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Vencer a Crise: Direitos mais fortes para um país mais justo

Os catorze especialistas e ativistas que integraram o painel “Habitar as cidades, garantir direitos” alertaram para o agravamento das desigualdades em tempo de crise pandémica e defenderam que o regresso à normalidade não pode ser o regresso a um país de direitos frágeis.

Durante a apresentação do painel, Ricardo Moreira destacou que a emergência da Covid-19 “pôs a nu a importância do Estado Social”. “As maiores dificuldades foram sentidas onde não há resposta pública ou esta é insuficiente”, sublinhou, defendendo que é tempo de “olhar para as insuficiências e tirar consequências para o futuro imediato”.

José Manuel Pureza encerrou o debate, fazendo um breve resumo das conclusões retiradas. “O regresso à normalidade não pode ser o regresso a um país de direitos frágeis”, avançou o deputado bloquista, alertando que a pandemia “pôs em evidência a fragilidade de muitos direitos básicos em Portugal e agravou-a”.

“Olhamos para o futuro e vemos planos da direita de austeridade misturada com a diminuição de direitos como se fosse uma espécie de novo normal”, apontou, referindo que neste painel foi dada voz a propostas concretas vindas de quem conhece esta realidade. A conclusão é unânime: são precisos “direitos mais fortes para um país mais justo e uma democracia mais completa”.   

Um sistema de justiça que reforce direitos

Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, defendeu que é preciso apostar “numa agenda estratégica de reforma da justiça que não esteja tão centrada em medidas para resolver o problema da quantidade, sobretudo do volume de processos pendentes, dominado para ações para a cobrança de dívida”, e que esteja, isso sim, “centrada no reforço da qualidade da justiça, quer considerando a sua organização, os seus procedimentos, e, sobretudo, as suas decisões e termine com o padrão de intervenção fragmentária que, muitas vezes, cria caos normativo e que contribui ativamente para a ineficiência do sistema de justiça”.

Na sua opinião, são necessárias reformas articuladas, da lei e da sua prática, não sendo suficientes quadros legais inclusivos e progressistas. É preciso garantir a articulação institucional, um funcionamento em rede e o diálogo interdisciplinar. Conceição Gomes referiu ainda a importância da transparência e da prestação de contas, da aposta na formação e na garantia do acesso à justiça.

Garantir o acesso à habitação

Simone Tulumello, Investigador em planeamento urbano no ICS, sinalizou a fragilização habitacional face a esta pandemia, com bairros vazios e sem comércio, e alertou para a necessidade de voltar a colocar as habitações no mercado habitacional e de travar o ímpeto por parte de grandes investidores e fundos de investimento no sentido de aprofundarem o seu peso no mercado. O investigador afirmou que é preciso distinguir dois tipos de proprietários - grandes e pequenos – e que é necessário apoiar estes últimos na reconversão das próprias habitações para arrendamento de longa duração. Bem como é necessário recorrer a instrumentos do planeamento urbano, fixando onde e quando deve haver instalação turística, e regulamentar o preço da habitação.

Sobre o papel do IHRU nas políticas públicas de habitação, Nuno Travasso, Arquiteto e investigador em dinâmicas do território na FAUP, frisou que este este instituto tem um papel central, devendo, a seu ver, priorizar duas medidas de ação pública complementares entre si: uma do lado da oferta e do lado da procura.

Em causa está criar um verdadeiro mercado de habitação acessível: com uma grande dimensão, com valores de renda acessíveis e que viabilizem o investimento por parte dos promotores, e regras claras e estáveis no que respeita à forma de cálculo das rendas segurança inquilinos e proprietários. No seu entender, são necessários programas de apoio ao investimento, políticas fiscais adequadas, e o aprofundar dos apoios e incentivos ao terceiro setor, especialmente no que concerne às respostas cooperativas. É ainda imperativos que sejam assegurado um subsídio de renda às famílias que, ainda assim, não possam custear a renda deste mercado de habitação acessível.

Garantir direitos para reforçar a democracia

Questionada sobre como será possível garantir os direitos das mulheres agora e no futuro, Elisabete Brasil, presidente da FEM – Feministas em Movimento, assinalou que “é longo o caminho no sentido dos direitos das mulheres” e que o facto de uma em cada três mulheres ser vítima de violência em relação de intimidade espelha a discriminação que ainda grassa na nossa sociedade.

E, de acordo com a ativista, a crise pandémica agudiza o problema, já que não se priorizam os apoios nesta área e o silêncio das mulheres aumenta, seja por questões de segurança física, entre outras. Apesar de existirem menos registos de denúncias de violência doméstica, adivinha-se um aumento exponencial de situações de violência. Elisabete Brasil defendeu que, a par do apoio telefónico e digital, é urgente apostar também no apoio presencial.

Segundo o ativista Jorge Falcato, este “período deu para pôr a nu todas as necessidades das pessoas com deficiência”. Registou-se, inclusive, uma “diminuição dos apoios já existentes” e, em alguns casos, a total inexistência dos necessários apoios para pessoas que estão dependentes de terceiros. A resposta passa, na opinião de Jorge Falcato, pelo “efetivo reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência”. Os direitos “têm de sair do papel”, seja ao nível da utilização das cidades, de uma educação inclusive, como ao nível do acesso ao emprego, frisou.

Generalizar a todos os dependentes de terceiros a assistência pessoal enquadrada atualmente nos projetos de vida independente e pôr fim a políticas institucionalizadoras que impedem as pessoas com deficiência de tomar nas suas mãos as suas próprias vidas são prioridades apontadas pelo presidente do Centro de Vida Independente.

Acabar com respostas para sem abrigo seria “um erro crasso”

Na área das respostas às pessoas sem-abrigo, a Investigadora em ciências farmacêuticas Joana Tavares alertou que fechar os Centros de Emergência Covid-19 da Câmara Municipal de Lisboa, que estão a dar resposta a esta população há cerca de 37 dias, e enviar as pessoas para a rua seria “um erro crasso”. De acordo com Joana Tavares, esta tem sido uma oportunidade única de trabalhar em proximidade 24 sobre 24 horas, abordando questões como o consumo, empregabilidade, habitação… Acabar com estas respostas seria, a seu ver, um desperdício do potencial destas pessoas, da sua reintegração e do trabalho dos técnicos.

Repudiar o racismo como normalidade foi o mote da intervenção do investigador na área dos direitos humanos no CES, Bruno Sena Martins, que, a propósito do tanto que se fala em garantir uma sociedade organizada que não deixa ninguém sem os necessários cuidados e os ventiladores de que possa precisar, evocou a morte de Eric Garner, um norte-americano negro asfixiado pela polícia por, alegadamente, estar a vender cigarros e cujas últimas palavras foram “Eu não consigo respirar”. Fazendo ainda referência ao espancamento da cidadã Cláudia Simões na Amadora, o investigador sinalizou que os negros e afrodescendentes vivem acossados num sociedade que os oprime. A propósito das medidas implementadas no âmbito do estado de emergência, como a proibição de despejos ou o combate ao contágio nas prisões, Bruno Sena Martins deixou o desafio: fazer o levantamento da percentagem de negros e afrodescendentes que se encontram nas prisões, face à quantidade de negros e afrodescendentes que existem na população portuguesa. Assim seria possível obter, “de forma aritmética, uma imagem da injustiça racial”.

Para Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil, o caso do hostel evacuado em Arroios é um retrato das condições indignas a que os migrantes são sujeitos no período de limbo legislativo e de resposta do SEF ao pedido de autorização de residência. Cyntia de Paula alertou que o despacho emitido no âmbito do estado de emergência é temporal, e que é essencial que os migrantes abrangidos tenham os seus direitos assegurados pós covid-19, bem como não esquecer todas as pessoas que deram e vão dar entrada ao processo de pedido de autorização de residência depois de 18 março e que não foram incluídos nesta medida. A presidente da Casa do Brasil considera que “é empo de refletir a efetividade das políticas públicas de imigração em Portugal”. A ativista defendeu que o SEF tem de ser mais célere, os prazos têm de ser cumpridos e que os restantes serviços públicos têm de ser integradores e garantir os direitos das pessoas migrantes.

Para as comunidades ciganas, o acesso à habitação é uma prioridade inequívoca. Bruno Gonçalves, Vice-Presidente da Associação Cigana Letras Nómadas, alertou que é preciso pensar no futuro, já que muitas comunidades ciganas vivem em contexto de acampamento e não estão a conseguir cumprir as recomendações sanitárias. “É preciso agilizar os processos” e acabar com a burocracia redundante para garantir habitações dignas e salubres, defendeu, lembrando que 30% das comunidades ciganas vive em barracas ou tendas, não se podendo defender de um vírus como o que nos ataque agora.

Bruno Gonçalves referiu-se ainda à necessidade de pensar em medidas de apoio aos feirantes e de assegurar um ensino mais individualizado que não condene as crianças das comunidades ciganas a uma maior exclusão e não as impeça de transitar de ano escolar. O ativista enfatizou ainda a importância do papel assumido por mediadores e técnicos de intervenção social.

Um novo paradigma penal

O Investigador do Observatório Europeu de Prisões Ricardo Loureiro sinalizou que a precariedade dos sistemas prisionais, a debilidade das condições de saúde e higiene, que se traduz num maior risco de contágio quer para os presos quer os profissionais que lidam com a população prisional, ganhou visibilidade pública com a Covid-19.

Ricardo Loureiro propôs que, no imediato, os presos condenados por tráfico de droga sem qualquer tipo de crime violento associado e que foram apanhados com pequenas quantidades deveriam ser também abrangidos pelas medidas de combate ao contágio que permitiram a diminuição de penas. O investigador frisou, por outro lado, que é necessária uma maior articulação entre a Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais com os serviços sociais na comunidade, nomeadamente autarquias, serviços de saúde, segurança social. No entender de Ricardo Loureiro, precisamos de um novo paradigma penal, que transite de um sistema punitivo retributivo e passe a ser adotar um sistema transformativo e de coresponsabilização, trazendo “as pessoas da margem para o centro” e apostando na prevenção dos crimes, com a adesão a programas de integração social.

Proteger os direitos das pessoas LGBT

Ana Cristina Santos, Investigadora em estudos de género no CES, referiu que “a discriminação é por natureza cumulativa”. Entre as “pessoas em risco agravado”, Ana Cristina Santos deu o exemplo da comunidade trans e não binária que, exatamente devido à discriminação de que é alvo, regista uma maior incidência de trabalho precário, desemprego, problemas de saúde mental. A investigadora deu conta de relatos de constrangimentos no acesso a terapias hormonais ou a outros fármacos, bem como alertou para o agravamento de situações de violência doméstica, de género e sexual durante esta crise pandémica. A situação é, de acordo com Ana Cristina Santos, muito preocupante no caso de pessoas com mais de 65 anos. Face à ausência de redes de apoio, estas pessoas “podem ver os seus direitos e a sua segurança em perigo”, alertou.

E se a “fragilização é a curto prazo sociocultural e tem efeitos imediatos”, num segundo momento, em que se estabelecem as prioridade, os seus direitos podem sofrer uma regressão “num momento fértil para arremessos populistas”, acrescentou.

Contra a regressão, a investigadora propõe mais educação: garantir o respeito e monitorização de direitos já consagrados, consolidar o combate a discriminações. A “Estratégia mais Igual não pode ficar para segundo plano”, frisou. É preciso ainda “reforçar articulação com agentes no terreno e chamar a academia à sua responsabilidade de uma ciência cidadã, para que ninguém fique para trás”.

Fabíola Cardoso reforçou que a crise agrava todas as discriminações, opressões e desigualdades e advertiu que temos de reforçar as redes auto-organizadas dentro da própria comunidade. A deputada bloquista deu conta de relatos que chegaram ao grupo parlamentar do Bloco sobre casos de violência doméstica entre a comunidade LGBT e sobre as dificuldades no acesso às terapêuticas, bem como lembrou que, com o cancelamento das Marchas agendadas pare este ano, há uma diminuição do espaço social e de reivindicação desta população. O que é necessário? Fabíola Cardoso é perentória: “Um Estado e uma sociedade verdadeiramente respeitadores”.

A última intervenção do painel foi dedicada às respostas para as populações em situação de risco. O Técnico Comunitário na área do VIH e dependências Ricardo Fuertes sublinhou que, no que respeita às pessoas que utilizam drogas, é possível que se registe uma mudança nas substâncias utilizadas, o que implicará efeitos mais imprevisíveis e difíceis de gerir, bem como uma mudança nos locais de consumo. Neste contexto, poderão surgir outros problemas de saúde e existir uma dificuldade em prestar apoio.

Ricardo Fuertes considera que se deve ouvir as pessoas que usam drogas, documentar esta realidade através de uma investigação célere, e ter capacidade de tomar e implementar decisões rápidas, como a criação de apoios em locais onde estes não existem neste momento. O investigador propõe ainda que os diversos espaços de acolhimento se tornem mais inclusivos para pessoas que usam drogas e álcool, com programas de troca de seringas, distribuição de metadona, criação de espaços de consumo protegido/vigiado e de programas de intervenção para quem está dependente do álcool.

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