Venezuela: Maduro procura adiar indefinidamente publicação dos resultados eleitorais

porLuís Leiria

12 de agosto 2024 - 22:19
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Divulgação das atas, urna por urna, continua a não ser feita pelo Conselho Nacional Eleitoral, como manda a lei e fora muitas vezes prometido. Depois do pretexto de um suposto ataque hacker contra o sistema eleitoral, as atas apareceram mas foram parar ao Tribunal Supremo de Justiça, que também não as publicou.

Doze dias após as eleições presidenciais venezuelanas, as autoridades eleitorais continuam a sonegar a realidade das urnas, depois de ter proclamado a vitória de Maduro apresentando apenas seis resultados.

O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), com a desculpa de um suposto ataque hacker, não publica as atas das urnas, os boletins que cada urna emite quando é fechada. O site do CNE, que se foi abaixo durante as eleições, continua inacessível. Mas, além do formato digital, estas atas existem também em papel, logo, não haveria qualquer dificuldade em publicá-las.

O processo eleitoral na Venezuela, que já foi várias vezes considerado um dos mais seguros do mundo, obriga o CNE a publicar todos os resultados da Eleição, urna por urna. Mais: obriga a uma “auditoria cidadã”, em que se seleciona aleatoriamente um conjunto de urnas e se compara o resultado registado eletronicamente com as atas em papel, para verificar se são idênticos. Nada disto foi feito.

Em vez disso, o presidente do CNE, Elvis Amoroso, na própria noite das eleições, proclamou a vitória de Maduro apresentando apenas seis dados: os totais de votos (percentagem e número de votos) de Maduro (51,2%, 5.150.092 votos), do candidato da oposição de extrema-direita, Edmundo González ( 44,2%, 4.445.978 votos) e de “outros” candidatos (4,6%, 462.704 votos), com 80% dos votos contados.

Estes resultados, totalizados pelo CNE sem que se saiba a sua origem, foram suficientes para que Amoroso proclamasse Maduro presidente.

Pior ainda, quando o CNE finalmente anunciou que já tinha a quase totalidade das atas, mais uma vez não as publicou, limitando-se a enviá-las para o Tribunal Supremo de Justiça, devido a um pedido de Maduro para que o TSJ investigasse os ataques cibernéticos e o atraso da divulgação das atas. Este tribunal também não as publicou.

Quem tem de provar o quê?

Há quem diga que os que clamam pela evidência da fraude têm de apresentar provas. Mas como apresentar provas cabais de fraude sem ter os resultados das urnas? A insistência em não publicar os resultados da apressadamente anunciada vitória de Maduro é o maior indício de fraude, já que a sua não publicação põe em causa todo o processo eleitoral e, evidentemente, o seu resultado final.

Não há qualquer motivo plausível que justifique a demora da publicação que não seja a necessidade de ocultar o máximo de tempo possível a realidade das urnas. Enquanto isso, a permanência de Maduro na Presidência vai se transformando num facto inapelável, pelo cansaço da oposição e do povo massacrado pela violenta onda repressiva desencadeada pelo governo.

Já há duas mil pessoas presas, segundo o próprio Maduro. Entre elas cerca de cem adolescentes, pelo menos quatro jornalistas e muitos políticos. Na sua maioria, estão a ser acusados de terrorismo, o que pode levar a penas de prisão de mais de dez anos. O governo culpa a oposição por ter promovido a violência nas manifestações de dia 29 de julho, quando terão morrido 23 pessoas, o que é negado por ela. A verdade é que a grande manifestação da oposição em Caracas reuniu milhares de pessoas e decorreu em paz.

Governos progressistas: publiquem-se os resultados!

Os indícios de fraude são tão fortes que levantaram dúvidas aos governos e entidades que, noutra situação, teriam reconhecido desde logo a vitória de Maduro. O mais assertivo foi Gabriel Boric, presidente do Chile, que, ao saber da proclamação da reeleição do presidente venezuelano garantiu que não reconhecerá nenhum resultado que não seja verificável. “O regime de Maduro deve entender que esses resultados são difíceis de acreditar. A comunidade internacional e sobretudo o povo venezuelano, incluindo os milhões de venezuelanos no exílio, exigimos total transparência das atas do processo, e que observadores internacionais não comprometidos com o governo atestem a veracidade dos resultados”.

Entre os governos progressistas da América Latina, Brasil, Colômbia e México destacaram-se por formar um grupo de pressão sobre a Venezuela para que os resultados sejam publicados. Numa nota de dia 8 de agosto, os três países reafirmaram a conveniência de que se permita a verificação imparcial dos resultados, respeitando o princípio fundamental da soberania popular.

A Venezuela já tinha vivido momentos pós-eleitorais muito tensos, onde os governos chavistas e depois maduristas foram acusados de fraude e de roubar as eleições. Mas as acusações invariavelmente não eram provadas, até porque a lei foi sempre cumprida, os resultados publicados e todos os requisitos legais respeitados.

“Chavistas críticos”

Desta vez não. E isso é que faz toda a diferença. E não é só a oposição de extrema-direita a pôr em causa a reeleição de Maduro. Personalidades ligadas historicamente ao chavismo, mas opostas ao madurismo, entre eles o ex-ministro das Comunicações de Chávez Andrés Izarra ou o ex-presidente da câmara de Caracas Juan Barreto, dirigiram uma mensagem aos presidentes do Brasil, México e Colômbia onde agradecem os esforços para encontrar uma saída para o conflito, mas pedem que “intercedam pelo fim da repressão e criminalização dos protestos e violações dos direitos humanos, e as centenas de cidadãos detidos por expressarem as suas exigências e reclamações relativamente aos resultados divulgados pelo CNE”.

Para além das fronteiras da Venezuela, a líder das Avós da Praça de Maio da Argentina, Estela de Carlotto, e a ex-presidente da Argentina Cristina Fernández de Kirchner, lamentaram a atuação de Maduro, que consideraram uma ofensa ao legado de Chávez.

É a primeira vez que o Centro Carter não valida a eleição

Chama também a atenção que o Centro Carter, que mais uma vez foi convidado a observar as eleições, desta vez não as tenha validado e, pela primeira vez, retirou-se do país no dia 29 de julho, afirmando que a eleição na Venezuela “não pode ser considerada democrática”, por não ter obedecido aos “parâmetros e padrões internacionais para processos eleitorais”.

Numa entrevista no dia 7 de agosto, Jennie K. Lincoln, líder da missão de observação à Venezuela, negou que tenha havido um ataque cibernético maciço às eleições venezuelanas, ataque este que teria atrasado a publicação das atas.

“Há empresas que monitorizam a Internet e sabem quando há ataques maciços do tipo denial of service. Naquela noite, não houve”. Além disso, prosseguiu Lincoln, “a transmissão de dados da votação é por linha telefónica e telefone satélite e não por computador. Eles não perderam dados”.

Lincoln recordou ainda que o presidente do CNE “disse que publicaria os resultados tabela por tabela no site e entregaria um CD aos partidos políticos”, promessa que nunca cumpriu.

O Centro Carter cumpriu um papel muito importante ao acompanhar e validar o referendo revogatório de Hugo Chávez em 2004, para decidir se o presidente se afastava ou não do cargo. Desde então, sempre foi convidado a observar as eleições na Venezuela.

Quem defende o primado da verdade nas urnas é “ingénuo”?

Há setores da esquerda latino-americana que desvalorizam as evidências da fraude, acusando de ingenuidade os que defendem a verdade das urnas. Afinal, dizem, não esqueçamos que as eleições nunca são verdadeiramente democráticas devido à influência do capital, dono dos meios de comunicação social, que manipula a vontade popular. O que está em causa, afirmam, é a posse do petróleo venezuelano, que ficaria diretamente nas mãos do imperialismo norte-americano caso a oposição vencesse, com a privatização total da PDVSA. Os “ingénuos” pensam que a mobilização da oposição de extrema-direita é uma revolução democrática, dizem, quando na verdade se trata de uma mobilização contrarrevolucionária que tem por objetivo o derrube insurrecional do governo de Maduro.

O problema é que se a esquerda entra neste rumo de considerar democráticas apenas as eleições que lhe convém – e nestas tudo é permitido e tudo é relativo –, com que credibilidade poderá depois denunciar as fraudes da direita? Se nos colocamos ao lado da fraude de Maduro porque o mais importante é o controlo do petróleo e não o respeito à vontade popular, com que cara é que ficaremos quando os bolsonaristas nos mandarem para a Venezuela, para usufruir da “democracia” lá existente? Governos autoritários que se dizem de esquerda, como o de Maduro, são os maiores responsáveis pelo crescimento da extrema-direita. A esquerda, se não quer perder a sua coerência, tem de denunciar todos os ataques às liberdades democráticas praticados por Maduro, que aliás muitas vezes tiveram como alvo a própria esquerda.

Dizem-nos que a questão de fundo, na Venezuela, é a disputa pelo controlo das reservas de petróleo venezuelanas, as maiores do mundo. Isso é certo, mas não é só a oposição de extrema-direita que pretende atentar contra a soberania da Venezuela sobre o petróleo, o governo de Maduro já o faz hoje.

A PDVSA, na verdade, já está a ser privatizada, às postas, pelo governo Maduro. Se nos últimos anos a produção petrolífera do país cresceu, deve-o em parte às joint ventures com empresas petrolíferas dos Estados Unidos, nomeadamente a Chevron, que entrou na Venezuela pelas mãos de Maduro. A PDVSA tem quatro joint ventures com a Chevron, sendo responsáveis pela produção de 200.000 barris de petróleo diários, o que corresponde a mais de um quinto da produção total do país, que está perto de um milhão de b/d. Em dezembro de 2023, a PDVSA anunciou duas novas joint ventures, desta vez com a espanhola Repsol e com a empresa francesa Maurel & Prom.

Há embargos e embargos

Como se vê, é preciso pôr os pés no chão quando se fala em embargo dos Estados Unidos à Venezuela. Há embargos e embargos. O atual está a ser aplicado de tal forma que se permite a criação destas empresas de capital venezuelano e estrangeiro e também a venda de petróleo para os EUA.

Em março deste ano, a Venezuela passou a ser a sexta maior fornecedora de petróleo aos Estados Unidos, superando países como o Reino Unido ou a Nigéria.

É este o “anti-imperialismo” e a “independência” do governo Maduro face aos Estados Unidos?

Aqueles que nos dizem para deixar para lá a possível fraude de Maduro em nome do seu suposto “anti-imperialismo” têm uma ideia fantasiosa da política energética do governo venezuelano e também da realidade do embargo dos EUA à Venezuela.

Luís Leiria
Sobre o/a autor(a)

Luís Leiria

Jornalista do Esquerda.net
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