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Sudão anuncia fim de leis extremistas religiosas

Descriminalização da apostasia, fim da mutilação genital feminina e da necessidade de autorização do marido para as mulheres viajarem com os filhos são algumas das medidas que o governo transitório sudanês promete implementar.
Raparigas sudanesas numa escola da capital, Julho de 2016. Foto de GPE/Flickr.
Raparigas sudanesas numa escola da capital, Julho de 2016. Foto de GPE/Flickr.

O Governo de Transição do Sudão anunciou no fim de semana passado o fim de uma série de leis que derivavam de uma visão extremista do Islão. Assim, a apostasia será descriminalizada, a mutilação genital feminina proibida, acaba a necessidade de autorização do marido para as mulheres viajarem com os seus filhos e vai ser permitido aos não-muçulmanos beberem bebidas alcoólicas.

O primeiro-ministro Abdalla Hamdok remodelou a semana passada o governo, demitindo os ministros das Finanças, dos Negócios Estrangeiros e da Saúde e o chefe da polícia e o seu principal adjunto. O seu governo nasceu de um acordo periclitante entre os militares que se agarraram ao poder durante a chamada revolução sudanesa que derrubou o ditador Omar al-Bashir e os grupos civis envolvidos nas mobilizações.

Este anúncio faz parte da intenção declarada de aumentar o ritmo de reformas e põe fim à “lei islâmica” introduzida em 1983 pelo ex-presidente Jaafar Nimeii. Este, chegara ao poder depois de um golpe militar em 1969 e inicialmente tentou implementar políticas de caráter pan-arabista e socialista, depois tornou-se apoiante dos EUA no final dos anos 1970 e, mais tarde, acabou por implementar uma versão extremista do Islão o que levou a país à guerra civil. Um golpe de Estado acabou com o seu governo mas este seu legado continuou.

Coube ao ministro da Justiça, Nasredeen Abdulbari, anunciar na televisão as novas políticas. A imposição de penas de até três anos de prisão para quem pratique a mutilação genital feminina é uma alteração profunda num país em que, segundo uma sondagem promovida pelas Nações Unidas em 2014, 87% das mulheres sudanesas entre 15 e 49 anos tinham sido vítimas deste procedimento. Abdulbari veio agora dizer que a mutilação genital feminina “degrada a dignidade das mulheres”.

Outra medida significativa é a descriminalização da apostasia. Segundo a lei sudanesa, poderia ser aplicada a pena de morte a quem se considerasse que tivesse abandonado a fé islâmica, o que era utilizado para perseguir minorias religiosas e condenar mesmo quem nunca tinha seguido estas crenças.

Demasiado para uns, demasiado pouco para outros

O anúncio destas alterações legislativas agitou a sociedade do Sudão. Do lado das associações de mulheres, Ihsan Fagiri, citada pelo Guardian, agradeceu à “gloriosa revolução” e lembrou as “muitas mulheres que foram abusadas por estas leis injustas e humilhantes”. A dirigente da “Iniciativa: Não à Opressão Contra as Mulheres” estima que, apenas em 2016, 45.000 mulheres tinham sido acusadas ao abrigo da Lei de Ordem Pública tinha sido abolida. Esta já foi abolida no final do ano passado. Uma das suas regras, imposta pelo artigo 152, era a proibição das mulheres usarem calças em público. A pena era de 40 chicotadas.

Também Ola Diab, editora da revista 500 Palavras, considerou que as reformas são “grandes primeiros passos” mas preveniu que “a questão aqui é a implementação destas leis. Penso que o desafio será esse e vamos ver se estas leis trarão uma mudança séria” declarou ao mesmo jornal.

O tom de prudência é também adotado pelo académico Magdi el-Gizouli. Ao Deutsche Welle, indica igualmente dúvidas sobre os efeitos práticos deste anúncio e sugere que este pode ser apenas para fazer propaganda externa, ou seja para agradar ao Ocidente.

Por exemplo, sobre o fim da criminalização da apostasia, diz que esta era um instrumento para intimidar opositores mas que a pena de morte para este crime nunca foi verdadeiramente aplicada. O anúncio seria portanto “um evento marginal”. Sobre o fim da necessidade de autorização do marido para viajar, considera o mesmo: “estamos a falar de viajar utilizando um aeroporto. É um passo em frente, não há dúvidas sobre isso”, mas é uma medida que afeta muito poucas mulheres.

Do lado do islamismo extremista há o apelo a manifestações para esta sexta-feira. Como resposta, as forças de segurança fecharam todas as pontes de acesso a Cartum, a capital do país, de quinta-feira até ao fim desta sexta-feira.

Vários partidos manifestaram-se contra a nova lei. O presidente do Partido para o Desenvolvimento e o Estado de Direito, Mohamed Ali Al-Jazouli, incitou o exército e a polícia a desobedecerem ao governo. O Partido do Congresso Popular do Sudão manifestou identicamente a sua oposição às medidas mas preferiu declarar que vai tentar anulá-las através dos meios democráticos ao dispor e procurou vincar a “imoralidade” das novas medidas: “as emendas à lei penal relacionadas com a permissão de não-muçulmanos beberem álcool é considerada uma falha moral antes de ser uma violação da lei islâmica” divulgou o partido numa declaração pública. E também a Irmandade Muçulmana se juntou ao coro de críticas, pressionando o governo a abandonar as medidas agora anunciadas.

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