É necessário esclarecer que identidade de género não está relacionado, seja de que forma for, com orientação sexual. São coisas completamente diferentes uma da outra; orientação sexual (heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade) refere-se a relações emocionais, afectivas e sexuais.
Identidade de género está relacionada com a uma diferença interna e individual com género que nasceu e a sua identidade, originando um conflito interno, cuja solução pode passar por diversas operações cirúrgicas e toma de medicação para que o corpo desse indivíduo reflita quem realmente é.
Outra forma de identidade de género é a rejeição das características, expectativas e suposições sociais que acompanham determinado género, ou seja, o que a sociedade decidiu o que deveria ser correcto para um homem ou uma mulher, desde comportamentos, formas de vestir, atitudes, reprodução, escolhas pessoais e profissionais; em suma, a sociedade pretende determinar a forma correcta de como se viver, comportar, vestir, falar, agir e até as próprias escolhas individuais de cada um, com base, apenas e somente, nos seus genitais.
A cultura nativo-americana, que muito admiro, estabeleceu, desde sempre, 5 géneros diferentes:
Homem, mulher, homem com dois espíritos, mulher com dois espíritos e transgénero. Sempre foi algo comum, socialmente aceite e totalmente natural. Os indivíduos que apresentavam características e comportamentos mais associados a ambos os géneros eram considerados divinos, pois o espírito deu-lhes a honra e a dádiva do criador que lhes permitia compreender os dois lados do mundo. Eram referidos como tendo um coração e dois espíritos, existindo até funções sociais e cerimoniais reservados a pessoas de terceiro género.
Os Navajo, Cherokee e Cheyenne definiam estes indivíduos como não tendo regras e cujo comportamento não era determinado pelo seu sexo, com atributos e dons especiais dados pela própria natureza sendo chamados de "Nádleehi" na tribo Navajo, "Niizh Manidoowag" na tribo Ojibwe, "Hemaneh" na tribo Cheyenne ou "Lhamana" na tribo Zuni.
Esta forma de viver e ver o mundo é algo que sempre existiu nas tribos nativo-americanas que avalia os indivíduos com base na sua contribuição tribal, sem dar qualquer relevância aos seus atributos masculinos ou femininos. As crianças eram vestidas com roupa considerada neutra, pois não existiam preconceitos ou ideais sobre a forma de amor ou de ser.
Por outro lado, os trangéneros eram indivíduos com o espírito trocado e eram completa e totalmente aceites, sendo chamados, por exemplo, de "Winkté" na tribo Lakota, ou seja, um homem que se comportava como mulher. Osh-Tisca foi um dos maiores guerreiros da tribo Lakota. Nasceu com órgãos sexuais masculinos, casou-se com uma mulher e vestia-se, no seu dia a dia, com roupas consideradas femininas.
Tudo isto foi posto em causa quando os europeus chegaram às Américas e obrigaram as tribos a se converter e abandonar a sua forma de viver.
Os textos sumérios e acádios já mencionavam sacerdotes transgéneros ou travestis, os "Gala". As mulheres trans eram conhecidas como "Galli" na Grécia Antiga.
Na Roma Antiga, o imperador Heliogábalo preferia ser referido como ela.
Há documentações de diversas culturas que formaram comunidades sociais e espirituais que incluíam um terceiro género, nomeadamente as "Hijras" na Índia, "Kathoyes" na Tailândia e até os/as "Ardhanarishvara", um corpo com um lado feminino e masculino.
Na Arábia, este terceiro género, documentado desde os anos 600, é referido como os "Khaniths" ou os "Mukhannathun".
Há relatos de homens trans na Europa durante a Idade Média e no Japão, a transsexualidade remonta ao período Edo (desde 1608).
Na Indonésia, os trans ou terceiro género são chamados de "Warias" e os Sulawesi reconhecem cinco géneros. Na Oceania, são chamados de "Akava'ine", "Fa'afafine" e "Fakaleiti".
O Egito Antigo também documenta um terceiro género com a representação das Deusas Mut, Sekhmet de uma forma andrógina, e Anat com vestido tanto de uma forma masculina como feminina.
No Sudão, os povos Nuba têm papéis tradicionais para homens transgénero que se vestem e vivem como mulheres e se casam com homens.
Estes são só alguns dos muitos exemplos de que a identidade de género é tudo menos algo moderno ou woke. Citando um provérbio Apsáalooke, "as leis do Homem mudam de acordo com a sua compreensão da Humanidade. Apenas as Leis do Espírito permanecem sempre iguais".
Mas se passarmos para o mundo animal, existem espécies que apresentam comportamentos homossexuais como os golfinhos, pinguins, leões ou moscas-das-frutas. Outras espécies, como caracóis, minhocas, algumas espécies de peixes ou borboletas são hermafroditas e podem apresentar hermafroditismo simultâneo (um organismo possui órgãos sexuais de ambos os sexos e pode produzir ambos os tipos de gametas, mesmo na mesma época de reprodução) ou sequencial (organismos que nascem com os órgãos sexuais de um género e a capacidade de mudar de sexo mais tarde na vida.). Há ainda animais que não precisam de um macho para se reproduzir como o escorpião-amarelo e lagartixa-do-velho-mundo.
Existem muitas espécies animais, incluindo mamíferos, aves, peixes, anfíbios, entre outros, onde os membros de um género se comportam como membros do outro género, de acordo com o artigo de divulgação científica da JSTOR Daily, de 2016, onde são listados alguns exemplos de espécies onde foi verificado este tipo de comportamento.
O primatólogo Frans de Waal, após 50 anos de observação de espécies primatas, descreve na sua obra "Diferentes", questões sobre sexo e género. Afirma que "as palavras sexo e género não são sinónimos, são termos não só distintos", dando como exemplo um chimpanzé chamada Donna, que nasceu fêmea mas com comportamentos do género masculino. Acompanhava os machos, que não tinham interesse sexual por ela e vice-versa, sendo descrita como "assexual de género inconforme".
Do meu ponto de vista, o problema reside no facto do ser humano ter o impulso de tentar rotular tudo à sua volta e isto é impossível quando se trata de seres. Cada ser é uma mistura de características, comportamentos, formas de pensar e outros factores que tornam cada ser único. Quando amamos alguém, amamos esse ser devido à sua essência, alma, espírito, no que torna esse ser diferente de todos os outros. A parte física é apenas e meramente atracção.
Este fato de pele que usamos é apenas e somente isso, pois sem tudo o resto, seria algo vazio e inerte. Cada um é composto de características e comportamentos tanto femininos como masculinos; todos somos, portanto, uma mistura de ambos, sendo que em alguns indivíduos certas características são mais acentuadas e presentes, enquanto outros são outras. O problema reside nas expectativas, regras impostas, da presunção social que dita que determinado género é esperado ser, vestir, agir e pensar de determinada forma. Tal não poderia estar mais longe da verdade. Existem mais de 8 biliões de diferentes combinações de comportamento, formas de estar, pensar, viver e ser, cada uma delas única. Não é o nosso sexo que determina quem somos é a nossa essência, e essa não tem género e, ao mesmo tempo, tem ambos os géneros.
A tendência de nos focarmos no material, no que podemos ver e tocar, faz-nos focar no menos importante e deixa-nos com uma visão muito limitada da complexidade de um ser humano. Quando impomos determinados parâmetros com base em algo tão limitado como o sexo com que nascemos, estamos a limitar a capacidade de cada um de nós sermos quem somos, de contribuirmos com o que de único temos, e, ao mesmo tempo, a limitar a liberdade de cada um de nós em simplesmente sermos, sem expectativas, sem normas sociais criadas e com as quais não temos de concordar. É impossível colocar 8 biliões de pessoas em duas caixas tendo como base apenas questões biológicas e ignorando tudo o resto.
A ideia de classificar comportamentos, formas de pensar, vestir e tudo o resto a determinado género não faz qualquer sentido e, no entanto, é um conceito que é imprimido no nosso subconsciente desde o dia em que nascemos. Se algo é associado ao sexo masculino então todos os homens têm de partilhar essa característica, mas isso não é a realidade; e esses indivíduos que não partilham essa característica deixam de ser homens? E essa característica é exclusiva a um homem? Não, há mulheres que também a têm. Logo, não é uma característica exclusivamente masculina, é meramente uma característica que alguns indivíduos têm e outros não, porque na realidade, não é possível classificar algo como masculino ou feminino por tal implica que esse algo está apenas presente em alguém de um determinado sexo e tal permissa não se verifica.
Em termos biológicos, um indivíduo é considerado um homem ou mulher com base na sua genitália e nos seus cromossomas. Então, todos os homens nascem com genitália masculina e têm cromossomas XY e todas as mulheres nascem com genitália feminina e têm cromossomas XX. Mas há indivíduos com DSD (diferenças do desenvolvimento sexual), onde um indivíduo com órgãos reprodutivos femininos tenha cromossomas XY ou vice-versa. Portanto, mais uma vez, não existe um conceito generalizado e exclusivo sobre o que é masculino ou feminino.
Os conceitos socialmente pré-estabelecidos do expectável de um homem ou mulher não fazem sentido e todos estes conceitos de como nos devemos apresentar ao mundo, comportar, falar, vestir ser ou agir tendo por base o nosso sexo ou género não é viável, nem aceitável. Somos todos apenas e somente seres humanos e uma mistura de ambos os sexos e géneros e não há qualquer imposição comportamental real excepto a imposta a nível social, e essa imposição deve ser rejeitada porque é limitativa e incorrecta e, honestamente, ofensiva.
P!nk afirmou: "Dizem que pareço um rapaz ou que sou muito masculina ou que tenho demasiadas opiniões, que o meu corpo é demasiado cheio. Mas não me vês a deixar crescer o cabelo, a mudar o meu corpo ou a forma como me apresento ao mundo. Nós não mudamos, pegamos no cascalho e na concha e criamos uma pérola e ajudamos os outros a mudar para que possam ver mais tipos de beleza".
A realidade é que temos todos um coração e dois espíritos e é a nossa complexidade e unicidade que torna cada um de nós insubstituíveis e sem as delimitações socialmente impostas (que variam de acordo com o tempo) cada um de nós poderá sentir-se muito mais completo, compreendido e feliz, e consequentemente, uma sociedade mais justa, inclusiva e fraternal.