Emiliano Terán Mantovani é sociólogo da Universidade Central da Venezuela, investigador e ativista. Colaborou em várias iniciativas, como o Atlas da Justiça Ambiental e o Painel Científico para a Amazónia. Não foi fácil organizar a entrevista, uma vez que tem de se mover com extrema cautela face à esmagadora militarização que o país está a viver. Ele garante que o governo de Maduro não é um governo de esquerda ou mesmo progressista, mas um “regime de corrupção, abusos, precarização da vida e violência repressiva”. Analisa igualmente a oposição, que defende um “neoliberalismo ortodoxo, privatizações maciças” e uma “proximidade geopolítica com os Estados Unidos”. Conclui que a competição é entre duas forças neoliberais e que o regime madurista está em profundo declínio. Raúl Zibechi entrevista-o para o semanário uruguaio Brecha.
Como caracteriza o governo de Maduro?
Desde 28 de julho, consumou-se na Venezuela uma fraude eleitoral de que muito se falará quando recordarmos as maiores fraudes da história contemporânea da América Latina, como a “falha do sistema” no México, a de Fujimori ou alguns casos insólitos na América Central. Hoje, está a ser considerada uma reconfiguração do regime político de Maduro, para poder governar em condições de completa ilegitimidade social, política e internacional. Trata-se de uma reconfiguração perigosa, porque pretende levar a repressão e o controlo social a níveis inimagináveis, mas permitam-me que comece por considerar o ponto de partida para ver para onde podemos ir.
O governo de Maduro tem evoluído nos últimos 11 anos de uma forma que tende cada vez mais para a decadência, em todos os sentidos. Tem vindo a pulverizar o enquadramento dos direitos sociais, procurando sufocar toda a dissidência política e social, com uma repressão brutal de todo o campo popular, mesmo que se seja um chavista crítico. A Venezuela tem sido governada sob um estado de emergência permanente: um estado legal, por decreto, que durou mais de cinco anos, de 2016 a 2021, algo totalmente inconstitucional, mas que paradoxalmente foi normalizado.
Por outro lado, a arquitetura de poder do regime de Maduro foi moldada por uma reestruturação progressiva do Estado. O antecedente é o Estado corporativo e militarista configurado no governo de Chávez, as suas formas autoritárias e verticais de fazer política, que colocavam a máxima lealdade ao líder acima de tudo como um princípio fundamental. As estruturas e redes de corrupção estatal são também um antecedente importante. Estes elementos viram continuidade no governo de Maduro, mas agora sem o carisma e a legitimidade política de Chávez, sem as enormes receitas petrolíferas que outrora estiveram disponíveis e no contexto do colapso sistémico venezuelano. Assim, tudo começou a ser imposto principalmente pela força e pela violência.
A Assembleia Nacional, amplamente conquistada pela oposição em 2015, foi ignorada e foi criada uma Assembleia Nacional paralela do regime em 2017; foram criadas empresas militares para a apropriação e gestão direta e privada da riqueza; a enorme pobreza deixada pela crise foi utilizada politicamente, criando canais institucionais para a atribuição seletiva de riqueza a funcionários do Estado e apoiantes do PSUV; o acesso à informação foi eliminado.
Foram mobilizadas numerosas forças de segurança estatais e para-estatais, uma estrutura de corrupção e de poder incontestado, num ambiente de máxima impunidade e militarização. Consolidou-se assim uma mafiosidade do Estado. Tudo isto, justificado em nome da “defesa da revolução e do socialismo” e da “luta contra a direita”. Tivemos assim uma mudança de regime por dentro e consolidou-se uma ditadura de novo tipo, um regime patrimonial e oligárquico, que também permite a apropriação direta da riqueza regional para manter as lealdades provinciais. A Venezuela é governada como uma fazenda, uma imagem que remete para os regimes políticos do último quarto do século XIX e do primeiro quarto do século XX na América Latina.
No entanto, há quem o considere de esquerda.
Não há qualquer base para afirmar que este é um governo progressista, e muito menos de esquerda. Há uma forte liberalização da economia, com a promoção e proteção do capital transnacional, grandes isenções fiscais, privatizações pouco visíveis, promoção de zonas económicas especiais, a criação de uma Venezuela VIP (turismo, restaurantes, bares, viagens, carrinhas de luxo) só para estrangeiros, empresários e altos funcionários do Estado; a destruição programada dos salários, mantendo-os em bolívares enquanto a economia é totalmente dolarizada (hoje equivalem a 4 dólares por mês), o abandono do sector público, entre outros fatores.
A Fedecámaras, a principal câmara empresarial do país, que sempre foi vista como a grande inimiga de Chávez, é agora amiga do regime de Maduro. Analisando cada medida económica, podemos afirmar que estamos perante uma das restruturações neoliberais mais agressivas da região, embora não se trate de um neoliberalismo convencional. A evolução de um sistema autoritário e a neoliberalização da economia são dois factores de um mesmo processo de mudança de regime na Venezuela. Um está em função do outro.
Para além dos empresários, a nova aliança do regime de Maduro é com as igrejas evangélicas, tal como fez Bolsonaro; o chavismo criticou Uribe, mas Maduro utilizou de igual modo uma rede de grupos de choque paramilitares. Maduro anunciou recentemente que o seu poder se baseia numa aliança “cívico-militar-policial”. Nestes dias de protestos populares, estão a ser promovidas prisões de trabalho forçado para “terroristas” e “golpistas”, fazendo lembrar Bukele. Os dois governos que mais promoveram a destruição de direitos na América Latina atual foram precisamente os de Milei e Maduro.
Penso que algumas esquerdas que continuam a apoiar esta situação, não conseguiram sequer compreender o nível de decadência, de conservadorismo e de mafiosidade deste regime. E acabam por ser arrastadas por esta decadência, acabam por ficar atoladas no apoio a este desastre e minam a sua própria credibilidade. Isto é um sintoma de desorientação histórica que nos deve levar de novo à questão de saber o que é a esquerda nesta crise, que é uma crise global; que sentido histórico tem hoje a esquerda, o que representa, quem representa, como entende a relação entre ética e política; como responde a este mundo em mudança e violento. Mas, em relação à Venezuela, chegámos a um ponto em que não há qualquer nuance.
A segunda conclusão é que este regime de corrupção, abusos, precarização da vida e violência repressiva é entendido e sentido pela grande maioria dos venezuelanos como um pesadelo. Um pesadelo que eles querem que termine. Esse foi um dos antecedentes desta eleição: um cansaço popular máximo com o governo de Maduro, um cansaço nunca visto nos 25 anos do processo bolivariano, que criou esta massa crítica de descontentamento generalizado irrefutável e que se reflectiu de forma esmagadora nas eleições. Todos os sectores dos venezuelanos votaram maciçamente contra Maduro, sejam eles rurais, urbanos, jovens, adultos, os mais precários, as classes médias, em Caracas, nos Andes, nas planícies, na Amazónia, vários sectores da esquerda, do centro, da direita, religiosos, ateus, todos, com uma força que nunca tinha sido vista na história eleitoral venezuelana.
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Isto não parece ser entendido por algumas esquerdas, que infelizmente criminalizaram os protestos populares nos bairros mais pobres do país, apelidando-os de “ultra-direita”, o que reforça os mecanismos de repressão e perseguição em curso; e noutros casos, infantilizando e subestimando a população, afirmando que são pessoas confusas, manipuladas e sem critério que estão a entregar o país aos Estados Unidos. Não têm autocrítica nem a mínima compreensão do fracasso que teve de ser este projeto político chavista para que as pessoas fugissem pelas fronteiras. Nenhuma autocrítica que levasse a uma reflexão profunda sobre os erros cometidos pelos governos bolivarianos. Pelo contrário, noto que esta parte da esquerda insiste em colocar constantemente sobre os ombros do povo venezuelano o saco de pedras de ser suspeito de protestar pela falta de água, pelo seu salário miserável ou por querer que o seu voto seja respeitado, e dizer-lhes que estão a “fazer o jogo da direita”, e toda esta história de chantagem que não tem fim, que é perpétua. Para estas esquerdas, o povo não tem o direito de se revoltar e deve permanecer em silêncio, apoiando o governo até ao fim dos tempos.
Para onde se dirige o regime?
O que estamos provavelmente a assistir é a uma nova reorganização política do regime, mais radical e mais extremista, para controlar a população. As garantias constitucionais estão de facto suspensas. Os próprios porta-vozes do governo referiram mais de 2.200 detenções em poucos dias, sem qualquer procedimento legal, afetando todo o espetro social e político do país. As forças de segurança mandam parar os transeuntes para verificar se os seus telemóveis têm algum conteúdo antigovernamental, a fim de os prender. Foram criados mecanismos de bufaria social para denunciar os opositores, tendo mesmo sido criada uma aplicação para colocar os seus nomes, moradas e fotografias. As casas das pessoas que protestam ou se opõem ao governo foram marcadas.
Além disso, a partir de discursos oficiais e das agências de segurança, são difundidos conteúdos para assustar a população, anunciando que “eles vêm buscar-vos”, e prisioneiros uniformizados são expostos, ao estilo Bukele, gritando slogans pró-governo. As redes sociais são objeto de uma vigilância rigorosa e foi criado um “Conselho Nacional de Cibersegurança” para formalizar essa vigilância. Foi aprovada uma lei para controlar as ONG.
Como se pode imaginar, a população venezuelana está hoje aterrorizada e em choque. Isto é o que o governo de Maduro chamou de uma nova aliança “cívico-militar-policial”. Vivemos numa sociedade totalmente policial, quase orwelliana. O regime procura controlar todas as esferas e expressões da sociedade venezuelana.
Até que ponto é que isto é sustentável ao longo do tempo? É difícil saber, mas o que é claro é que, neste cenário, a disputa está muito ligada à subjetividade, à integridade subjectiva. É a biopolítica no seu estado mais puro. O corpo/sujeito é um refém no seu próprio país.
Que caracterização faz da oposição liderada por María Corina Machado?
Machado tem um programa político-económico neoliberal ortodoxo de privatizações em massa e de alianças com o capital internacional, e uma proximidade geopolítica com os Estados Unidos e com aquilo a que estes sectores chamam o “mundo livre”. É uma mulher que provém das classes económicas poderosas, de uma família de importantes empresários. A sua posição sobre o processo bolivariano sempre foi classista, rupturista e de confrontação, embora, certamente, para se tornar mais tragável e alargar o seu quadro de alianças, tenha vindo a aproximar-se de posições mais moderadas. Mas, em qualquer caso, o que deve ser sublinhado é que o quadro da recente competição eleitoral e política para os venezuelanos tem sido entre duas forças neoliberais. Isto mostra-nos o tipo de encruzilhada em que o povo venezuelano tem estado e continuará a estar por enquanto, e a grande necessidade de construir progressivamente uma alternativa política a isto, um caminho de reivindicação popular e soberana que também procure mudar o modelo de sociedade, que comece seriamente a pensar para além do petróleo e do extrativismo.
Mas há nuances sobre a oposição que precisam de ser mencionadas, a fim de fazer uma leitura atualizada. Não estamos em 2017. Embora a grande maioria da população rejeite o governo, não estamos perante dois blocos políticos fortes em igualdade de condições de confronto. O governo de Maduro controla tudo: as forças armadas e as forças de segurança, o poder judicial, o poder eleitoral, a assembleia nacional, a grande maioria dos governos regionais e municipais, os meios de comunicação social nacionais, a indústria petrolífera, tudo. A verdade é que não se pode comparar à situação de 2017 ou mesmo de 2019.
O sector da oposição que Machado lidera hoje não é homogéneo. Ela não tem o controlo total e tem tido muitos adversários políticos dentro desse sector. Para as eleições, conseguiu articular uma unidade com os outros elementos da coligação, mas é difícil saber se essa unidade se manterá, dado o seu passado conflituoso. Até agora, não houve consenso sobre o seu programa económico ortodoxo, uma vez que, por exemplo, nem todos concordam com a privatização da PDVSA. Se conseguisse assumir o poder, o chavismo continuaria a controlar o Supremo Tribunal, a Assembleia Nacional, o organismo eleitoral CNE e os outros poderes que mencionei. Mesmo no poder, possivelmente teria o chavismo como oposição. A população venezuelana não tem sido historicamente propensa a ideias neoliberais, mas sim a uma cultura política anti-oligárquica. Há também a questão do nível de apoio militar a Machado, dada a antipatia mútua de longa data. O contexto venezuelano é muito instável e fragmentado. Foi provavelmente isso que parte da esquerda e de vários movimentos sociais calcularam quando decidiram que preferiam enfrentar um governo de Machado em vez de Maduro.
Por último, como vê o futuro? E acha possível uma guerra civil?
Um primeiro cenário é que o governo de Maduro se mantenha no poder, por três fatores: um regime de repressão brutal que impede a emergência de uma força dissidente significativa ou de uma alternativa política forte; em segundo lugar, um regime que já sabe gerir o país com um custo político muito baixo, ou seja, sabe governar num contexto de colapso e caos, e não se preocupa muito com o questionamento e o isolamento internacional. Neste caso, quem mais perde é a população venezuelana. E, em terceiro lugar, um regime que consegue consolidar alguns canais de comércio internacional para os seus recursos naturais, tendo em conta algumas licenças de petróleo e gás que poderão continuar dadas as necessidades energéticas globais; o apoio da China, Irão, Turquia, Rússia, entre outros, também para a comercialização de outras matérias-primas; e esperando que as águas acalmem para convidar mais abertamente novos investidores internacionais. A crueldade do extrativismo não é a primeira vez que sustenta e legitima ditaduras.
O governo de Maduro tem tentado reconquistar alguns dos seus antigos eleitores através de vários mecanismos clientelares ou de discursos demagógicos e, longe disso, aquilo a que temos assistido é a uma erosão sustentada do seu apoio, um descalabro total. É difícil que, mais tarde ou mais cedo, não se abra um cenário de rutura, embora, repito, não saibamos quando nem de que forma essa rutura se dará. Outra questão é a desintegração interna do bloco governamental, que também tem sido gradual e que, nos últimos dias, registou manifestações de descontentamento público, como a de Francisco Arias Cárdenas ou do Ministro da Cultura Ernesto Villegas. Obviamente, no centro das questões que se colocam estão questões de clivagem interna, mesmo no sector militar, que teriam de facto um peso determinante na crise.
Os resultados não serão alcançados apenas por inércia. Serão as capacidades de mobilização que lhe darão forma e dinamismo. Resta saber como irá evoluir a resistência social, como se canalizará o descontentamento, o medo e o terror que as pessoas estão a viver, se com tendências para a paralisia e a habituação, ou para outras expressões de mal-estar, de raiva, de sentimento de não ter futuro e de uma nova forma de cansaço que mobilizará, provavelmente de formas muito mais intensas e desconhecidas. A criatividade social e a persistência serão cruciais para a recomposição popular em tempos de ditadura férrea. A resposta internacional será importante, ainda que variada, e provavelmente será acionada em função da evolução das alternativas de mudança no plano interno.
Finalmente, a situação económica interna vai ser muito decisiva. A chamada recuperação económica assenta em bases muito frágeis, a distribuição da riqueza continua a ser extremamente desigual e não podemos esquecer que vimos de uma longa crise económica determinada pelo esgotamento do modelo rentista do petróleo.
Poderá haver mais confrontos violentos?
É um cenário possível se todas as vias para uma solução pacífica forem definitivamente fechadas, embora uma guerra civil exija dois lados armados, e na Venezuela esse monopólio é detido fundamentalmente pelo governo nacional.
Entrevista feita por Raúl Zibechi para o portal uruguaio Brecha e republicada em Sin Permiso. Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.