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Contratação coletiva alargada aos trabalhadores em outsourcing, mas caducidade continua

O fim da caducidade unilateral das convenções foi também chumbado. As propostas do Bloco e do PCP, que estabeleciam que “a convenção coletiva mantém-se em vigor enquanto não for substituída por outro instrumento de regulamentação coletiva de trabalho”, tiveram o voto contra do PS e do PSD. Assim, mantém-se na lei um dos principais fatores de desequilíbrio das relações coletivas de trabalho, que funciona como verdadeiro instrumento de chantagem na negociação entre sindicatos e patrões. A manutenção desta norma é particularmente grave, não apenas pelo potencial de ausência de cobertura de trabalhadores pela contratação coletiva (só parcialmente colmatada por via das portarias de extensão), mas porque essa norma tem degradado do próprio conteúdo das convenções negociadas.
Chumbado o prolongamento até 2024 da moratória à caducidade que vigora até março
Para além de propor a revogação da possibilidade da caducidade unilateral, o Bloco ainda propôs o prolongamento da moratória à caducidade das convenções, que está em vigor até março de 2023. Em outubro de 2021, e durante a campanha, a ministra do trabalho chegou a manifestar a disponibilidade do governo para essa prorrogação, suspendendo o prazo de sobrevigência das convenções até março de 2024. Mas depois deixou cair a proposta na última versão da Agenda do Trabalho Digno. O Bloco propôs retomar a ideia de prolongar a moratória, mas a proposta foi chumbada por PS e PSD. O PS incluiu todavia uma norma de aplicação no tempo das novas regras sobre arbitragem que passam a ser aplicadas desde o momento em que termina a moratória presentemente em vigor, fazendo retroagir o efeito da lei agora aprovada ao dia 9 de março de 2023, para permitir o acionamento da arbitragem para avaliar os fundamentos da caducidade das convenções que estejam sob o efeito da moratória.
Trabalhadores em outsourcing passam a ter os mesmos direitos dos restantes
Foi aprovado um novo artigo, integrado na proposta original do governo, que traz para o Código do Trabalho uma inovação importante: “em caso de aquisição de serviços externos a entidade terceira para o desempenho de atividades correspondentes ao objeto social da empresa adquirente, o instrumento de regulamentação coletiva de trabalho vincula o beneficiário da atividade é aplicável ao prestador de serviço, quando lhe seja mais favorável”. Uma vez que uma das grandes vantagens da externalização, do recurso ao outsourcing, é poder ter trabalhadores com salários e condições de trabalho piores que aqueles que estariam abrangidos pelo acordo da empresa ou pela convenção coletiva, isto abre uma possibilidade real de acabar com essa vantagem para os patrões, nomeadamente em setores em que esta tem sido uma estratégia generalizada para comprimir custos e direitos. É o caso, por exemplo, de empresas de telecomunicações (Altice…), da banca, ou mesmo de setores como a medicina, com o recurso a tarefeiros que não são abrangidos pelas mesmas regras que os médicos que estão sob as regras da contratação coletiva do setor. Claro que a norma tem uma expressão que pode ser manipulada pelos patrões, quando diz que as atividades têm de ser "correspondentes ao objeto social da empresa”. Em todo o caso, acontece aqui o que sucedeu já no trabalho temporário (obrigação de aplicação das mesmas regras), e que esteve na origem da substituição de empresas de trabalho temporário por empresas prestadoras de serviços, precisamente para fugir à obrigação de os trabalhadores terem os mesmos direitos. Abre-se, também aqui, um campo interessante de disputa no campo da luta sindical e da exigência da fiscalização. O Bloco já tinha proposto este princípio em 2019, tendo sido então chumbado. Agora, a regra foi aprovada com os votos favoráveis do PS, Bloco e PCP.
Recibos verdes incluídos na contratação coletiva
Foi aprovada uma proposta do PS e do Governo que inclui os trabalhadores a recibo verde na contratação coletiva, sempre que tenham dependência económica (mais de 50% dos rendimentos para uma entidade contratante). Previu-se também que trabalhadores a recibo verde/independentes possam ser representados por associações sindicais e comissões de trabalhadores, aplicando-se-lhes as convenções coletivas já existentes no seu setor ou empresa. Aprovado com votos a favor do PS e BE, abstenção do PCP e votos contra da direita.
Arbitragem é alargada
Confrontado com a inegável situação de degradação da negociação coletiva, resultante da manutenção da possibilidade de os patrões fazerem caducar as convenções por decisão unilateral, o PS e o Governo avançaram com propostas para alargar os mecanismos de arbitragem. A arbitragem está prevista na lei desde 1976 (no Decreto-Lei N.º 164-A/76, de 28 de fevereiro, que “regulamenta as relações coletivas de trabalho”). No período pós-revolucionário, já se previa (art. 15.º daquele Decreto) que “a todo o tempo, as partes podem acordar em submeter a arbitragem nos termos que definirem (…) os conflitos coletivos que resultem da celebração ou revisão de uma convenção coletiva”, sendo a arbitragem feita “por três árbitros, um nomeado por cada uma das partes e o terceiro escolhido pelos árbitros de parte”. Além disso, o mesmo diploma de 1976 (art. 16.º) estabelecia a possibilidade da arbitragem obrigatória para empresas públicas ou nacionalizadas, por despacho do Ministério do Trabalho “nos conflitos coletivos inerentes à celebração ou revisão de uma convenção coletiva aplicável a empresas públicas ou nacionalizadas”. Nessa altura, o resultado das decisões arbitrais, que tinham o mesmo efeito jurídico da convenção coletiva, estavam todavia submetidas a um princípio: “não podem diminuir direitos ou garantias consagrados em convenções coletivas de trabalho anteriores”. Hoje, o tratamento mais favorável não se aplica ao conjunto de matérias da lei, apenas a algumas. Ou seja, pode haver decisões arbitrais melhores ou piores para os trabalhadores que as convenções que pretendem substituir.
Num cenário em que o Governo não retoma o princípio de uma convenção só poder ser substituída por outra convenção (ou seja, em que não acaba com a caducidade, como propôs Bloco e PCP), o PS propôs limitar essa caducidade através de dois mecanismos de arbitragem. Atualmente, a arbitragem é comum para fixar serviços mínimos e irrelevante no domínio das convenções coletivas.
Fundamentos da denúncia de convenção coletiva têm de ser apresentados e validados por tribunal arbitral
Uma primeira alteração é a que prevê que a denúncia da convenção coletiva deve ser “acompanhada de fundamentação quanto a motivos de ordem económica, estrutural ou a desajustamentos do regime da convenção denunciada” (n. 2 do art. 500º, na nova redação proposta pelo Governo). Elimina-se assim deste número a expressão “sem prejuízo da sua validade e eficácia”. Esta expressão, agora eliminada, esvaziava a obrigatoriedade da fundamentação, atribuindo-lhe os efeitos (fazer caducar a convenção) independentemente de aquela existir ou não. Além, desta mudança, e em conexão com ela, a fundamentação pode agora ser sindicada por um colégio de árbitros, sob requerimento da parte que a recebe (por norma, o sindicato). Trata-se da nova “arbitragem para apreciação da denúncia de convenção coletiva” (art. 500.º-A). Ou seja, em vez de a denúncia da convenção valer automaticamente, como hoje sucede, existe um filtro: a pedido do sindicato, um colégio de três árbitros (constituídos pelo mecanismo comum de um indicado por cada uma das partes e um árbitro-presidente sorteado) verifica se os fundamentos para fazer caducar aquela convenção e iniciar a negociação de outra (negociação que pode ter sucesso ou não) são ou não válidos. Se entender que os motivos da denúncia não são válidos, esse pedido de caducidade fica sem efeito, mantendo-se a convenção existente em vigor.
Arbitragem necessária passa a poder ser requerida a qualquer momento em que negociação falhe, sendo a convenção substituída por instrumento de regulamentação arbitral
Uma segunda proposta alarga o âmbito da “arbitragem necessária” (art. 510.º). Atualmente, esta arbitragem só pode ser requerida doze meses após a caducidade da convenção e tem uma pré-condição: a decisão prévia, pelo tribunal arbitral, de que “existe probabilidade séria de as partes chegarem a acordo” e que por isso o prazo da sobrevigência é suspenso. Ou seja, em casos em que a entidade patronal não queira chegar a acordo, tem todos os instrumentos para conseguir não chegar sequer a qualquer fase arbitral. Com a proposta do PS, a arbitragem necessária pode ser também requerida em qualquer situação por qualquer das partes, durante o período de sobrevigência. Isto é, “caso a negociação não seja remetida para mediação nos termos do disposto no n.º 4 ou nas situações em que haja mediação mas esta se conclua sem acordo quanto à revisão total ou parcial da convenção coletiva, qualquer das partes pode requerer imediatamente arbitragem necessária” (novo n.º no art. 501.º-A). Assim, a falta de acordo num processo negocial não tem inevitavelmente como consequência a caducidade da convenção, mas, se alguma das partes o requerer, uma decisão arbitral que substituirá e produzirá os mesmos efeitos da convenção coletiva. Mitiga-se assim um poder absoluto dos patrões, na medida em que já não está ao dispor deles impor, unilateralmente, que a uma convenção suceda um vazio. Em último caso, sucede-lhe um instrumento de regulamentação coletiva não negocial, arbitral.
Arbitragem: um instrumento para os sindicatos?
Estas medidas que alargam a arbitragem à apreciação dos fundamentos da caducidade e que permitem um recurso mais alargado à arbitragem necessária, que já existia mas não era utilizável, foram criticadas pela CIP. No entender dos patrões, elas “não só enfermam de inconstitucionalidade por claramente contenderem com o princípio da autonomia coletiva que o artigo 56.º da CRP consagra, como, também, são violadoras da Convenção n.º 98 da Organização Internacional do Trabalho”, sendo “fortemente potenciadoras do imobilismo ao nível da negociação coletiva” ao “tornar a utilização da arbitragem necessária como mecanismo impeditivo da caducidade” (Parecer da CIP à proposta).
Num contexto em que os patrões têm hoje todo o poder nas mãos para fazer caducar uma convenção e para fazer suceder-lhe um vazio, este mecanismo é inegavelmente uma limitação do poder patronal em favor dos sindicatos. Todavia, há que sublinhar que esta solução está longe de ser ideal, por dois motivos.
Primeiro, porque a resposta ao desequilíbrio hoje existente não é a arbitragem como substituto da negociação (esta devia acontecer em condições de equilíbrio que hoje não existem). Uma convenção coletiva exprime a autonomia coletiva dos sujeitos laborais, um instrumento de regulamentação resultante de arbitragem não.
Em segundo lugar, apesar de a incerteza sobre o resultado da arbitragem poder jogar contra os patrões, podendo até estimular a continuação das negociações, o seu resultado também é incerto para os trabalhadores, precisamente por não estar limitado pela impossibilidade de diminuir direitos e garantias que estivessem na convenção caducada.
Neste debate, o Bloco insistiu na sua proposta de princípio, tendo votado favoravelmente o alargamento dos mecanismos de arbitragem necessária (figura existente há décadas), por entendermos que dão mais algum poder aos sindicatos num contexto em que o desequilíbrio de fundo não foi revertido. E absteve-se na arbitragem para apreciação dos fundamentos da caducidade, por ter, sobre a matéria da caducidade, a proposta de eliminar a possibilidade de uma convenção caducar, só podendo ser substituída por outra.
Mantém-se possibilidade de escolha individual de convenção, que desincentiva a filiação em sindicatos
Uma norma polémica do Código tem sido a que permite a “escolha de convenção aplicável” (art. 497.º) por parte do trabalhador que não seja filiado em qualquer associação sindical. Esta possibilidade põe em causa o princípio da filiação, de acordo com o qual uma convenção coletiva se aplica aos trabalhadores filiados no sindicato e às entidades patronais filiadas na associação de empregadores que celebrou aquela convenção (caso não a tenha celebrado diretamente). Esta lógica de estímulo aos free-riders é, na realidade, uma norma anti-sindical, individualizando a escolha da convenção e fazendo com que o trabalhador não filiado possa beneficiar de uma das principais vantagens da filiação (a abrangência por uma convenção coletiva) sem ter de participar ou contribuir, do ponto de vista humano e material, para o sindicato que a celebra. O trabalhador filiado tem assim de ser abrangido pela convenção do seu sindicato; o não filiado escolhe a convenção que mais lhe convier, não tendo qualquer incentivo a filiar-se, transformando-se o direito à contratação coletiva não num direito coletivo, mas numa espécie de menu individual, em que os não filiados têm mais direitos que os filiados. Bloco e PCP propuseram a revogação deste artigo, mas a proposta teve a oposição do PS e do PSD (esta norma vem do Código de 2009). Manteve-se assim o princípio. PCP e Bloco votaram contra este artigo. A única alteração, aprovada pelo PS sozinho, acrescenta que “a escolha [da convenção] não poderá ocorrer se o trabalhador já se encontrar abrangido por portaria de extensão de convenção coletiva aplicável no mesmo âmbito do setor de atividade, profissional ou geográfico”.
Empresas com contratação coletiva têm prioridade na atribuição de apoios e fundos europeus
Foi acrescentado ao artigo sobre a “promoção da contratação coletiva” (art. 485.º) que o Estado privilegia “as empresas outorgantes de convenção coletiva celebrada e/ou revista, no quadro do acesso a apoios ou financiamentos públicos, incluindo fundos europeus sempre que pertinente, dos procedimentos de contratação pública e de incentivos de natureza fiscal”. Trata-se de uma medida criticada pela direita e pelos patrões, por discriminar, no acesso a fundos, empresas que não queiram ter contratação coletiva. Mas em boa verdade, apesar de dar um sinal na contratação pública em favor de empresas com contratação coletiva (o que não é mau), a norma tem um alcance indeterminado, nomeadamente pela inclusão da expressão “sempre que pertinente”, que dá grande margem ao governo para decidir quando é ou não pertinente a aplicação de tal critério. A direita votou contra, tal como o PCP. O Bloco absteve-se.
Recusada a reposição do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador, mas uso dos algoritmos fica salvaguardado
A prevalência do tratamento mais favorável (art. 3.º, sobre “relação entre fontes de regulação”) foi proposta pelo Bloco e pelo PCP, para instituir esse princípio na sua plenitude. Com os votos favoráveis de Bloco e PCP, foi chumbada pelo PS, PSD, Chega e IL. A reposição integral do princípio do tratamento mais favorável foi retomada noutros artigos (nomeadamente nos art.ºs 476.º, 478.º e 482.º), com as mesmas votações. Trata-se de uma divergência de princípio entre a esquerda e o PS, que converge com a posição da direita. Tal como permanece, a lei permite, salvo em certas matérias que são salvaguardadas, que as convenções coletivas e os contratos individuais disponham em sentido menos favorável para o trabalhador do que a lei geral. Neste âmbito, foi apenas aprovada proposta do Governo que inclui o “uso de algoritmos e inteligência artificial, nomeadamente no âmbito do trabalho nas plataformas digitais” no elenco de matérias protegidas pelo tratamento mais favorável (em 2021 tinham sido também incluídas neste elenco as normas sobre teletrabalho), não podendo estas ser afastadas por contratação coletiva. A proposta foi aprovada com votos a favor do PS e do Bloco, os votos contra da IL e a abstenção do PSD, do CH e do PCP.
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