Ouçam os sobreviventes israelitas: Eles não querem vingança

Contra a opinião pública dominante, muitos sobreviventes dos massacres de 7 de outubro e familiares dos mortos ou raptados opõem-se à retaliação contra Gaza. Por Orly Noy.

26 de outubro 2023 - 15:04
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Familiares de uma jovem assassinada pelo Hamas num festival de música junto à Faixa de Gaza.

"Toda a gente fala de unidade. Malta, a unidade é muito bonita, mas no terreno há vingança, há crueldade... Teremos toda a nossa vida para chorar, e vamos chorar. Mas agora, o objetivo é só um: vingarmo-nos e sermos cruéis".

Estas foram as palavras do soldado israelita na reserva Guy Hochman - habitualmente um entertainer e influencer online - numa entrevista ao Channel 12 nos primeiros dias do ataque de Israel à Faixa de Gaza, na sequência dos massacres de 7 de outubro por militantes do Hamas. Em poucas palavras, Hochman captou o sentimento que parece ter-se instalado em Israel, desde a extrema-direita até muitos que se identificam como esquerdistas: a justificação da catástrofe que Israel está atualmente a causar a mais de 2 milhões de palestinianos em Gaza.

Alguns estão a explicar a sua justificação em termos de "derrotar o Hamas". Outros, como Hochman, estão a colocar a vingança acima de tudo. Por isso, é ainda mais notável que, perante o clima político prevalecente, cada vez mais israelitas que sobreviveram aos massacres, ou cujos entes queridos foram mortos ou raptados para Gaza, se manifestem e expressem uma oposição inequívoca à morte de palestinianos inocentes e digam não à vingança.

Num elogio fúnebre ao seu irmão Hayim, um ativista anti-ocupação que foi assassinado no Kibutz Holit, Noi Katsman apelou ao seu país para que "não utilize as nossas mortes e a nossa dor para causar a morte e a dor de outras pessoas ou de outras famílias. Exijo que paremos o círculo de dor e compreendamos que o único caminho a seguir é a liberdade e a igualdade de direitos. Paz, fraternidade e segurança para todos os seres humanos".

Ziv Stahl, diretor executivo da organização de defesa dos direitos humanos Yesh Din, e sobrevivente do massacre em Kfar Aza, também se manifestou fortemente contra o ataque de Israel a Gaza num artigo publicado no Haaretz. "Não tenho necessidade de vingança, nada devolverá aqueles que partiram", escreveu. "Os bombardeamentos indiscriminados em Gaza e a morte de civis não envolvidos nestes crimes horríveis não são solução".

Yotam Kipnis, cujo pai foi assassinado no ataque do Hamas, disse no seu discurso fúnebre: "Não escrevam o nome do meu pai num projétil [militar]. Ele não teria querido isso. Não digam: 'Deus vingará o seu sangue'. Digam: 'Que a sua memória seja uma bênção'".

Michal Halev, a mãe de Laor Abramov, que foi assassinado pelo Hamas, gritou num vídeo publicado no Facebook: "Peço ao mundo: parem todas as guerras, parem de matar pessoas, parem de matar bebés. A guerra não é a resposta. Não é com a guerra que se resolvem as coisas. Este país, Israel, está a passar por um horror... E eu sei que as mães em Gaza estão a passar por um horror... Em meu nome, não quero vingança".

Maoz Inon, cujos pais foram assassinados em 7 de outubro, escreveu na Al Jazeera: "Os meus pais eram pessoas de paz... A vingança não vai trazer os meus pais de volta à vida. Também não vai trazer de volta outros israelitas e palestinianos mortos. Vai fazer o contrário... Temos de quebrar o ciclo".

Quando um jornalista perguntou a Yonatan Ziegen, filho de Vivian Silver, o que é que a sua mãe - que se pensa ter sido raptada - pensaria do que Israel está a fazer agora em Gaza, ele respondeu: "Ela ficaria arrasada. Porque não se pode curar bebés mortos com mais bebés mortos. Precisamos de paz. Foi para isso que ela trabalhou toda a sua vida... Dor é dor".

E, num vídeo que se tornou viral, uma sobrevivente de 19 anos do massacre no Kibutz Be'eri proferiu um monólogo comovente sobre o abandono dos habitantes do sul por parte do governo, no qual apelou: "Devolver os reféns. Paz. Decência e justiça... Talvez alguns de vós achem difícil ouvir estas palavras. É difícil para mim falar. Mas com o que eu passei em Be'eri, vocês devem-me isso".

Nós devemos-lhes isso. Ouço-os e leio as suas palavras, e vergo-me perante a sua coragem. E penso na estranha insistência de tantos neste momento, incluindo os chamados esquerdistas, em medir o nosso grau de solidariedade, dor ou raiva de acordo com a nossa vontade de apoiar o fogo que o nosso exército está a fazer cair sobre Gaza.

O que é que vão dizer a este pai enlutado? A esse sobrevivente do massacre? Será que também lhes falta solidariedade? De onde vem a ousadia para determinar o que se passa no interior de cada um dos nossos corações e mentes destroçados?

Vejo as acusações contra aqueles que exigem o fim desta carnificina fútil, deste terrível e ameaçador crime de guerra em Gaza, e penso na frase proferida por Ben Kfir, membro do Fórum das Famílias em Luto, que ficou gravada na minha cabeça há anos, quando falou da futilidade da vingança: "Perdi a minha filha, não a minha razão".

Este homem, que perdeu a pessoa que lhe era mais querida, e muitos outros que agora se juntaram ao círculo do luto, compreendem o que tantos ainda hoje se recusam a compreender: que o caminho que nos é proposto, de mais sangue e mais "dissuasão", é exatamente o caminho que nos foi proposto tantas vezes antes, e que nos conduziu aos horrores a que hoje assistimos.

Para além da imoralidade de justificar as atrocidades que Israel está a cometer em Gaza, a expetativa de que, desta vez, o massacre em massa conduza a um resultado diferente de todas as campanhas militares anteriores - que não conseguiram mais do que aprofundar o desespero, o sofrimento e o ódio do lado palestiniano - é um terrível auto-engano cujo preço será pago novamente pelos residentes do sul.

Não digam que Israel está a fazer isso por eles. Israel abandonou o Sul num crime colossal e não pode redimir o seu crime com o sangue de inocentes em Gaza. Em vez de nos entregarmos a este desejo de vingança, ouçamos as famílias das vítimas.


Orly Noy é editora do portal Mekomit (link is external), ativista política e tradutora de poesia e prosa farsi. É presidente do conselho executivo do B'Tselem e ativista do partido político Balad. Artigo publicado em +972 Magazine (link is external). Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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