Decidir é difícil. Tomar decisões em democracia, representando verdadeiramente as comunidades e as suas necessidades e prioridades é um desafio permanente. Mas as tremendas dificuldades que tal forma de governo implica não podem fazer-nos optar pela centralização das decisões e pela permanente desvalorização daquilo que deveria honrar e ser um pilar básico da democracia: a voz das pessoas.
Governar tendo como principal orientação a participação das pessoas e a sua possibilidade de avaliar permanentemente as decisões e os resultados das políticas nas suas vidas, não é uma opção; em democracia, é uma obrigação. Boa governação implica evitar a tentação populista de agradar a maiorias desinformadas e vítimas de mera propaganda. Significa colocar o interesse das pessoas acima de interesses corporativos e de elite. Implica colocar as pessoas no centro, nomeadamente as mais frágeis da sociedade, ouvir as suas aspirações e com elas dialogar, construir consensos.
Este não é o caso da governação de Rui Moreira. Ao longo dos últimos anos, a desvalorização da participação cidadã e a ignorância a que foram votadas as organizações que na cidade representam tal participação passou a ser regra com pouquíssimas excepções. O desaparecimento da figura do provedor do inquilino municipal e a extinção da provedoria da pessoa com deficiência são disso exemplos gritantes, no primeiro caso, para silenciar uma voz incómoda e no segundo por mero sectarismo político.
A criação de uma figura vaga, preponderantemente electrónica, como o provedor do munícipe - que apenas poderá, potencialmente, servir para apresentar solicitações, queixas/denúncias e reclamações -, substituindo figuras com capacidade capilar de ouvir e representar as populações é apenas uma das formas frequentemente utilizadas para calar a verdadeira voz das pessoas. Ao contrário, deve-se construir em conjunto e em co-responsabilidade as soluções que mais se adequam às necessidades de cada um e de cada uma. Tudo por uma governação participada, que não se preocupe apenas com queixas, denúncias ou reclamações, ou que actue apenas com base no que alguém pensa que são as necessidades das pessoas, dispensando olimpicamente, e tantas vezes de forma sobranceira, esse pilar básico da democracia.
Insiste-se no velho e fracassado modelo de pensamento que finge cinicamente acreditar que o crescimento económico é a prioridade para depois distribuir a riqueza (que invariavelmente se concentra no bolso dos mesmos de sempre), em detrimento do desenvolvimento local e social. Acompanha esta envenenada receita a ideia de uma suposta modernidade que se impõe contra tudo e contra todos, muitas vezes disfarçada de inclusão social, mas dominada pelos mesmos preconceitos sociais de sempre. Quando se substitui “Desenvolvimento Local” por “Crescimento Local” aumenta a pobreza urbana, acentuam-se desigualdades e, intencionalmente, empobrece-se uma parte substancial das populações. E não vale a pena esconder. É uma escolha. É uma estratégia que coloca os territórios, as instituições e as pessoas a competir por direitos em vez de cooperar para um projeto de cidade para toda a gente. É o novo-riquismo que despreza os pobres e sonha com cidades cosmopolitas, limpas de diferenças e onde até o grafiti tem horas marcadas e locais certos.
Para rumarmos noutra direcção, é crucial pensar em políticas públicas de combate à pobreza ao nível local. Mas será que os tão apregoados princípios da parceria e do trabalho em rede são postos em prática? Se o “social” só for chamado para remendar consequências, mas nunca para participar na planificação, só haverá disponibilidade para políticas sociais paliativas. Porque é que, por exemplo, os Planos Directores Municipais (PDM’s) não são orientados, de forma transversal, pelo objectivo do bem-estar colectivo? Porque é que o “social” continua a ser o parente pobre da planificação urbana de longo prazo, ao mesmo tempo que é esboçado, ali ao lado, numa qualquer rede paralela, sem verdadeiros poderes de decisão, um Plano de Desenvolvimento Social, como se tal fosse capaz de travar os desmandos de políticas que estruturalmente produzem e reproduzem a pobreza?
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Quando são ouvidas as populações? Como são envolvidas nesta construção que deveria ser colectiva? Que tipo de colectividades e gestão local de equipamentos é promovida? Que espaços de co-responsabilização se disponibilizam às pessoas, para além de pequenos e pontuais subsídios ou convites para programas pré-formatados que, ainda por cima, asfixiam financeiramente organizações mais pequenas mas representativas dos interesses de cidadãs e cidadãos?
E quando será que a famosa reabilitação urbana terá em consideração os interesses das populações locais, ao invés de apenas se basear em políticas de total gentrificação? Uma gentrificação que não é só económica, mas também cultural – aniquilação de hábitos e tradições locais em nome da possibilidade de atrair novos moradores / frequentadores mais interessantes do ponto de vista económico e do consumo.
E, porque falamos de mudanças estruturais, então seria bom podermos contar com os fundos estruturais comunitários que existem justamente para esse efeito. Como foram utilizados os instrumentos que nos disponibilizaram, nomeadamente a possibilidade de afectar pelo menos 20% do Fundo Social Europeu (entre 2014 e 2020) no combate à pobreza? Que cidade esboçou um plano local de combate à pobreza? Porque é que, quando se ensaiam esforços de desconcentrar os poderes de decisão, a tendência é para assistirmos a uma reprodução dessa concentração ao nível local e que se reflecte tanto, precisamente, na forma como tão dificilmente os recursos chegam às pessoas? Porque é que os padrões de desenvolvimento são pautados exclusivamente por orientações nacionais e europeias? A definição de uma estratégia de luta contra a pobreza implica uma mudança de paradigma.
A visão da actual União Europeia e do tipo de crescimento por ela imposta legitimam tendencialmente um discurso apologista de um “desenvolvimento” económico que por si só não resolve os problemas sociais. Faz-se crer que pela via do crescimento económico (não importando a que custos) se resolvem os restantes problemas da sociedade, sabendo-se que esse putativo crescimento não significa redução da pobreza. Os números do desemprego, os dados do sobreendividamento, da emigração, da pobreza e privação material, confirmam-nos, há demasiados anos, exactamente o contrário. E os 20% da população europeia que se encontra hoje em risco de pobreza deveriam ser mais do que um alerta.
Urge centrar as prioridades nos indivíduos - e não nos mercados financeiros e nos interesses de (poucos) privados. Estando conscientes - será que estamos? - de que a pobreza não é uma inevitabilidade e não se resolve com acções cosméticas de assistência social, só se pode defender um projecto político que acolha uma estratégia local de combate à pobreza e exclusão social, abordando a multidimensionalidade do fenómeno pela congregação articulada de diferentes estratégias específicas e transversais (na área do emprego, educação, cultura, formação, saúde, protecção social, habitação, entre outras).
A erradicação da pobreza, tal como é um desafio europeu e nacional, também é um desafio local. Se por um lado é difícil sem uma estratégia nacional que uma qualquer cidade se proponha a fazê-lo, por outro lado não só não é impossível, como é urgente que se coloque como principal objectivo do programa de governo da cidade do Porto. Uma cidade em que o Executivo de Rui Moreira há anos embandeira em arco um saldo de gestão que, se se aplicasse em políticas sociais e na compensação dos efeitos nefastos da especulação imobiliária e da monocultura do turismo, seria um exemplo do tanto que se pode fazer em prol das pessoas, dos seus direitos e das suas condições de vida.
Para isso é urgente privilegiar a voz das pessoas e não calá-las ou enganá-las com medidas de charme a que, em boa verdade, nem sequer têm acesso ou, no limite, qualquer interesse. Boa governação, precisa-se. Urgentemente.