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Para os líderes israelitas, cada palestiniano tem um lugar no autocarro para Gaza

Do incitamento racista à repressão policial durante a guerra de Gaza, Israel está a castigar os cidadãos árabes pelo crime de pertença ao povo palestiniano. Artigo de Samah Salaime.
Checkpoint de Qalandia, entre Jerusalém e a Cisjordânia
Checkpoint de Qalandia, entre Jerusalém e a Cisjordânia. Foto de Atef Safadi/EPA

No último sábado à noite, o cenário que todos os cidadãos palestinianos de Israel temiam nas últimas três semanas começou a concretizar-se: uma multidão de centenas de israelitas judeus agressivos tentou invadir os dormitórios do Colégio Académico de Netanya, onde cerca de 50 estudantes árabes estavam encurralados, temendo pelas suas vidas. Durante algum tempo, a polícia israelita não interveio enquanto a multidão gritava "Morte aos árabes" e "Voltem para Gaza" e tentava forçar a entrada. Por fim, os estudantes foram resgatados com a ajuda de voluntários e sob proteção policial.

Após verem estas imagens, tenho a certeza de que todas as mães árabes que, como eu, têm um filho a estudar em instituições académicas israelitas, terão dificuldade em dormir à noite com medo de que o seu filho ou filha seja vítima de um linchamento.

Este incidente em Netanya não surgiu do nada; é uma consequência direta da atmosfera de repressão e perseguição política que se instalou em Israel desde os massacres do Hamas de 7 de outubro. Paralelamente ao ataque de Israel à sitiada Faixa de Gaza e à violência dos colonos e do exército que está a desalojar à força comunidades palestinianas em toda a Cisjordânia, Israel está a transformar os palestinianos dentro do Estado numa outra frente da sua guerra.

Ainda não foi derramado sangue, mas o ambiente já está cheio de intimidações e ameaças de violência com um objetivo claro: punir os cidadãos árabes pelo crime de pertença ao povo palestiniano.

A escalada das ameaças

Desde o início da guerra, as autoridades israelitas lançaram uma campanha maciça de detenções contra os cidadãos palestinianos que manifestam qualquer tipo de identificação com os seus irmãos de Gaza. Estudantes judeus de escolas e universidades foram alistados em exércitos cibernéticos para caçarem os culpados. O chefe da polícia, Kobi Shabtai, ameaçou mandar para Gaza qualquer cidadão palestiniano de Israel que saia à rua em protesto.

Figuras públicas proeminentes não foram poupadas a esta perseguição. O cantor e neurocientista palestiniano Dalal Abu Amneh e a atriz Maisa Abd Elhadi foram ambos detidos por causa de publicações nas redes sociais. Muitos outros que se atreveram a citar o Corão, um poema ou mesmo um conto de fadas sobre um tirano bíblico que encontrou a sua morte devido a atos maléficos - como o Dr. Jawad Atrash do Hospital Sha'are Zedek partilhou nas redes sociais - foram vítimas da campanha de intimidação.

A repressão está a ser liderada por deputados de direita do Knesset, que não perderam tempo a aproveitar a oportunidade oferecida pelo estado de emergência. Na semana passada, foi noticiado que o ministro da Justiça, Yariv Levin, e o ministro do Interior, Moshe Arbel, estão mesmo a explorar a possibilidade de avançar com legislação para revogar a cidadania ou o estatuto de residente de qualquer pessoa que "se envolva em terrorismo, apoie o terrorismo, incite ao terrorismo ou se identifique com um ato terrorista" - "terrorismo", claro, é um termo extremamente lato que pode ser utilizado como arma contra qualquer coisa que exprima, mesmo que remotamente, a palestinidade.

Em comunicado, o centro jurídico Adalah, sediado em Haifa, afirmou que os ministros estão a demonstrar "uma clara intenção de explorar cinicamente o atual estado de emergência nacional para enviar uma mensagem aos cidadãos palestinianos de que o seu estatuto e direitos estão condicionados à rejeição da sua própria identidade nacional e que enfrentam a ameaça de expulsão da sua pátria ancestral".

O Ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, agravou ainda mais a situação na segunda-feira à noite ao provocar publicamente Ahsan Kanaan, juiz do Tribunal de Haifa, pela sua decisão de libertar da prisão um ativista judeu-israelita de esquerda. "É assim que são os inimigos internos", escreveu Ben Gvir no X (antigo Twitter). Em poucas horas, o post foi amplamente divulgado em várias plataformas de redes sociais, e os ativistas de direita começaram a procurar o endereço do juiz. Alguns chegaram mesmo a telefonar para o confrontar fisicamente.

O auge da eficiência

Assistimos a uma atmosfera semelhante de violência e intimidação contra os cidadãos palestinianos de Israel durante os acontecimentos de maio de 2021. Nessa altura, dei por mim a ser alvo dessa violência depois de uma discussão televisiva com um jornalista israelita de direita, na qual tive a audácia de comparar as lágrimas de uma mãe enlutada em Gaza com as de uma mãe enlutada em Sderot. Posteriormente, recebi centenas de telefonemas e mensagens, que incluíam ameaças tão vivas como: "Vamos violar-te e atirar pedaços da tua carne aos peixes nas praias de Gaza". Quando apresentei queixa na polícia, deram-me um conselho gratuito: "Aprende a calar a boca quando há guerra".

Desta vez, tentei mesmo manter-me calada. Decidi concentrar-me nos meus pensamentos e sentimentos para digerir a magnitude da tragédia que nos aconteceu e chorar sozinha pelas vítimas deste conflito maldito, tanto judeus como palestinianos. Decidi apoiar aqueles que precisam de mim e ser solidária com aqueles que também querem uma paz verdadeira e estão cansados de mais uma guerra e do assassínio de homens, mulheres, crianças e idosos inocentes.

Era evidente logo à partida que o "sanguinómetro" não seria de todo equilibrado e que a sangria sobre os palestinianos atingiria um pico horroroso como nunca antes tínhamos visto. Mas há lugar no coração para as vítimas israelitas. É muito difícil suportar a ideia de uma menina judia de 3 anos raptada, assustada, algures no subsolo de Gaza, sem sequer saber que mais de 3.000 crianças palestinianas foram assassinadas mesmo por cima dela.

O chefe da polícia israelita sabe muito bem que a maioria dos cidadãos palestinianos de Israel se identifica com as vítimas inocentes de Gaza e tem a certeza de que esta guerra deixará uma ferida profunda nos seus corações. Sabe também que a sociedade árabe e os seus dirigentes se comportaram com uma responsabilidade e uma contenção exemplares desde o início da guerra, de modo a não pôr ninguém em perigo. Os eleitos, os membros do Knesset, os presidentes de câmara, os clérigos e os educadores estão a tentar acalmar a rua árabe, apelando aos pais, aos jovens e aos ativistas para que se protejam e se abstenham de quaisquer acções que possam ser interpretadas como hostis.

No entanto, nas últimas três semanas - e depois de um ano em que a sua inação permitiu o assassínio de cerca de 200 árabes através da violência armada e da criminalidade - a polícia israelita atingiu subitamente o auge da eficiência na sua capacidade de reprimir os cidadãos palestinianos. E é evidente que, mesmo que cada um de nós feche a boca, e mesmo que todos os 1,5 milhões de cidadãos palestinianos assinem uma declaração de fidelidade ao Estado, condenem veementemente as ações do Hamas, ou sejam mortos por mísseis do Hamas, isso não mudará nada.

Para Shabtai, Ben Gvir e Netanyahu, não importa que os médicos árabes estejam a tratar os israelitas feridos; que os psicólogos e assistentes sociais árabes estejam a ajudar a apoiar as vítimas da guerra; que os professores árabes continuem a educar para a paz, a tolerância e o amor; ou que os trabalhadores árabes continuem a construir, a remover o lixo e a cultivar a terra. Tudo isto é insignificante. No que lhes diz respeito, há um lugar reservado para todos nós nos autocarros para Gaza.


Samah Salaime é jornalista, escritora e ativista feminista, fundadora da ONG Arab Women in the Center - AWC, que promove o estatuto da mulher e combate a violência doméstica em várias cidades. Artigo publicado a 6 de novembro de 2023 no portal +972. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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