EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

Roe vs. Wade, como ficou conhecida a possibilidade constitucional de as mulheres dos EUA poderem em liberdade pedir uma interrupção de gravidez, foi uma decisão histórica.

Esta decisão envolveu Norma McCorvey, conhecida pelo pseudónimo de “Jane Roe” que tinha ficado grávida em1969 e pretendia fazer um aborto. Contudo no seu estado de residência, o Texas, o aborto só era permitido para salvar a vida da mãe. As suas advogadas apresentaram uma queixa processual no tribunal federal contra o responsável distrital Henry Wade, alegando a inconstitucionalidade das leis relativas ao aborto. No Texas, o processo teve parecer favorável. Em Janeiro de 1973 o Supremo Tribunal, numa decisão de 7-2 considerou que Roe tinha razão, agendando a redação da 14ª emenda constitucional que concede o “direito à privacidade”, com proteção da decisão de interrupção de uma gravidez. A esta decisão seguiu-se a regulamentação da lei. Nos EUA o aborto a pedido da mulher pode ser realizado até às 24 semanas.

País de grandes contrastes, a decisão de uma mulher poder realizar uma interrupção de gravidez (IVG) sempre foi sujeita a enormes polémicas, sobretudo nos estados mais conservadores, com manifestações de rua, intimidação, pelos setores mais fanáticos, tanto de mulheres como de profissionais de saúde, assalto a clínicas de aborto e encerramento de algumas por pressão da população, muitas vezes liderada por seitas ultra-reacionárias, como o Ku Klux Klan.

A sociedade americana nunca conseguiu viver em debate aberto e democrático com a questão do aborto e cedo surgiram manifestações e tentativas de criar obstáculos à aplicação da lei. As administrações centrais e estatais, nomeadamente nas presidências de Reagan, Bush e posteriormente de Trump reduziram verbas para fundos estatais de comparticipação no aborto, já que desde 1978 na 1ª emenda a este direito, conhecida como “Hyde Amendment” tinha sido restringido o pagamento pelas seguradoras, essencialmente a Medicare e a Medicaid, a não ser que se tratasse de “preservar” a saúde das mulheres. Esta restrição atinge essencialmente os jovens e as pessoas com salários mais baixos, obrigadas a viajar de um estado para outro em que haja suporte do estado com fundos para a prática de aborto. Só 26% dos abortos são cobertos por segurança pública ou privada.

A situação teve um agravamento substancial sob o governo Trump, que, além das verbas estatais para educação sexual e acesso a contracetivos, reduziu o suporte do Estado a fundos de investigação e de apoio, nacionais e internacionais, que apresentassem na sua prática o apoio ou a realização de abortos. Vive-se constantemente com a ameaça de uma cultura “de pseudo-ciência”, que dissemina informação errada acerca da reprodução, da contracepção e das consequências de uma aborto. Entre 1995 e 2003 muitas medidas anti.escolha foram promulgadas e em 2003 10 estados fizeram leis que impedem a maior parte dos abortos.

O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto. Estas divisões estão muito próximas das divisões de votação nacional nos dois principais partidos. Atualmente 57% das mulheres em idade reprodutiva vive num estado considerado hostil em relação ao acesso ao aborto. Alguns estados reduziram drasticamente as condições de acesso ao aborto: tempo de espera, exigência de que os pais estejam presentes e autorizem o aborto nas menores.

O aborto médico é dificultado nalguns estados, por falta de fármacos essenciais à sua prática em segurança e nalguns estados foram proibidos @s enfermeir@s de saúde materna e @s médicos de medicina geral de participar e dirigir abortos medicamentosos, o que reduziu drasticamente o número de profissionais para a sua prática.

A Califórnia é considerada “um estado refúgio em relação aos direitos ao aborto”; com o estado de Nova Iorque passa-se o mesmo. A recente mudança na composição do Supremo com uma maioria de juízes conservadora pode levar a que a lei constitucional seja minada e transformada, passando-se à situação anterior a 1973, em que cada estado podia decidir livremente se permitia ou não que uma mulher abortasse e em que condições.

As vidas das mulheres estão seguramente em perigo.