Teletrabalho: Estado é o primeiro a boicotar o dever de desconexão

22 de abril 2022 - 10:11

Em janeiro deste ano, entrou em vigor a nova lei do teletrabalho. Verificam-se já várias tentativas de entorse à lei e uma das mais clamorosas veio da DGAEP. João Leal Amado afirma que deve ser levado “a sério o dever de abstenção de contacto instituído pela lei”.

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Teletrabalho. Fotografia: https://thoroughlyreviewed.com

A pandemia de Covid-19 fez com que o regime de teletrabalho se tornasse uma realidade no quotidiano de muitos trabalhadores, acarretando consigo diversos desafios. Esta circunstância motivou o Bloco de Esquerda a apresentar, em março de 2021, um projeto de lei para alterar o regime jurídico-laboral de teletrabalho, garantindo maior proteção do trabalhador (Projeto de Lei 745/XIV/2ª). 

Outros partidos seguiram o Bloco, apresentando as suas propostas. O debate conjunto destes projetos originou a Lei n.º 83/2021 que “Modifica o regime de teletrabalho, alterando o Código do Trabalho e a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais”. Esta lei entrou em vigor em janeiro de 2022.

São ainda poucos os meses de aplicação desta lei mas já se fazem notar as tentativas de a boicotar. De acordo com o deputado José Soeiro, uma das mais “extraordinárias” é proveniente da Direção Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP). 

“Este organismo tutelado pelo Governo emitiu uma orientação para esvaziar totalmente o ‘dever de abstenção de contacto’ por parte da entidade empregadora. Onde a lei combate uma ‘cultura de disponibilidade permanente’ e determina que a empresa não pode contactar o trabalhador, invadindo por essa via o seu tempo de descanso, a DGAEP vem defender (num documento de perguntas e respostas) que afinal a lei não é violada ‘no caso de um empregador que envie um email ao trabalhador durante o período de descanso deste, em que não seja solicitada resposta ou se determine qualquer outra ação imediata por parte do trabalhador’. Segundo esta curiosa interpretação, a empresa estaria autorizada a contactar o trabalhador a qualquer hora, desde que não lhe dê ordens expressas para trabalhar fora do seu horário (já agora, era o que mais faltava!). Trata-se de uma subversão completa da letra da lei” afirma José Soeiro

João Leal Amado, professor de direito do trabalho na Universidade de Coimbra, escreveu um artigo de opinião precisamente sobre este assunto, intitulado “A desconexão profissional e a DGAEP: tomemos a sério o dever de abstenção de contacto”. 

O professor lembra que, de acordo com a Constituição da República Portuguesa "todos os trabalhadores têm direito ‘ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas’", sendo estas preocupações que “acompanham o Direito do Trabalho desde o seu nascimento: limitar o tempo de trabalho, proteger o equilíbrio físico e psíquico do trabalhador, tutelar a sua saúde, garantir períodos de repouso para este, salvaguardar a sua autodisponibilidade, assegurar a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, enfim, criar e preservar a própria noção de tempo livre, de tempos de não trabalho durante a vigência do contrato que não se reduzam aos períodos indispensáveis ao sono reparador.”

Num contexto em que as novas tecnologias de informação e comunicação (NTIC) se incrementam, surge também “um novo e complexo desafio para o Direito do Trabalho” uma vez que o contexto laboral se alarga no tempo e no espaço, diluindo “as tradicionais fronteiras entre vida profissional e vida pessoal, sobretudo no âmbito das atividades de cariz intelectual”. 

O modelo do trabalhador permanentemente disponível “é uma cultura empresarial que tem de ser contrariada por uma contracultura que ao Direito do Trabalho cabe construir. A ideia de desconexão profissional tem de ser afirmada, o direito do trabalhador a desligar, no seu período de descanso, tem de ser reafirmado”, refere o professor. 

Leal Amado considera mesmo está mais em causa um “dever de não conexão patronal” do que de um “direito à desconexão do trabalhador” uma vez que o “direito à desconexão” parece pressupor que a entidade empregadora teria, à partida, um direito à conexão, o que não é verdade. 

Em conformidade, o professor de direito não subscreve o entendimento da DGAEP segundo o qual “não estaremos perante uma situação de incumprimento do dever de abstenção, no caso de um empregador que envie um email ao trabalhador durante o período de descanso deste, em que não seja solicitada resposta ou se determine qualquer outra ação imediata por parte do trabalhador”. 

“Não posso subscrever esta afirmação da DGAEP, que me parece contrariar tanto a letra como a teleologia da lei” afirma o docente, acrescentando que “se o trabalhador continuar a receber mensagens no seu período de descanso, ele irá sentir-se obrigado a lê-las, irá pensar no seu conteúdo, pensar no que fará quando regressar ao emprego, como responderá ou agirá então, etc., isto é, ele irá ser perturbado por elas, ele irá continuar a estar “com a cabeça no trabalho” durante o seu período de descanso e não, como a lei pretende, desconectado”.

Leal Amado refere que deve ser levado “a sério” o dever de abstenção de contacto instituído pela lei. “Este é um dever que visa combater a cultura de disponibilidade permanente que se instalou no mundo empresarial, é um dever que tenta preservar o descanso e o tempo de vida livre do trabalhador, que tenta salvaguardar a sua saúde e evitar o burnout resultante da conectividade permanente”. 

A orientação emitida pela DGAEP “faz descaso de tudo isto, permitindo, afinal, aquilo que a lei proíbe ─ isto é, que a entidade empregadora continue a contactar o trabalhador, via NTIC, no seu período de descanso, contanto que tenha o cuidado de não lhe dar ordens de execução imediata nem lhe fazer perguntas. Discordo”, conclui João Leal Amado.