Falamos de memória. Mas sem testemunhas a memória é vazia. É esperar demasiado que todos os que sofrem falem. Mas sem testemunhas, a memória é entregue à propaganda ao serviço do momento. Julius Margolin interroga-se se a verdadeira Rússia é a que festeja a vitória sobre a Alemanha nazi, na Praça Vermelha, ou a que existe no universo inexplorado dos campos de concentração, a que chama “a terra dos Zek”. Margolin escreveu, em 1946 e 1947, logo após cinco anos de servidão penal soviética; a questão continua a ser pertinente na Rússia do século XXI. O próprio Margolin era um “zek”, um condenado que sobreviveu à prisão no maior sistema de campos de concentração durante o seu período mais mortífero.
Chamamos Gulag aos campos soviéticos, segundo o título do livro muito posterior de Alexander Solzhenitsyn, publicado em 1973. Se o livro de Margolin tivesse sido publicado na altura em que ele o escreveu, “zek” e “terra dos zek” seriam os termos que utilizaríamos atualmente. A primeira coleção completa dos textos de Margolin sobre os campos de concentração, publicada na íntegra em tradução inglesa, surge numa altura em que sabemos tanto sobre eles. Quando os documentos ficaram disponíveis, após o fim da URSS, em 1991, os historiadores tentaram equilibrar as experiências dos prisioneiros com as dos guardas, dos diretores dos campos, do Politburo, do próprio Estaline. Sabemos certas coisas que Margolin não sabia: a localização da maior parte dos campos, o número de prisioneiros e de mortos registados, os nomes daqueles que os perseguiam. Mas sem as vozes das testemunhas, mesmo este conhecimento não é suficiente. Se a memória é colocada em causa pelas testemunhas, a história é enriquecida por elas.
Apenas algumas recordações dos campos de concentração, e apenas um punhado de recordações do Gulag, dão-nos uma ideia do que era estar lá dentro. Margolin dá-nos uma razão: tornar-se um “zek” significa perder os pontos de referência que tornavam a experiência inteligível para os outros: “Ninguém mantém a sua forma original. A observação é difícil porque o próprio observador está deformado. Também ele é anormal”. Nesse sentido, o título do livro foi escolhido com perfeição. Margolin conta os cinco anos que decorreram entre a sua deportação da Polónia ocupada pelos soviéticos, em 1940, e o seu regresso à Polónia do pós-guerra, em 1946, e a sua posterior partida para a Palestina, via França. É um sinal da sua honestidade o facto de registar o seu próprio declínio; é um sinal da sua recuperação o facto de ter sido capaz de escrever este livro. Este livro de memórias literárias e filosóficas não é apenas uma crónica histórica sem paralelo, é também um profundo juízo moral. Dezenas de milhões de pessoas passaram pelo Gulag; apenas alguns foram capazes de escrever livros minuciosos e fiáveis sobre o assunto. Este é talvez o melhor.
Margolin era filósofo, o que fez dele uma testemunha especial. Filho de um médico judeu da cidade predominantemente judaica de Pinsk, no que era então o Império Russo ocidental, estudou durante algum tempo na Rússia revolucionária e depois concluiu um doutoramento em filosofia em Berlim. Considerava-se um judeu polaco e passou a maior parte da década de 1930 na Polónia, sobretudo em Łódź. Em 1936, ele e a sua família mudaram-se da Polónia para a Palestina. Estava na Polónia a tratar de alguns assuntos obrigatórios quando a Alemanha invadiu o país, a 1 de setembro de 1939. Tal como cerca de um quarto de milhão de judeus da Polónia oriental, fugiu dos alemães para Leste. A União Soviética invadiu a Polónia a partir do leste, a 17 de setembro. Como muitos desses judeus, Margolin tentou encontrar uma saída. Quando não conseguiu, regressou à casa dos pais, em Pinsk, onde viveu durante a anexação da Polónia Oriental e a imposição do sistema soviético.
Margolin descreve-se como um europeu e um “homem do Ocidente”. Tinha quarenta anos, quando entrou no seu primeiro campo de concentração, idade suficiente para ter visto um pouco do mundo e para ter criado uma família, mas suficientemente jovem para reagir com flexibilidade. Possuía um intenso sentido de decência e normalidade: os direitos humanos e a verdade eram conceitos básicos. Tinha o vocabulário e os conceitos de um filósofo com um interesse intenso pela literatura: nunca lhe faltaram palavras ou conceitos num ambiente que desafiava a descrição. Falava russo, a língua dos campos, mas também falava polaco e iídiche, as línguas dos prisioneiros com quem foi condenado.
Como Margolin via as coisas a partir de Łódź ou Pinsk, no final de 1939 e início de 1940, os nazis e os soviéticos tinham destruído a Europa em conjunto. O Pacto Molotov-Ribbentrop, de agosto de 1939, e a invasão conjunta germano-soviética da Polónia, que se seguiu, marcaram o fim da vida que ele pensava ter levado. A Polónia, de onde tinha emigrado, mas pela qual sentia simpatia, foi destruída pelos seus poderosos vizinhos. Em Pinsk, Margolin viu os recursos locais, trigo e carne, serem canalizados pelo poder soviético para o aliado nazi, enquanto a Alemanha invadia a Europa Ocidental. Tanto a Alemanha nazi como a União Soviética declararam que o Estado polaco não existia, o que criou um problema básico de acesso à lei e à proteção para milhões de pessoas que estavam sujeitas, não a uma ocupação convencional, mas a uma anexação e colonização. No caso de Margolin, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados num campo de concentração por ter documentos errados.
As suas opções eram limitadas pela ação conjunta das potências nazi e soviética. Os judeus podiam fugir dos alemães, mas encontravam-se num território, que viria a ser soviético. Margolin é um observador atento do que aconteceu na Polónia Oriental sob o domínio soviético: deportação das elites, subjugação da economia, encerramento de todas as organizações independentes. Muitos judeus queriam regressar: "já na primavera de 1940, os judeus preferiam o gueto à igualdade de direitos soviética". Muitos judeus regressaram, de facto. Os que ficaram, como Margolin, deviam adotar a cidadania soviética. Os judeus que não o fizeram foram deportados para colónias especiais no Cazaquistão soviético e na Sibéria, em junho de 1940. Poucas semanas depois, Margolin foi enviado para um campo no extremo norte da Rússia para cortar árvores.
Durante o primeiro ano de Margolin como "zek", a União Soviética e a Alemanha nazi eram aliadas. Os trabalhos forçados que efetuava serviam uma economia que abastecia a Wehrmacht. Para Margolin, era simplesmente o fim do seu mundo: "Os dois lados eram reflexos desumanos daquilo que nos era querido e sagrado". Para ele, não havia nada de surpreendente na "aliança da Rússia com a Alemanha nazi". Judeu no confinamento soviético, teve de suportar a propaganda pró-nazi: "Os raros jornais soviéticos que chegavam ao campo estavam cheios de publicidade pró-alemã. A imprensa soviética reproduzia os discursos dos dignitários nazis. "Em sintonia com os êxitos de Hitler", recorda Margolin, "o antissemitismo no campo aumentou. Embora fosse um judeu polaco e estivesse bem ciente do antissemitismo polaco, ninguém lhe chamou 'kike' [termo nova-iorquino depreciativo para judeus] até estar num campo soviético.
Margolin conhecia bem a Alemanha, mas nunca viu um campo nazi; deixou o país em 1929, quatro anos antes de Hitler chegar ao poder. As comparações eram, no entanto, inevitáveis. Um jovem judeu alemão, temeroso do terror nazi, viu os seus pesadelos tornarem-se realidade num campo soviético. Os judeus que tinham estado em Dachau afirmavam que a servidão soviética era pior. Margolin também notou que os jovens fascistas com quem partilhava a prisão admiravam a estrutura dos campos. Concordavam com o seu princípio organizativo básico: os fortes deviam sobreviver, os fracos deviam perecer.
Margolin e os seus companheiros de prisão foram evacuados para leste do campo do Lago Onega, quando a Alemanha nazi invadiu a União Soviética a 22 de junho de 1941. Havia cerca de quatro milhões de pessoas nos campos soviéticos, quando Hitler traiu Estaline e a Alemanha nazi e invadiu o seu aliado. Nos dois anos seguintes, mais cerca de 2,5 milhões de cidadãos soviéticos foram condenados a campos de concentração. Entre 1941 e 1943, o caos nos transportes e a escassez drástica tornaram a condenação a campos de concentração ainda mais perigosa do que antes. Nesses anos, foram registadas oficialmente cerca de meio milhão de mortes; é provável que o número real seja consideravelmente mais elevado.
Margolin sobreviveu a estas condições, observou-as, relatou-as e analisou-as com uma clareza e uma perspicácia sem paralelo. Através das suas extraordinárias descrições, ficamos a conhecer aquilo a que ele chama "o ano fatídico de 1942", quando à sua volta "os zeks caíam como erva". Ele e os seus companheiros de prisão falavam sobre que tipos de erva e que tipos de casca de árvore podiam ser comidos. Com grande precisão e sem paixões, descreve, por exemplo, o que é cavar num canal a jusante de uma latrina à procura de algo comestível que tenha sobrado das lavaduras para os porcos.
A desumanização é o grande tema de Margolin: a redução dos "zeks" a animais esfomeados, na sua própria mente, e a máquinas de trabalho, na mente dos seus patrões. Toda a gente tinha fome a toda a hora. A comida era racionada, de modo a que os mais produtivos recebessem mais do que os menos produtivos: "O meio de cooperação era a fome". Um prisioneiro pode ser reduzido "a uma condição bestial em que o momento de saciedade se torna o clímax de cada dia, o único estímulo para as suas ações".
Ver-se tratado apenas como um instrumento de trabalho destruía o sentido de autoestima. Só uma pessoa livre", escreveu Margolin, "conhece a alegria do trabalho livre e para ela esse trabalho tem significado, porque serve um objetivo que escolhe e em que acredita". É fisicamente difícil passar o dia inteiro a abater árvores numa floresta no norte da Rússia, como Margolin fez na primeira tarefa que lhe foi atribuída. Mas também alerta para os custos espirituais: "A maneira mais segura de tornar uma pessoa ridícula e desprezível é obrigá-la a fazer sistematicamente um trabalho que é incapaz de realizar, na companhia de pessoas que lhe são superiores em força e habilidade. As pessoas são reduzidas à quantidade de trabalho que fazem: "Eu próprio não valia nada. O meu direito à vida era medido pela percentagem de normas de trabalho que cumpria".
A irrelevância absoluta era um elemento de sofrimento. Margolin trabalhava mal, punido por ações que não considerava crime, condenado por um Estado do qual não era cidadão, ao serviço de um regime que abominava. Depois da guerra, Margolin leu Jean-Paul Sartre e troçou da ideia de Sartre de que a alienação era algo vivido pelos burgueses em França. Ele viu a queixa de Sartre sobre a ausência de sentido absoluto na existência como uma tentação a ser buscada na política, num sistema como o comunismo. Como previsão da política de Sartre, isto estava correto. Margolin experimentou, de facto, algo muito próximo da pura alienação e escreveu sobre isso com uma habilidade que deveria ser uma lição de humildade para aqueles que escrevem sobre o que não sabem.
Margolin é um cronista não só da crueldade e do sofrimento dos outros, mas também do desaparecimento do eu. Na sua prosa, a estrutura física e institucional do campo figura não apenas como uma ameaça à vida, mas a qualquer sentido do que a vida pode significar. Ao longo do livro, regressa, por exemplo, às suas constantes dificuldades em manter-se vestido. Estas passagens referem-se ao frio extremo e à dignidade básica: "Chega uma altura em que já não temos nada de nosso. O Estado veste-nos e despe-nos como lhe apetece. A Polónia está destruída e a Palestina está longe; não tem qualquer contacto com as pessoas de quem gostava antes da sua condenação; "os laços familiares foram liquidados". Dói-lhe que a mulher e o filho não saibam, na Palestina, o que lhe aconteceu. A continuidade da vida, a acumulação de momentos, dias e recordações, que é o oxigénio da nossa consciência, foi quebrada. Os prisioneiros "esquecem gradualmente o passado" e o presente torna-se uma questão de repetição mecânica e de sobrevivência animal.
Margolin sobreviveu fisicamente, graças aos seus idiomas, à sua amizade com os médicos do campo, à sua astúcia e a uma boa dose de sorte. Esteve, várias vezes, à beira da morte e os seus dotes de escritor são talvez mais evidentes nas suas recordações desses momentos. Mas talvez a experiência central não tenha sido a doença, mas a desumanização. Entristece-se com o dia em que rouba outro prisioneiro, com o dia em que dá um murro na cara de outro homem. Mesmo quando Margolin ia cedendo ao sistema, física e espiritualmente, nunca perdeu o seu sentido de valor humano. Em circunstâncias em que esse comportamento era compreensível e até necessário para a sobrevivência, ele ainda se lembra como errado e igualmente prejudicial para si mesmo. O filósofo polaco Leszek Kołakowski disse que, quando escolhemos o mal menor, temos de nos lembrar que é um mal. E este é um desafio na vida quotidiana; o facto de Margolin conseguir manter este nível de reflexão ética no terreno é milagroso.
Margolin nunca perdeu a capacidade de ver os seus companheiros "zeks" como humanos. Tem o cuidado de descrever as condições especiais dos seus companheiros judeus, que inicialmente constituíam a maioria dos colegas de prisão. Explica que os polacos, com quem partilhava a língua e o país, formavam o grupo mais próximo dos judeus no campo. Margolin faz amizade com os ucranianos, com quem, como recorda, os judeus tiveram uma história nada fácil. Os ucranianos foram enviados para o Gulag em número desproporcionado antes, durante e depois da guerra; no livro de Margolin, "eles têm voz".
Margolin sabia que era uma testemunha invulgar. Ao concluir o seu livro, em 1947, numa altura em que o mundo não sabia, nem queria saber nada sobre o Gulag, escreve, de forma bastante formal, que "com base na minha experiência de cinco anos, afirmo que o governo soviético, utilizando territórios específicos e condições políticas do país, criou um inferno subterrâneo, um reino de escravos atrás de arame farpado, inacessível à opinião pública mundial". Margolin previu, com razão, que o mesmo vazio moral que ele experimentou se tornaria o argumento dos defensores do regime soviético. O que ele contestava era o abandono total da ética, o niilismo aberto e seu sadismo concomitante: "O poder faz a razão, todos mentem, todos são canalhas, é preciso dar uma lição aos tolos".
A defesa do sistema soviético, antes da guerra, durante a guerra, depois da guerra e até hoje, implicava que o abandono da humanidade servia algum objetivo. O que Margolin experimentou como vazio pode ser visto à distância como uma etapa da história. A fome, a desumanização e a morte em massa em terrenos baldios eram necessárias para alcançar um bem maior. Era nisto que acreditava Sartre, por exemplo, e defesas semelhantes continuam a ser levantadas hoje, na Rússia e não só. A experiência de Margolin contradiz diretamente este pensamento desiderativo: "O que eu vi, nos cinco anos da minha estadia no reino subterrâneo soviético, foi um aparelho de assassínio e de opressão a funcionar cegamente". O argumento do determinismo é invertido: "O crime do regime soviético não é justificado, mas sim agravado e acentuado, se se verificar que não há outra forma de reforçar o poder dos dirigentes do Kremlin que não seja o sistema monstruoso dos campos de escravos contemporâneos e os milhões de mortos anónimos.
Margolin não tinha paciência para o relativismo ou aquilo a que hoje chamamos "whataboutism". Não é uma defesa do assassínio em massa soviético referir que os nazis cometeram crimes muito piores. O sistema de campos soviético, avisou, era mais antigo, maior e mais duradouro do que o dos nazis. É errado "justificar os campos soviéticos alegando que Auschwitz, Majdanek e Treblinka eram muito piores". Na perspetiva de Margolin, os nazis e os soviéticos tinham destruído a Europa em conjunto, em 1939. Nenhum dos lados estava certo na guerra que começou, em 1941, e defender um deles referindo-se aos crimes do outro era um erro lógico. O próprio Margolin foi fisicamente apanhado entre os dois sistemas. Mas a liberdade humana para ele era a capacidade de julgar ambos, por padrões mais elevados, e não pelos termos a que a sua aliança ou a sua colisão parecia obrigar.
Margolin tem uma palavra final para todos aqueles que ignoram a história dos campos de concentração soviéticos, acreditando que, ao fazê-lo, estão de alguma forma a servir o progresso. As pessoas que justificam os campos soviéticos, que dizem "Metam-nos em campos" ou "Isto pode não ser verdade" ou simplesmente "O que nos importa?" podem considerar-se antifascistas e usar uma máscara de justiça. Para mim, é evidente que estas pessoas estão a preparar uma segunda edição de Hitler no mundo".
Se se perde a preocupação com os factos da história, perde-se a preocupação com a humanidade. Se se opta pela evasão e pela propaganda, os antifascistas perdem para os fascistas, melhores evasores e melhores propagandistas. A ação de registar com verdade o sofrimento humano é, pelo contrário, também um ato de afirmação do valor humano. A dignidade de recordar os pormenores implica também a dignidade de fazer um julgamento. Por uma questão de ética individual e também por uma questão de pragmatismo democrático, nenhuma "violação dos direitos humanos deve permanecer anónima".
O testemunho desfaz o anonimato e o julgamento cinge um ideal. Margolin acreditava que a democracia transcendia a luta trivial entre esquerda e direita. A direita não era obrigada a defender o fascismo e a esquerda não era obrigada a defender a União Soviética. E ninguém era obrigado a identificar-se com a esquerda ou com a direita. A armadilha do nós e eles era desumanizadora. O que era humanizador era a preocupação com a verdade, o acesso ao registo histórico e a liberdade de expressar o que se aprendeu. Embora todas as democracias tenham falhas, como reconheceu, os erros podem ser vistos pelo que são. Quando o testemunho e o julgamento dos indivíduos informam a discussão e as escolhas dos cidadãos, uma democracia pode ser corrigida e renovada.
Timothy Snyder é um historiador norte-americano, especialista na Europa Central e Oriental do século XX e professor de História na Universidade de Yale.
Publicado no Sin Permiso. Traduzido por António José André para o Esquerda.net.