Angelina Vidal, matriarca de um feminismo anticapitalista em Portugal

por

Luís Carvalho

Antes das feministas republicanas, já Angelina Vidal praticava um feminismo socialmente mais avançado. Hoje é difícil de imaginar como era inusitado uma mulher atrever-se naquele tempo a ter uma intervenção política. Ainda por cima na oposição ao poder político estabelecido e à classe dominante.

10 de janeiro 2025 - 9:52
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Angelina Vidal.
Angelina Vidal.

Segundo as narrativas mais correntes, até parece que o feminismo em Portugal nasceu com a «Liga Republicana das Mulheres Portuguesas» (fundada em 1908). E com a geração de intelectuais que nela se salientaram. [1]

Mas é uma luta mais antiga, que se cruza com a história do velho Partido Socialista Português, fundado há já 150 anos atrás – em 10 de janeiro de 1875.

É preciso falar de uma apoiante e aliada desse partido, chamada Angelina Vidal.

A Voz do Operário

Em 1880, já ela proferia uma conferência sobre “A mulher e a atualidade, perante o critério filosófico”.

Tal conferência teve lugar no sindicato dos operários da indústria de tabaco de Lisboa. Pouco tempo depois, Angelina Vidal assumiu a redação do jornal desse sindicato – jornal que, por sinal, ainda hoje existe: é a A Voz do Operário.

Nascida em Lisboa, em 1849, filha de um maestro e casada com um médico (do qual se separou), Angelina provinha de um meio social privilegiado. Era uma ‘senhora’ que, literalmente, tocava piano e falava francês. Tornou-se escritora, jornalista e professora. Foi autora de poesia, contos e teatro. Quando as futuras dirigentes da «Liga Republicana» ainda eram crianças.

Mas praticou um feminismo socialmente mais avançado do que essas posteriores republicanas. Um feminismo focado nas mulheres operárias.

Em 1893, Angelina declarou a sua adesão ao socialismo e a uma espécie de central sindical que existia à época, a «Associação dos Trabalhadores na Região Portuguesa».

Sindicalista

Vejamos alguns exemplos.

Em 1894, num encontro sindical, Angelina Vidal discursou sobre a educação da mulher e apelou à sua participação no sindicalismo. Outra oradora nesse evento foi Luísa Maria, delegada do primeiro sindicato feminino em Portugal, o das «Lavadeiras de Lisboa» – fundado 15 anos antes da «Liga Republicana».

Em 1896, Angelina proferiu uma conferência sobre “os direitos sociais e económicos da mulher operária”. Numa iniciativa doutro sindicato feminino, o das operárias costureiras de Lisboa. E no ano seguinte voltou a falar sobre “os direitos da mulher”, no mesmo sindicato.

Em 1900 deu uma conferência sobre “a mulher na sociedade moderna”, no «Grémio Socialista José Fontana», também em Lisboa.

Tudo isto ainda no século XIX.

“Missão natural da mulher”

Hoje será difícil de imaginar como era inusitado uma mulher atrever-se naquele tempo a ter uma intervenção política. Ainda por cima na oposição ao poder político estabelecido e à classe dominante.

Em 1881, por exemplo, Angelina Vidal começou a colaborar no jornal «Distrito de Santarém». Mas foi por pouco tempo…

No ano seguinte, esse mesmo jornal explicava:

“Nós acatamos e respeitamos sempre uma senhora, mas […] sair do lar para subir à tribuna, esquecer o governo doméstico para discursar sobre administração pública”, e sobre “os perigos que cercam a nacionalidade portuguesa, pode ser muito patriótico, mas sobremaneira pouco feminil, e nós confessamos que nos desagrada sobremaneira”.

E apontava:

“A senhora dona Angelina Vidal – a única republicana, cremos, […] prega a transformação geral, deseja a emancipação […] desde o capitólio até ao lar, e tudo isso nos parece pouco de acordo com a missão natural da mulher”. [2]

Porém, Angelina Vidal não desistiu.

1º de Maio

Vejamos um outro exemplo, já no século XX mas ainda sob a monarquia.

Angelina Vidal foi a oradora principal num comício do 1.º de Maio de 1909, no Barreiro.

Aconteceu na sede do sindicato dos operários corticeiros.

Quem presidiu a esse comício foi um futuro deputado do Partido Socialista Português – o professor Ladislau Batalha. [3]

Segundo um relato publicado à época, a sala era “vasta, comportando lugar para 400 pessoas assentadas”. Mas em volta e ao fundo havia mais uma “massa compacta de gente, bem como no largo […] fronteiro ao edifício”.

Nas janelas do sindicato “esvoaçavam bandeiras de diversas nacionalidades, traduzindo assim o carácter internacional da comemoração”. E lá dentro, na sala do comício, “viam-se escudos cheios de ferramentas de trabalho, e florões formados por bem feitas combinações de jornais socialistas”.

Quantos aos discursos, “usou por último da palavra a poetisa portuguesa D. Angelina Vidal, que propositadamente fora de Lisboa, animar com o seu verbo caloroso e repassado de sentimento, a corrente socialista […] no concelho do Barreiro”.

Ainda segundo o mesmo relato, terá sido vibrante “o entusiasmo que então brotou unânime de todos os cantos da vasta sala. Homens e senhoras […] levantaram-se numa explosão de grande consciência, em brados e vivas ao povo trabalhador, aos modernos ideais de paz e fraternidade”. [4]

Feminismo anticapitalista

Falecida em 1917, Angelina Vidal manteve-se fiel aos seus princípios socialistas até ao final da vida.

Num artigo em 1914, denunciava que “a costureira, empregada nos ateliers, chega a trabalhar doze e quatorze horas [ao dia] por um salário mesquinhíssimo”.

E já falava na desigualdade de género a nível salarial, apontando o caso da “obreira fabril, [que] se não está tantas horas na roça, suporta a injustiça de diferenciação, para menos, do salário, quando mesmo em igualdade de produção com o homem”. [5]

Longe de ser um caso isolado, Angelina Vidal foi a precursora de toda uma corrente de feminismo anticapitalista, que se desenvolveu no antigo Partido Socialista Português.

Corrente na qual pontificaram mais intelectuais como Leopoldina Mesquita, Lucinda Tavares e Maria O’Neill. [6]

E operárias como Adelaide Abrantes, Deolinda Neves, Margarida Marques e Matilde Simas.

Entre outras.


Notas:

[1] A ‘líder histórica’ da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas foi Ana de Castro Osório. Sobre as contradições do seu feminismo e do seu pensamento político, ver o artigo “Colonialismo e xenofobia em Ana de Castro Osório”, Mais Ribatejo, 11/09/2022

[2] Distrito de Santarém, 02/07/1882, pág.1

[3] Ladislau Batalha foi um dos dez deputados que o antigo Partido Socialista Português teve, todos eleitos sob o regime da 1ª República. Exerceu o cargo entre 1919 e 1921. E publicou o livro O socialismo no Parlamento (1920).

[4] Diário de Notícias, 04/05/1909, pág.4

[5] Vanguarda, 22/05/1914, pág. 1

[6] Sobre Maria O’Neill e a sua adesão ao Partido Socialista Português, ver o artigo “Maria O’Neill, uma mulher socialista na 1ª República”, O Setubalense, 10/05/2022


Luís Carvalho é investigador.

Texto publicado originalmente no Mais Ribatejo.

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