A dimensão dos trabalhos de reabilitação necessários em Gaza é inimaginável. Será também necessário reconstruir as comunidades israelitas destruídas ou evacuadas no sul e no norte.
Deixarei as discussões importantes sobre a liderança e a luta palestinianas, a dinâmica regional mais vasta e o papel das potências estrangeiras para uma análise futura, que publicaremos nas próximas semanas e meses no +972. Para já, gostaria de me concentrar na questão da política judaico-israelita.
Duas mudanças parecem-me muito claras nesta altura: o fim da era Netanyahu e o fim do discurso dominante da "gestão do conflito" na sociedade israelita, dando lugar a uma discussão pública renovada sobre o futuro das relações entre judeus e árabes.
Netanyahu está acabado. Sei que isto já foi dito muitas vezes e que este líder tem demonstrado uma capacidade de sobrevivência incrível, mas com o que aconteceu no último mês, já passámos esse ponto. Todas as sondagens realizadas desde 7 de outubro mostram que a grande maioria dos israelitas, incluindo uma maioria considerável no seio do seu partido Likud, acredita que ele é o culpado pela derrota militar de Israel às mãos do Hamas e que tem de sair. Alguns dos seus aliados nos meios de comunicação social e no governo já se estão a virar contra ele, preparando-se para o dia seguinte.
Esta é mais uma razão pela qual Netanyahu é tão perigoso neste momento, acreditando - e com razão, na situação atual - que, enquanto a guerra durar, ninguém se preocupará com o problema político da substituição de um primeiro-ministro. Ainda pode vir a descobrir que até os israelitas têm um limite e, antes ou depois de a guerra acabar, de uma forma ou de outra, será destituído.
Muito mais importante do que o próprio Netanyahu, porém, é a doutrina Netanyahu, que se tornou o quase consenso da política judaico-israelita. Esta doutrina defende que Israel derrotou os palestinianos, que estes já não são um problema a enfrentar, que podemos "gerir" o conflito em "lume brando" e que devemos concentrar a nossa atenção noutros assuntos.
Ao longo do seu reinado quase contínuo desde 2009, esta perceção conquistou os corações e as mentes dos israelitas, e a questão de "o que fazer com os palestinianos" - que costumava ser a principal linha divisória da política israelita - foi retirada da agenda quase por completo, contribuindo para a arrogância que levou o exército a baixar a guarda em torno de Gaza. No mês passado, o Hamas dizimou essa noção por muitos anos e talvez décadas.
Nas próximas eleições israelitas, independentemente do momento em que se realizem, é provável que assistamos a uma reorganização do mapa político, criando potencialmente três blocos distintos. É demasiado cedo para dizer qual será a força de cada um destes campos, mas aqui está o que poderão ser.
O primeiro é, naturalmente, a extrema-direita, que já tem vindo a ganhar força desde 2021 e que tentará capitalizar os recentes acontecimentos. Liderado por nomes como Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, a que se juntarão provavelmente alguns membros do Likud, este campo dirá que, independentemente da forma como esta guerra termine, ela não foi suficiente. Israel, argumentarão eles, precisa de uma solução definitiva baseada numa limpeza étnica em grande escala, porque, aos seus olhos, toda a terra nos pertence e não há lugar para o povo palestiniano ficar aqui como um coletivo.
Uma segunda abordagem, provavelmente liderada por Benny Gantz e Yair Lapid, centrar-se-á provavelmente em medidas unilaterais, tais como uma "segunda retirada" da Cisjordânia, a demolição dos colonatos a leste da barreira de separação, a anexação dos restantes e a fortificação dos muros que cercam os palestinianos na Cisjordânia e em Gaza com mais betão, mais tecnologia e mais soldados do que nunca. Parte desta abordagem pode também incluir a estratégia de "aparar a relva" - ou seja, campanhas militares periódicas e recorrentes - para impedir que os palestinianos desenvolvam capacidades armadas significativas.
O terceiro campo será provavelmente uma reconfiguração do que costumavam ser os Trabalhistas, o Meretz e partes do Yesh Atid, em que um papel-chave pode ser desempenhado pelo novo herói do centro-esquerda sionista: o antigo deputado do Meretz e general do exército Yair Golan, que passou o dia 7 de outubro como voluntário de uma unidade de comando de um homem só, entrando e saindo de arenas de combate com a sua arma e carro particular, resgatando sobreviventes sob fogo. Este campo irá provavelmente propor um regresso ao paradigma da separação de dois Estados, a alcançar através de negociações com a OLP. Poderá também tentar fazer avançar um discurso de coexistência dentro de Israel, promovendo diferentes formas de parceria árabe-judaica na vida civil.
Estes dois últimos campos serão encorajados pelos fortes sentimentos anti-colonos que têm vindo a crescer na opinião pública israelita, especialmente desde que os manifestantes anti-governamentais começaram a identificar, com razão, a ligação entre a reforma judicial da extrema-direita e as suas fontes ideológicas no movimento sionista religioso dos territórios ocupados. A rejeição dos pogroms de colonos, como o de Huwara em fevereiro passado, só tem aumentado, e muitos israelitas consideram que os atuais ataques de colonos na Cisjordânia estão a provocar uma terceira frente de guerra.
Além disso, o facto de se saber que o exército israelita tinha, nos últimos meses, deslocado forças da vedação de Gaza para proteger os colonos extremistas em postos remotos da Cisjordânia, o que pode ter preparado o caminho para o êxito da operação militar do Hamas em 7 de outubro, reforçou o ódio e o ressentimento contra estes colonos. Dito isto, o ódio dos israelitas contra os palestinianos aumentou muito mais, e a possibilidade remota de uma solução de um Estado ou de uma confederação ser aceite pelos israelitas diminuiu ainda mais.
Avançar para o desconhecido
Este é um período sombrio e difícil para todos nós que estamos empenhados em opormo-nos ao apartheid e em promover uma solução baseada na justiça e na igualdade para todos. Por um lado, as conquistas duramente obtidas ao longo de décadas de luta partilhada foram anuladas pelos massacres do Hamas e serão difíceis de recuperar. O nosso movimento está desorganizado e o desespero abunda. Milhares de vidas foram perdidas, outros milhares ainda podem morrer, e os traumas coletivos que carregamos intensificam-se a cada dia que passa.
Por outro lado, uma vez terminada a guerra, terá de ser feito um ajuste de contas no seio da sociedade israelita, o que poderá abrir novas oportunidades para aproveitarmos. Muito daquilo por que temos lutado tornar-se-á cada vez mais relevante, com mais pessoas a nível local e global dispostas a reconhecer que o sistema em que vivemos é injusto, insustentável e não oferece a nenhum de nós uma verdadeira segurança. Temos de redobrar o nosso empenho em promover um processo político pacífico, com o objetivo declarado de pôr fim ao cerco e à ocupação, reconhecer o direito de regresso dos refugiados palestinianos e encontrar soluções criativas para concretizar esse direito.
Mas a nova realidade vai exigir alguns realinhamentos. A par do nosso compromisso com a plena realização dos direitos de todos os palestinianos, o nosso movimento progressista e anti-apartheid terá de ser explícito quanto aos direitos colectivos dos judeus nesta terra e de assegurar que a sua segurança seja garantida em qualquer solução que seja encontrada. Teremos de nos confrontar com o Hamas e com o seu lugar nesta nova realidade, assegurando que não possa continuar a cometer tais ataques contra os israelitas, tal como insistimos na segurança dos palestinianos e na sua proteção contra a agressão militar e dos colonos israelitas. Sem isso, será impossível avançar.
Até lá, há dois apelos extremamente urgentes sobre os quais devemos centrar os nossos esforços neste momento: a libertação dos reféns civis e um cessar-fogo imediato. Agora.
Haggai Matar é um jornalista israelita premiado e ativista político, e é o diretor executivo da revista +972. Artigo publicado a 8 de novembro de 2023 na revista +972. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.