Está aqui
“Uma verdadeira lição de história, de resistência duríssima contra um poder ditatorial”

Este foi dos primeiros livros que li de José Saramago há já bastantes anos e decidi relê-lo por ocasião da participação num Roteiro Literário “Levantado do Chão” promovido pela Fundação José Saramago em parceria com a Câmara Municipal de Montemor-o- Novo. Recordo que aquando da primeira leitura, esta me provocou uma grande emoção, não só pela forma como o Alentejo é retratado, mas também pelas semelhanças da família Mau-Tempo com a família do meu marido.
Lê-se este livro e é impossível ficar-se indiferente à mestria no manejo da língua, à riqueza vocabular e à análise social e das classes, com o foco no Alentejo ao longo do século passado. Na contracapa da edição (13ª) que tenho, pode ler-se “Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi de poder dizer deste livro, quando o terminasse: «Isto é o Alentejo»”.
A família Mau-Tempo é a protagonista maior. Várias gerações desde Domingos e Sara da Conceição até Maria Adelaide, sem esquecer o avô João Mau-Tempo que viveu a tortura da estátua e o isolamento em Caxias. Todos de olho azul. Da monarquia passou-se à República mas sem mudanças para a vida do povo, até que chegou o 25 de Abril e a Reforma Agrária. A paisagem é o Alentejo, a ceifa das searas, o tirar a cortiça, o trabalho nos arrozais, ou na vinha. Os homens e as mulheres que só dispõem da sua força de trabalho, sujeitos ao poder assente em 3 pilares: o latifúndio (Lamberto, Norberto…) a igreja (o padre Agamedes) e a guarda (sargento Armamento, inspector Paveia…). A luta contra as máquinas, pelos trinta e três escudos, por trabalho, pela jornada das oito horas e quarenta escudos de salário. A luta pela dignidade, contra a fome e prepotência. O povo, as formigas, a canzoada, quando não é tratada como carneirada. E também os milhanos que do céu tudo observam e que, como as formigas, são as testemunhas de tudo o que acontece no latifúndio.
Luta é resistência e sendo este “um livro sobre o Alentejo”, a epígrafe de “Levantado do Chão” dedica-o “À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados.” Germano Santos Vidigal “o homem que caiu e foi levantado irá morrer sem dizer uma palavra que seja.” (p. 169) … “Que pálido está este homem, nem parece o mesmo, a cara inchada, os lábios rebentados, e os olhos, coitados dos olhos, nem se vêem entre os papos, tão diferente de quando chegou…” (p. 173) “Está morto José Adelino dos Santos, apanhou com uma bala na cabeça e primeiro nem acreditou, sacudiu a cabeça como se lhe tivesse mordido um bicho, mas depois compreendeu, Ah malandros que me mataram , e caiu de costas, desamparado, não tinha ali a mulher que o ajudasse, fez-lhe o sangue uma almofada vermelha, muito obrigada.” (p. 314).
uma verdadeira lição de história, de resistência duríssima contra um poder ditatorial em que o Latifúndio, a Igreja e o Governo estavam de braço dado, mas contra o qual o povo lutou para se levantar do chão
A narrativa é densa, o narrador escreve, divaga, reflecte, antecipa acontecimentos futuros, dialoga com o leitor, não poupa nas palavras, ironiza. Como escreve na pág. 310 “São exageros no narrador”. “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.” (p. 59). “Não foi a conversa por diante, nem já interessava, porquanto pôde o narrador dizer quanto queria, é o seu privilégio…” (p. 279). E vai-nos contando o que se passa lá fora e que vai chegando ao Alentejo: a República, a guerra, o atentado a Salazar, a emigração para a França, o general Delgado e a fraude eleitoral, a fuga de Peniche, o Santa Maria, a índia e o fim do império, a guerra colonial, o assalto ao quartel de Beja e finalmente o 25 de Abril e o primeiro 1º de Maio. Para o povo o trabalho quando o havia, duríssimo e mal pago, a resistência, organização e luta. No terreno, os capatazes e a guarda asseguram que o poder do latifúndio e da ditadura não são beliscados. “O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães.” … “uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.” (p.72).
A escrita de Saramago não esquece o mau viver das mulheres, o come e cala, “De mulheres nem vale a pena falar, tão constante é o seu fado de parideiras e animais de carga.” (p.125), mas os tempos mudam e elas também querem lutar ao lado dos seus companheiros “Gracinda Mau-Tempo também quis vir, já não há quem segure as mulheres, isto pensam os mais velhos e antigos, mas não dizem nada…” (p.310).
Muito mais e melhor se poderá dizer e escrever sobre este romance extraordinário, uma verdadeira lição de história, de resistência duríssima contra um poder ditatorial em que o Latifúndio, a Igreja e o Governo estavam de braço dado, mas contra o qual o povo lutou para se levantar do chão.
8 de Outubro de 2023 (25 anos depois do dia em que foi anunciado o prémio Nobel da Literatura de 1998 atribuído a José Saramago)
Artigo de Almerinda Bento publicado no blogue “Lendo e Escrevendo” em 8 de outubro de 2023
Adicionar novo comentário