Supremo retira proteção constitucional ao aborto nos EUA

24 de junho 2022 - 15:54

A decisão foi anunciada esta sexta-feira, deitando por terra o direito ao aborto fixado pelo Supremo Tribunal há quase 50 anos. Estados republicanos preparam-se para aprovar leis no sentido da proibição do aborto. Para Catarina Martins, trata-se de "uma decisão infame e um enorme recuo nos direitos das mulheres".

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"Não podem proibir o aborto. Só podem proibir o aborto seguro", lê-se no cartaz da manifestação em maio junto ao Supremo Tribunal, quando uma fuga de informação revelou o sentido da decisão agora anunciada. Foto de Victoria Pickering/Flickr

Os juizes do Supremo Tribunal confirmaram a retirada da proteção constitucional ao aborto nos Estados Unidos, revertendo uma das decisões mais emblemáticas do organismo judicial - o caso Roe vs. Wade, em 1973. Com esta decisão, os estados norte-americanos passam a ter o poder de limitar ou mesmo proibir a prática de interrupções voluntárias da gravidez dentro das suas fronteiras. E os EUA passam a integrar o grupo de quatro países a restringir o direito ao aborto desde 1994, juntamente com El Salvador, Nicarágua e Polónia.

EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

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O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto.  Por Ana Campos, médica obstetra

 

Parágrafos

Roe vs. Wade, como ficou conhecida a possibilidade constitucional de as mulheres dos EUA poderem em liberdade pedir uma interrupção de gravidez, foi uma decisão histórica.

Esta decisão envolveu Norma McCorvey, conhecida pelo pseudónimo de “Jane Roe” que tinha ficado grávida em1969 e pretendia fazer um aborto. Contudo no seu estado de residência, o Texas, o aborto só era permitido para salvar a vida da mãe. As suas advogadas apresentaram uma queixa processual no tribunal federal contra o responsável distrital Henry Wade, alegando a inconstitucionalidade das leis relativas ao aborto. No Texas, o processo teve parecer favorável. Em Janeiro de 1973 o Supremo Tribunal, numa decisão de 7-2 considerou que Roe tinha razão, agendando a redação da 14ª emenda constitucional que concede o “direito à privacidade”, com proteção da decisão de interrupção de uma gravidez. A esta decisão seguiu-se a regulamentação da lei. Nos EUA o aborto a pedido da mulher pode ser realizado até às 24 semanas.

País de grandes contrastes, a decisão de uma mulher poder realizar uma interrupção de gravidez (IVG) sempre foi sujeita a enormes polémicas, sobretudo nos estados mais conservadores, com manifestações de rua, intimidação, pelos setores mais fanáticos, tanto de mulheres como de profissionais de saúde, assalto a clínicas de aborto e encerramento de algumas por pressão da população, muitas vezes liderada por seitas ultra-reacionárias, como o Ku Klux Klan.

A sociedade americana nunca conseguiu viver em debate aberto e democrático com a questão do aborto e cedo surgiram manifestações e tentativas de criar obstáculos à aplicação da lei. As administrações centrais e estatais, nomeadamente nas presidências de Reagan, Bush e posteriormente de Trump reduziram verbas para fundos estatais de comparticipação no aborto, já que desde 1978 na 1ª emenda a este direito, conhecida como “Hyde Amendment” tinha sido restringido o pagamento pelas seguradoras, essencialmente a Medicare e a Medicaid, a não ser que se tratasse de “preservar” a saúde das mulheres. Esta restrição atinge essencialmente os jovens e as pessoas com salários mais baixos, obrigadas a viajar de um estado para outro em que haja suporte do estado com fundos para a prática de aborto. Só 26% dos abortos são cobertos por segurança pública ou privada.

A situação teve um agravamento substancial sob o governo Trump, que, além das verbas estatais para educação sexual e acesso a contracetivos, reduziu o suporte do Estado a fundos de investigação e de apoio, nacionais e internacionais, que apresentassem na sua prática o apoio ou a realização de abortos. Vive-se constantemente com a ameaça de uma cultura “de pseudo-ciência”, que dissemina informação errada acerca da reprodução, da contracepção e das consequências de uma aborto. Entre 1995 e 2003 muitas medidas anti.escolha foram promulgadas e em 2003 10 estados fizeram leis que impedem a maior parte dos abortos.

O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto. Estas divisões estão muito próximas das divisões de votação nacional nos dois principais partidos. Atualmente 57% das mulheres em idade reprodutiva vive num estado considerado hostil em relação ao acesso ao aborto. Alguns estados reduziram drasticamente as condições de acesso ao aborto: tempo de espera, exigência de que os pais estejam presentes e autorizem o aborto nas menores.

O aborto médico é dificultado nalguns estados, por falta de fármacos essenciais à sua prática em segurança e nalguns estados foram proibidos @s enfermeir@s de saúde materna e @s médicos de medicina geral de participar e dirigir abortos medicamentosos, o que reduziu drasticamente o número de profissionais para a sua prática.

A Califórnia é considerada “um estado refúgio em relação aos direitos ao aborto”; com o estado de Nova Iorque passa-se o mesmo. A recente mudança na composição do Supremo com uma maioria de juízes conservadora pode levar a que a lei constitucional seja minada e transformada, passando-se à situação anterior a 1973, em que cada estado podia decidir livremente se permitia ou não que uma mulher abortasse e em que condições.

As vidas das mulheres estão seguramente em perigo.

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O argumento de "devolver o tema do aborto aos representantes do povo" prevaleceu entre a maioria conservadora no Supremo Tribunal, apesar de ir contra a opinião pública norte-americana sobre o assunto. Para o resultado final foram determinantes os juizes nomeados durante o mandato de Donald Trump, que nunca escondeu ser o seu objetivo acabar com o direito ao aborto no país.

Com esta decisão, 26 estados de maioria republicana têm legislação preparada para limitar a prática do aborto sob variadas formas, desde proibi-lo a partir das 15 semanas - ou mesmo das seis, como pretende o Texas e outros estados -, retirar as exceções aos casos de violação e incesto ou proibir a venda da pílula do dia seguinte. Nos estados de maioria democrata, o esforço legislativo vai no sentido de criar novas proteções ao direito ao aborto e ajudar as mulheres que passarão a ser obrigadas a sair dos seus estados para interromper a gravidez.

A decisão provocou reações imediatas de repúdio em todo o mundo. "Nos Estados Unidos foi revogado o direito ao aborto seguro. Uma decisão infame e um enorme recuo nos direitos das mulheres e que não pode deixar ninguém indiferente. O feminismo é a luta dos direitos humanos. É a luta dos nossos dias", afirmou a coordenadora do Bloco de Esquerda nas redes sociais.

 

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