Uma vitória esmagadora

por

Pedro dos Santos

16 de novembro 2024 - 10:05
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Setenta e um milhões, cento e setenta e sete mil, quinhentos e quarenta e nove. Este é o número do dia, da semana e o número de pessoas que escolheram a tenebrosa América de Trump e de Elon Musk, em vez da melancólica América de Harris.

Donald Trump
Donald Trump. Foto publicad nas suas redes sociais.

Disse e volto a dizer: entre Kamala e Trump, a minha escolha é Kamala. No entanto, com mais escolhas em cima da mesa, começaria certamente a considerar o meu voto. Jill Stein, por exemplo, tinha propostas muito interessantes no que diz respeito à Ação Climática e à Política Externa que, pessoalmente, estou em sintonia. O fim de sanções a Cuba e o fim da ajuda militar a Israel, não me parecem ideias assim muito fora da caixa e diria que até são bastante sensatas. Claro que depois entramos numa utopia muito desejada por parte dos Democratas mais à esquerda, como fechar a grande maioria das mais de 700 bases militares estrangeiras dos EUA e liderar o desarmamento nuclear global como sugere Stein. Aprecio muito o otimismo de Jill e apesar de “ver com bons olhos” uma parte considerável das suas propostas, é inevitável mencionar a queda na utopia que, apesar de desejada, acerta um bocadinho ao lado.

É estranho. Achei mesmo que Kamala conseguiria chegar à presidência. Talvez fosse um otimismo desmedido e pouco calculado, mas não tenho a certeza, porque pode ter sido a presença da Beyoncé naquele comício que me deixou mais otimista. Também atribuo parte da culpa à Comunicação Social e à maneira como estas eleições foram tratadas, porque grande parte do conteúdo que consumi, levou-me a pensar que pouca gente apoiava Trump. Acho que foi a primeira vez que fui manipulado pelos media, ou pelo menos a primeira vez que o percebi.

No entanto, era difícil. Olhando para os Estados Unidos com “olhos de ver”, leva-nos a perceber não só a triste realidade americana, como o facto de que seria mesmo muito complicado eleger uma mulher negra. Kamala Harris foi talvez das candidatas mais literadas e capacitadas que já se propuseram a este trabalho. Com uma carreira política sólida, marcada pela defesa dos direitos das mulheres e pela aplicação severa da Lei, é difícil ignorar a capacidade de Harris para a tarefa. No entanto, o que também não pode ser ignorado são as barreiras históricas e sociais que Kamala, uma mulher negra e asiática-americana enfrenta nos EUA. O contexto racial e político dos Estados Unidos ainda representa um obstáculo significativo e expõe as dificuldades que mulheres e minorias enfrentam num sistema que ainda luta contra questões de igualdade e representatividade.

Mas de quem é a culpa? Ouvi dizer que o aparecimento de Jill Stein poderá ter prejudicado a campanha de Harris. Não levo a mal porque não é verdade. Percebo que o voto de muita gente foi estratégico e também não acredito que os votos dedicados à candidata que, pessoalmente, mais se alinharia com os meus valores, tenham custado a eleição a Kamala. Se olharmos para os resultados percebemos a falácia que é. No estado da Pensilvânia, por exemplo, Harris perdeu por aproximadamente 155 mil votos e Stein obteve apenas 33 mil. No Arizona, Harris perdeu por quase 105 mil votos e Stein recebeu quase 10 mil votos. Conseguem ver a correlação? Não? É porque estanão existe.

Os motivos que eu acredito que podem ter levado Kamala a perder as eleições, para além do contexto histórico e social já mencionado, foram vários. A falta de clareza nas propostas, a sua visão sobre a economia, a questão do género e claro, ser candidata “last minute”.

Se por um lado a falta de clareza nas propostas, especialmente em questões-chave como economia e justiça social, prejudicou a sua imagem e dificultou a conexão com eleitores que esperavam respostas mais diretas e soluções práticas, por outro, quando falamos diretamente de economia, a administração Biden não conseguiu fazer com que as políticas económicas chegassem de facto à população, que continua, à data de hoje, a sentir os impactos nos preços, o que levou ao declínio da credibilidade da democrata.

A “questão do género” tem muito que se lhe diga, mas de forma mais sucinta, mais do que uma questão de género, é uma questão de machismo, misoginia e muita intolerância. Apesar de esta teoria não estar confirmada, depreendo com base nos comentários tecidos por Republicanos durante a campanha eleitoral, que o facto de Harris ser uma mulher, era um entrave para “muitos” e estes “muitos” temiam que os Estados Unidos não estivessem preparados para ser liderados por uma mulher.

A meu ver, a candidatura de Kamala Harris à "última da hora" também afetou a sua campanha. Não acho que a VP tenha tido tempo suficiente para se preparar e construir uma mensagem clara. Acho que ficou muita coisa por rever e perceber, nomeadamente a clareza nas suas propostas e até a forma de comunicar com certos grupos de eleitores. Não quero ser mal interpretado. Foi uma campanha muito interessante, direcionada para massas, que até utilizou a pop culture a seu favor, mas que pecou pela falta de estratégia para além dos holofotes. Ao ser escolhida para substituir Biden de forma repentina, Kamala não teve espaço para solidificar a plataforma democrata e apresentar uma visão distinta, o que prejudicou a sua capacidade de se conectar com uma parte muito significativa do eleitorado. Esta transição acelerada fez com que muitos vissem Kamala como uma continuidade da administração Biden, o que não agradou aqueles que procuravam (e precisavam de) mudanças. As pessoas sentiram que o Partido Democrata se tinha desvinculado do povo e isso refletiu-se no voto popular.

Mas está feito. As votações encerraram, os votos foram contados e é oficial: Donald Trump é o novo presidente dos Estados Unidos da América. É bizarro escrever estas palavras e perceber que não estou a preparar um show de stand-up comedy de muito mau gosto. Gostando ou não, Trump foi eleito democraticamente e, mesmo tendo utilizado aquilo que em termos formais podemos chamar de clássico populismo, isto é, apelar à classe trabalhadora que está descontente com a forma como o país estava a ser conduzido e contrapor isso com “a elite”, Trump venceu. Soube construir uma narrativa em que se apresentava como o “defensor do povo”, em oposição ao que ele caracterizava como “elite”. O cidadão comum nos EUA (e como estamos a ver, não são apenas americanos brancos, mas também negros e latinos) sentiu que Donald Trump estava a trabalhar por eles, em vez de para a tal “elite”.

Dias depois desta noite traumática, é mesmo preciso focarmo-nos naqueles que foram (e serão) verdadeiramente esmagados com esta vitória amarguíssima dos Republicanos: nada mais, nada menos, que os Direitos Humanos.

E já sei, já sei que existem pessoas que ficam mesmo muito raladas quando se falam de direitos humanos (ou direitos para os humanos) porque após eleger um homem com 34 acusações, uma condenação, dois processos pendentes, dois impeachments e seis falências, discutir os planos do 47º presidente do país mais poderoso do mundo parece quase irrelevante. Mas ignorar o impacto de políticas como as propostas no "Project 2025" é arriscado – é abrir as portas para uma nova era de retrocesso de direitos em nome de um conservadorismo disfarçado de “patriotismo”.

O "Project 2025" representa uma ameaça séria aos direitos humanos e às liberdades civis fundamentais. Desde o endurecimento das políticas de imigração até as restrições nos direitos reprodutivos, este project é verdadeiramente macabro. O projeto ameaça os cuidados de saúde para pessoas LGBTQIAP+ e fragiliza diversos grupos vulneráveis, limitando o acesso a direitos básicos em várias áreas.

No que diz respeito aos Imigrantes, a proposta deste projeto é, no seu sentido mais lato, intensificar a xenofobia e os preconceitos à imigração. Desde o aumento do financiamento para o muro na fronteira dos Estados Unidos com o México, até à sugestão do desmantelamento do Departamento de Segurança Interna, as propostas parecem vagas e sem sentido. Outras propostas incluem, por exemplo, eliminar algumas categorias de vistos para vitimas de crimes e de tráfico humano e até mesmo criar serviços premium para imigrantes que possam pagar. Sejamos sinceros, ou pelo menos, decentes. Estas propostas configuram não só um grave, e na minha opinião, claro, retrocesso gigantesco, como violam e violentam os princípios básicos dos direitos humanos.

A Saúde das pessoas queer preocupa-me. Este desejo presente no ”Project 2025” de restringir o acesso aos cuidados de saúde para pessoas transgénero é surreal, é absurdo. É uma medida que ignora direitos fundamentais e o bem-estar das pessoas trans. Estes tratamentos são essenciais para a saúde mental e física de quem necessita deles e a sua restrição representa uma negligência à dignidade e à liberdade individual. Trump decide, uma vez mais, ignorar avanços científicos e as necessidades de saúde da comunidade LGBTQIAP+.

E a Educação? Existem propostas que sugerem eliminar programas que abordem a diversidade e a inclusão. Dizem que é para promover uma educação “patriota”. Não me levem a mal, mas não existe nada mais patriota para alguns americanos do que deixar de lado a justiça social e a História. Por isso, professores que tratam questões de raça, género e sexualidade poderão ser penalizados ou até censurados. É curioso, porque parece-me que estou a descrever uma ditadura, mas isso seria obviamente impossível num país tão desenvolvido e tão democrático e tão livre como os Estados Unidos da América. No fim das contas, esta censura pedagógica limita o pensamento crítico e impede que as futuras gerações compreendam e valorizem a pluralidade.

A história repete-se e os fantasmas do passado retornam para assombrar o presente. A intolerância, a discriminação e o autoritarismo, antes combatidos, agora ressurgem com força renovada (e bronzeada), um metro e noventa e com um curativo na orelha, a ameaçar os valores que se acreditavam consolidados para os americanos.

No entanto, eu não sou americano, mas fico com o sentimento de ter que pedir desculpa. De ter que lamentar. Não podia votar, mas de alguma forma, sinto que a culpa também é minha. Talvez devesse ter feito mais. Talvez mais ativismo, talvez mais diálogo. Mas já está e não há nada a fazer. Mais de 71 milhões de pessoas votaram e elegeram democraticamente um presidente que foi considerado culpado por abuso sexual. Não posso aplaudir, porque a política na qual acredito é a política para pessoas e nunca será a política do ódio de que Trump é adepto. No entanto, é uma vitória de Trump. Uma vitória esmagadora, que esmaga a democracia, os imigrantes, o planeta, a justiça, as pessoas LGBTQIAP+ e as mulheres.


Por Pedro dos Santos

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