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Contratação coletiva e arbitragem na “Agenda do Trabalho Digno”

Nota introdutória
O direito de contratação coletiva encontra expressa consagração no nosso texto constitucional, perfilando‑se como um dos direitos fundamentais dos trabalhadores, competindo o respetivo exercício às associações sindicais, nos termos do art. 56.º, n.º 3, da CRP. A Constituição confia ao legislador a missão de garantir esse direito, cabendo portanto ao Estado uma função de promoção da contratação coletiva, a qual é vista como uma técnica privilegiada de composição de interesses coletivos. Surge, então, o magno problema: até quando vigora uma convenção coletiva? Como é que a lei regula o âmbito temporal dessa “lei negociada” que é a convenção coletiva de trabalho? Ora, como é sabido, durante muitos anos, até à aprovação do Código do Trabalho (CT) de 2003, a resposta da nossa lei era a de que a convenção coletiva se manteria indefinidamente em vigor, até ser substituída por um novo instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. Consagrava-se, portanto, o chamado “princípio da perenidade” ou “princípio da continuidade” do ordenamento coletivo laboral, que se credenciava na conveniência de prevenir vazios normativos. A lei tinha horror ao vácuo regulativo e, daí, a convenção coletiva só deixaria de vigorar se e quando surgisse uma nova convenção que ocupasse o seu lugar, substituindo-a.
No século XXI, com a aprovação do CT de 2003, primeiro, e do CT de 2009, depois, a solução para este problema mudou radicalmente. Hoje em dia, o art. 499.º do CT, relativo à vigência e renovação da convenção, perspetiva esta última como um “contrato-lei” que, embora tendo prazo de vigência, não se destina a caducar, mas sim a perdurar no tempo, renovando-se sucessivamente. Contudo, a lei permite a denúncia unilateral (isto é, a oposição à renovação) da convenção, ainda que a conceba como uma “denúncia construtiva”, que não se traduz propriamente num mecanismo extintivo da convenção, mas sim numa condição do desencadeamento do processo de revisão de uma convenção em vigor ─ por isso mesmo, aliás, a denúncia, comunicada por escrito à outra parte, carece de ser acompanhada de «proposta negocial global», como se lê no n.º 1 do art. 500.º do CT. Em todo o caso, havendo denúncia a convenção manter-se-á em regime de sobrevigência, durante um certo período temporal, previsto nos n.º 3 a 6 do art. 501.º do CT (um período destinado à negociação entre as partes, que, a traço grosso, perdurará, no mínimo, por 12 meses e, no máximo, por 18 meses). Decorrido esse período de sobrevigência sem que a negociação culmine em acordo, a convenção coletiva caducará, suscitando aquilo que Jorge Leite bem qualificou como “a angústia do dia seguinte”.
Em suma, após o CT de 2003, em lugar de perenidade, precariedade do ordenamento coletivo, em lugar da continuidade, descontinuidade. A sombra da caducidade tem, inequivocamente, enfraquecido a posição negocial dos trabalhadores nesta sede, sendo desde então reclamadas novas soluções. Talvez por isso, o nosso legislador veio a engendrar um novo paliativo, através da Lei n.º 93/2019, tendo criado uma nova modalidade de arbitragem nesta matéria, a “arbitragem para a suspensão do período de sobrevigência e mediação”, cujo regime jurídico consta do art. 501.º-A do CT. Trata-se de uma medida legislativa tendente a dilatar o período de sobrevigência da convenção, com a entrada em cena de um mediador que tentará ajudar a superar as dificuldades negociais sentidas pelas partes. Em qualquer caso, as partes continuam, aqui, a deter as rédeas do processo, pois o mediador apenas pode propor, não pode impor, apenas pode persuadir, não pode decidir. Daí que, se uma das partes estiver determinada a não chegar a acordo e a não rever a convenção, essa postura será inultrapassável e a convenção acabará mesmo por caducar, sem ser substituída por outro instrumento de regulamentação coletiva de trabalho. Um mero paliativo, portanto.
Entretanto, e a este propósito, vale a pena atentar no conteúdo da chamada “Agenda do Trabalho Digno”, na qual se preveem alterações bastante relevantes nesta matéria. As alterações propostas, se bem as lemos, consistem, no essencial, em dois aspetos: i) em conferir real obrigatoriedade à fundamentação da denúncia da convenção coletiva, passando a prever que essa fundamentação seja sindicada por uma entidade independente, isto é, por um tribunal arbitral, sendo que, caso esse tribunal conclua pela improcedência da fundamentação da denúncia, esta não produzirá efeitos (art. 500.º-A); ii) em atribuir a qualquer das partes (associações sindicais ou patronais), em determinadas circunstâncias, o direito de, durante o período de sobrevigência da convenção, requerer a arbitragem necessária, caso em que, se tal direito for exercido por alguma das partes, a convenção manter-se-á aplicável, em sobrevigência, até que seja proferida a competente decisão arbitral (art. 501.º-A, n.º 11 e 12).
Analisemos cada uma destas alterações, ainda que de modo sintético e algo perfunctório.
2. Contratação coletiva e arbitragem: um trunfo contra a “denúncia vazia”?
As alterações que vimos de enunciar são importantes e merecem ser assinaladas. Com efeito, e desde logo, é verdade que a necessidade de acompanhar a denúncia da convenção de fundamentação quanto a motivos de ordem económica, estrutural ou a desajustamentos do regime da convenção denunciada, já se encontrava prevista no nosso ordenamento, desde 2019, resultando de aditamento introduzido pela Lei n.º 93/2019. Mas esta era uma norma imperfecta, sem qualquer sanção, visto que a falta daquela fundamentação não afetava a validade e eficácia da denúncia. Agora, pelo contrário, esta obrigação é mesmo para ser levada a sério pela parte promotora da denúncia, deixando esta, portanto, de corresponder a um ato livre e discricionário do seu autor. Isto porque, nos termos do novo art. 500.º-A do CT: i) em caso de denúncia de convenção coletiva, a parte destinatária da denúncia pode requerer ao Presidente do Conselho Económico e Social arbitragem para apreciação da fundamentação invocada pela parte autora da denúncia; ii) o requerimento de arbitragem suspende os efeitos da denúncia, impedindo a convenção de entrar em regime de sobrevigência, nos termos do n.º 3 do artigo 501.º; iii) a declaração de improcedência da fundamentação da denúncia, pelo tribunal arbitral, determina que a mesma não produz efeitos.
Vale dizer, a convenção coletiva, ainda que tenha um prazo de vigência, está longe de ser livremente denunciável por iniciativa unilateral de qualquer das partes. Na verdade, para que essa denúncia produza efeitos, ela necessita de ser uma denúncia construtiva, isto é, ela carece de ser acompanhada de uma proposta negocial global, por parte da entidade denunciante. E, a mais disso, a denúncia carece de ser fundamentada, isto é, carece de se estribar em motivos de ordem económica, estrutural ou em desajustamentos do regime da convenção denunciada, os quais passaram a ser externamente sindicáveis, por uma entidade terceira e independente, entidade que pode, inclusive, neutralizar os efeitos da denúncia efetuada, se concluir pela improcedência dos fundamentos invocados.
Pelo exposto, a resiliência da convenção coletiva, no plano temporal, confirma-se, estando esta longe de corresponder a um qualquer contrato a prazo, que caduque automaticamente quando esse prazo expire. Pelo contrário, o sistema legal aponta para a renovação sucessiva da convenção, se a mesma não for denunciada ─ se nada for dito ou feito, a convenção renova-se e, portanto, mantém-se em vigor. E, mesmo havendo denúncia, esta só produz efeitos se for acompanhada de proposta negocial global e se for devidamente fundamentada, fundamentação esta que não corresponde (deixou de corresponder) a um mero “pró-forma”, antes pode ser contestada (através de requerimento de arbitragem, que suspende os efeitos da denúncia), pode ser sindicada e pode até ser neutralizada por um tribunal arbitral, caso este venha a declarar a improcedência da respetiva fundamentação.
3. Contratação coletiva e arbitragem necessária: um trunfo contra o vazio normativo?
Por outro lado, e talvez com maior importância regimental e prática, ao passo que, atualmente, o período de sobrevigência irá conduzir fatalmente, na falta de acordo entre as partes, à caducidade da convenção, a proposta apresentada introduz uma significativa alteração (dir-se-ia: uma alteração qualitativa) neste domínio, visto que atribui a qualquer das partes, máxime ao sindicato, o direito de, verificados determinados pressupostos, evitar a caducidade da convenção (rectius, evitar o vazio regulativo subsequente à caducidade), requerendo, para esse efeito, a arbitragem necessária. Ora, esta alteração não é de somenos. Vejamos.
A arbitragem necessária encontrava-se disciplinada no CT, nos arts. 510.º e 511.º, mas só era admitida caso se tivesse já verificado a caducidade de uma convenção coletiva e não fosse celebrada nova convenção nos 12 meses subsequentes. Só depois disso qualquer das partes poderia requerer a arbitragem, dispondo, para o efeito, de mais 12 meses. Ou seja, esta arbitragem surgia, cronologicamente, já bem depois de a convenção coletiva ter caducado, ao passo que a alteração normativa agora introduzida prevê que a arbitragem surja antes, durante o período de sobrevigência da convenção. O que, convenhamos, muda muito, muda quase tudo.
É claro que não se ignora a diferença entre uma convenção coletiva, outorgada pela associação sindical e expressão da autonomia coletiva dos sujeitos laborais, e uma decisão arbitral, proferida por três árbitros designados a partir de uma lista organizada pelo Conselho Económico e Social. A convenção coletiva é, por definição, melhor do que a decisão arbitral. Dir-se-ia que um mau acordo pode ser melhor do que uma boa decisão. Mas, por outro lado, uma decisão, boa ou má, será melhor do que a caducidade resultante da persistente e inultrapassável falta de acordo. A convenção coletiva detém, seguramente, a primazia, pois é através dela que os trabalhadores exercem o seu direito fundamental à contratação coletiva.
Mais: a arbitragem necessária constitui, sem dúvida, uma restrição ao direito de contratação coletiva, pois ela é determinada por via administrativa, através de despacho ministerial (do ministro responsável pela área laboral) e ela atribui a entidades estranhas aos sujeitos laborais (os árbitros) o poder decisório normativo ─ ela constitui, portanto, um ato de heteronomia, lá onde a Constituição da República aposta na autonomia coletiva. Ainda assim, a decisão arbitral surge aqui como um interessante sucedâneo da contratação coletiva, como um expediente apto a superar a falta de acordo, a evitar a caducidade da convenção e o vazio regulativo. De resto, a própria Organização Internacional do Trabalho não tem deixado de frisar que, a despeito do caráter voluntário da negociação coletiva, a arbitragem obrigatória/necessária, determinada por autoridades públicas, pode revelar-se aceitável e justificada, em ordem a resolver um impasse que persista depois de “negociações prolongadas e infrutuosas”.
Para as associações sindicais, em particular, esta solução permite, em muitos casos, afugentar o espectro da caducidade das convenções coletivas, com o inerente vazio regulativo. Com este enquadramento normativo, o sindicato sabe que, se não conseguir alcançar um acordo com a entidade ou associação empregadora, no sentido de rever a convenção coletiva (sobre)vigente, pelo menos sempre lhe restará a válvula de escape do recurso à arbitragem, continuando a convenção a aplicar-se até que seja proferida a decisão arbitral. E esta tomará o lugar da convenção revista, sem vazios normativos, sem a “angústia do dia seguinte” que tanto tem pressionado o movimento sindical, em sede negocial, desde 2003.
Em todo o caso, convém registar que esta possibilidade de remeter a questão para arbitragem necessária, evitando que a convenção coletiva caduque sem ser substituída por outro instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, depende da verificação de certos pressupostos. Com efeito, esta possibilidade de qualquer das partes requerer a arbitragem necessária só existe, nos termos na nova lei, caso a negociação não seja remetida para mediação, nos termos do disposto no n.º 4 do art. 501.º-A, ou, nas situações em que haja mediação, caso esta se conclua sem acordo quanto à revisão da convenção coletiva. O que, por seu turno, implica que tenha sido previamente requerida arbitragem para suspensão do período de sobrevigência da convenção, nos termos do n.º 1 do art. 501.º-A do CT. Esta arbitragem, que pode ser requerida por qualquer das partes ao presidente do Conselho Económico e Social, no período entre 90 e 60 dias antes do decurso do período de sobrevigência da convenção, tem por objeto a verificação da existência de probabilidade séria de as partes chegarem a acordo para a revisão parcial ou total da convenção coletiva, sendo que, caso o tribunal entenda que essa probabilidade séria existe, será então determinada a suspensão do período de sobrevigência daquela (por um prazo não superior a quatro meses) e remetida a negociação para mediação, a qual será assegurada pelo árbitro que presidiu ao tribunal arbitral.
Em qualquer caso, a lei concede agora a qualquer das partes a possibilidade de evitar o vazio normativo subsequente à caducidade da convenção sobrevigente – para o efeito, a parte em causa deverá, primeiro, requerer arbitragem para suspensão do período de sobrevigência e mediação e, depois, caso a suspensão não seja decretada e não haja lugar a mediação, ou caso a mesma seja decretada mas a mediação não resulte em acordo, requerer a arbitragem necessária, assim garantindo que a morte da convenção só ocorre após ser proferida a correspondente (e substitutiva) decisão arbitral. Sem vazios regulativos.
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Conclusão
Vale a pena pensar nestas inovadoras soluções. Soluções de compromisso e pragmáticas, sim, quiçá não as ideais, mas, crê-se, não irrazoáveis. No anterior regime jurídico desta matéria, a resiliência da convenção coletiva passava, apenas, pelo instituto da sobrevigência. Mas qualquer das partes, se assim o desejasse, podia, através da denúncia e da subsequente falta de acordo com a contraparte, acabar por matar a convenção, fazendo-a caducar, sem que esta deixasse sucessora. Agora, porém, com as alterações introduzidas pela “Agenda do Trabalho Digno”, as coisas vão mudar. A resiliência da convenção coletiva revela-se, desde logo, pela dificuldade em a denunciar, isto é, pela inadmissibilidade de denúncia da convenção sem razão bastante. E, sobretudo, verificados que sejam certos pressupostos, basta que uma das partes assim o deseje para que a convenção denunciada e em sobrevigência sobreviva – até que desapareça, sim, mas só quando surgir uma decisão arbitral para tomar o seu lugar.
O sistema permite, assim, que qualquer das partes ─ máxime a parte trabalhadora, até porque, convém recordar, ainda que, tal como para dançar o tango, sejam precisos dois para celebrar uma convenção, o direito de contratação coletiva é um direito fundamental dos trabalhadores, não dos empregadores ─ possa requerer a arbitragem necessária se, durante o período de sobrevigência, a negociação, com ou sem mediação, vier a fracassar. O legislador deu aqui um importante passo, para que, em rigor, a trunfo da arbitragem necessária possa ser sempre usado pelo sindicato em ordem a evitar a caducidade da convenção e o subsequente vazio normativo.
Vale dizer, com estas soluções, chegamos a um ponto em que a lei garante que, se essa for a vontade da associação sindical, a convenção coletiva será mantida em vigor (ou em sobrevigência) até ser substituída por outro instrumento de regulamentação coletiva (no caso, por uma decisão arbitral) ─ ora, era isso que, bem vistas as coisas, resultava do art. 11.º, n.º 5, da velha Lei dos Instrumentos de Regulamentação Coletiva, de 1979… É verdade que à época, no século XX, não era sequer conhecida a figura da arbitragem necessária. E isso, claro, faz diferença, no desenho global da regulação jurídica desta matéria. Uma diferença que não pode, decerto, ser subestimada. Mas que também não deve, cremos, ser sobrestimada. Afinal, a principal preocupação da lei, já naquele tempo, era a de evitar o vazio normativo, garantindo que a convenção só deixaria de vigorar se e quando fosse substituída por um novo instrumento de regulamentação coletiva. Ora, dir-se-á, com razão, que o novo regime legal não garante, por si só, esse resultado, mas também não deixa de ser verdade que, após as alterações introduzidas, o ordenamento confere hoje a qualquer das partes a faculdade de atingir tal resultado, nos moldes descritos, sem que a contraparte a tanto possa obstar, assim se evitando a supramencionada “angústia do dia seguinte”.
O futuro dirá se estas alterações regimentais terão ou não o condão de dinamizar a nossa contratação coletiva. A lei, realmente, aposta forte na arbitragem ─ seja a arbitragem para a apreciação dos fundamentos da denúncia de convenção coletiva, seja a arbitragem para a suspensão do período de sobrevigência, seja a arbitragem necessária. Veremos se os árbitros estarão à altura do importante papel que a lei lhes atribui e, quiçá, se a possibilidade (em certo sentido, a ameaça) de a questão ser remetida para arbitragem funcionará, de facto, como um incentivo, como meio de pressão psicológica sobre os sujeitos coletivos, no sentido de estes ultrapassarem os bloqueios negociais e lograrem, assim, aquilo que a nossa ordem jurídica mais deseja e mais valoriza: a celebração de uma convenção coletiva de trabalho.
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